Um Orson Welles que sambava
No Brasil, a companheira do cineasta-gênio de 'Cidadão Kane', Oja Kodar, contou histórias íntimas que andavam guardadas junto com os vários filmes inacabados dele
CAMILA MORAES São Paulo 24 MAY 2015 - 11:43 BRT
Tudo parece já ter sido dito sobre Orson Welles, o cineasta-gênio de Cidadão Kane, que deixou vários filmes inacabados, mas dê uma chance a Oja Kodar, sua companheira em seus últimos 25 anos de vida, e algumas novidades surgirão. Muito pouco foi contado sobre o cara que usava caftans em casa e, aos 70, dançava samba no meio da sala para provar à amada que ainda tinha energia. Além de comentar seus filmes com dedicação, esse é tipo de histórias que Oja, conta durante uma visita ao Brasil este mês para celebrar Orson, que em 2015 completaria 100 anos.
Os dois se conheceram quando ela tinha 20 anos e ele, 46. A ocasião era O processo, que em 1962 ele filmava em Zagreb, capital da ex-Iugoslávia, atual Croácia, onde ela nasceu. Orson ainda era casado com a atriz italiana Paola Mori – de quem, na realidade, nunca se divorciou no papel –, mas não resistiu aos encantos da jovem com quem escreveu e filmou depois Verdades e mentiras (1974), além de outros projetos incompletos. Ficaram juntos, em uma relação estável que combinava vida pessoal e trabalho. Hoje, foram-se já 30 anos da morte de Orson por um ataque cardíaco, mas os olhos dela brilham ao resgatar o passado como se exibissem um filme.
“Era absolutamente excitante trabalhar com ele. Algumas vezes, bem difícil também. No trabalho, ele podia ser bem… duro, é a palavra. Ele me dizia coisas que soavam ríspidas, mas depois eu ponderava e achava que ele tinha razão”, conta Oja. Não que ele fosse grosseiro, sobretudo com os atores, diz ela, mas era um perfeccionista – alguém que, como bom diretor de cinema, mas próprias palavras de Welles, “presidia sobre o inesperado”.
“Ele era uma pessoa muito gentil. Certa vez, ele disse claramente: ‘Preciso fazer amor com os meus atores, porque são eles que levam meu trabalho à tela’. Com os técnicos, especialmente na montagem, era mais complicado. Lembro de uma vez, em Paris, ele alugou um estúdio e pediu que disponibilizarem seis mesas de edição. Ele ia de uma para outra, escolhendo takes das tiras de filme e embaralhando-os de lá pra cá enquanto imaginava a montagem na cabeça dele. Era quase impossível para as pessoas acompanhá-lo”, relata, acrescentando que sua própria irmã, que trabalhou com eles, foi levada pelo cunhado várias vezes às lágrimas.
Para Oja, muito da fama consagrada de Orson Welles – as críticas negativas, sobretudo – não é verdade. Dizem por aí que ele era gastão e pouco comprometido com entregas, mas ela defende que seu problema era basicamente a falta de dinheiro. "Ele começava algo, daí precisava parar para levantar mais recursos e continuar”, alega. No caso de seu filme brasileiro, É Tudo Verdade, a atriz – que preferiu continuar como escultora em seu país quando o marido faleceu – aponta razões ainda mais complicadas, que ela resume como “azar”.
“Ele amava o Brasil, mas sinto dizer que sua visita naquela época foi cercada de azar. O filme era uma encomenda sobre a América Latina. Então ele veio, filmou o material e mandou de volta para o estúdio. Mas aqueles bastardos de Hollywood analisaram a filmagem e disseram: “O que o Orson Welles está fazendo lá embaixo, filmando aqueles negros pobres?”. Porque é assim que essas pessoas se referiam aos brasileiros… Mas Orson não pensava dessa maneira. Ele nunca falou de outro país como do Brasil”.
O gênio tinha problema com entregas, fato, mas também é verdade que não parava de trabalhar. Nos últimos anos de vida, sofria de artrite e passava as madrugadas teclando só com os dois dedos indicadores. Oja, ao vê-lo digitando com dificuldade quando despertava de manhã, queria se certificar de que tudo estava bem, ainda que conhecesse “cada detalhe dele, sem precisar que abrisse a boca”. “Eu perguntava se havia algo errado, e ele respondia: ‘Não, estou perfeitamente bem, quer ver?’. Então, ele levantava e, vestindo aqueles caftans chineses que usava sempre dentro de casa, dançava pra mim no meio da sala e dizia: ‘Viu? Eu ainda posso dançar samba’”.
Ela – cujo nome real é Olga Palinkaš, mas que adotou o Oja apelidado pela irmã e o Kodar (que significa em croata ‘como um presente’) sugerido por Welles – garante que não são só seus olhos que brilham diante da grandeza do companheiro. As pessoas costumavam se sentir intimidadas com seu "olhar inteligente e penetrante" e, apesar de toda a admiração, temê-lo por causa disso. Mas não Oja, jamais. Diz sem restrições que nunca houve atuação melhor, nem nunca haverá, do que a de Welles em uma cena de seu filme preferido dele, Falstaff - O toque da meia-noite, e que se o cinema não o tivesse “roubado”, ele seria um escritor premiado com um Nobel de literatura. Não que seu objetivo seja mitificá-lo ainda mais. "Ele é a única pessoa que amei. As pessoas dizem que o tempo cura as feridas e, em certo sentido, é verdade. Posso falar dele e rir de algumas coisas hoje. Mas o golpe é tão forte, que dói exatamente como antes”. É o amor.
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