Como a maioria dos cinéfilos em épocas de Oscar, fico ansioso pelas indicações e, claro, pela cerimônia, alguns meses depois. Dessa vez, entretanto, tive uma surpresa ótima: havia um documentário na lista de indicados que mostrava a trajetória de um brasileiro - e esse brasileiro é o incrível fotógrafo Sebastião Salgado. O filme "The Salt of the Earth" ou "O Sal da Terra", além de singelo e sensível como o seu personagem principal, é tão monocromático quanto as obras de Sebastião e a sua intensidade.
O filme, que é dirigido pelo alemão Wim Wenders, mostra a sensibilidade do fotógrafo na maneira que ele vê e trata a natureza. Há diversas passagens em que vemos a delicadeza com que Sebastião trata os índios e até mesmo as baleias como seus amigos. Ele claramente incorpora a filosofia budista de respeito a todos os seres - e é daí que vem sua natureza consciente e responsável pelo bem estar entre todas as espécies.
Sebastião Salgado não é apenas um bom fotógrafo modinha. Embora alguns críticos afirmem que ele "estetize a miséria", a fantástica exposição "Gênesis", que tive a oportunidade de visitar no Museu Oscar Niemeyer em minha última viagem à Curitiba, mostra que, se algum dia ele teve essa intenção, ela não existe mais. Sebastião deixou de ser apenas um memorável expositor para virar um ativista que procura, sobretudo, o equilíbrio entre o homem civilizado e a natureza selvagem; e, em oposição à maioria dos intelectuais, diz que o problema em preservar o meio ambiente não é do Estado ou dos Governos, mas de toda a sociedade pois "todos somos seres políticos e temos responsabilidade social".
Seu discurso claramente não é da boca pra fora. Nascido em Minas Gerais, em uma casa cercada de mata virgem, abandonou o país por se envolver com grupos de esquerda durante a Ditadura Militar. Em Paris, ganhou sua primeira Leica da mulher, Lédia. Tendo seu real talento descoberto, largou a vida de doutorado em economia para fotografar o mundo e suas mazelas. Após se sentir desolado em Ruanda, onde, ao trabalhar na série "Migrações", via diariamente milhares de pessoas morrendo de forma brutal, volta ao Brasil na esperança de restabelecer sua integridade e suas filosofias. Ao chegar ao seu antigo paraíso de Mata Atlântica no interior de Minas, se surpreendeu com a devastação daquele lugar que um dia fora um refúgio. Fundou ali, com o apoio fundamental de sua esposa, o Instituto Terra, que hoje já semeou mais de dois milhões de árvores nas redondezas de sua antiga casa, transformando a propriedade em um Parque Nacional.
Sebastião e Lédia são um exemplo de casal socialmente engajado na causa ambiental. Ele fotografa e ela cura de suas exposições. Não há dúvida do poder dos dois em transformar a sociedade contemporânea
Nesse essência de ser responsável pelo seu meio, foi em busca do modus operandi primordial à existência: pela primeira vez em sua carreira, tirou o foco do ser humano contemporâneo e ampliou o olhar sobre as comunidades primitivas, os animais e as paisagens. Procurando a perpetuação das origens do planeta (e dos seres que nele habitam), busca não só conscientizar o espectador, mas também guardar para as outras gerações aquilo que seus antepassados podem destruir se não desistirem da cobiça, da ganância e do egoísmo. Nessa perspectiva, a natureza selvagem, tema principal de "Gênesis", mostra-se progredida e evoluída na sua própria forma pacífica, altruísta e, ainda sim, desenvolvida de existir. Suas fotos, sempre em preto-e-branco, têm um foco maior no que está implícito e na informação retratada, não nos detalhes. Essa ferramenta tão usada por Salgado ainda nos permite sentir uma crítica à sociedade superficial e detalhista, que faz alarde sobre caprichos em detrimento do real sentido da existência.
Para além de "Gênesis", Sebastião mostra-se ciente do seu papel como cidadão e sabe das atuais deficiências do País no âmbito da defesa ambiental: "hoje temos um Brasil moderno, mas que foi construído sobre as florestas e os rios - a solução para o problema é preservar nossas nascentes. É absolutamente necessário que todas as instituições, sejam públicas ou privadas, façam sua parte." Nesse sentido, já está trabalhando em outro projeto multifacetado: Olhos d'Água , que pretende revitalizar as nascentes da bacia do Rio Doce, quase do tamanho de Portugal.
Essa é jornada de Salgado até seu renascimento. Suas fotografias acompanham seu momento Drummondiano de "Eu cidadão do mundo"; suas imagens habitam o silêncio, ainda que tragam sons de lugares que conhecemos apenas pelas telas - retratos de um mundo vasto e intocado; seu apelo nos convoca a lutar pela essência de viver e, acima de tudo, conviver. Essa luta, que deve ser nosso mais intrínseco valor, é aquela que brande a espada contra a pseudo-superioridade do homem-indivíduo sobre qualquer coisa que não seja ele mesmo. De leões a pinguins; de índios a cosmopolitas, não podemos continuar manchando nossa índole com o egocentrismo que polui nosso solo, suja nossa água, imunda nosso ar e mata nossa cultura.
E devemos ir além. Devemos tentar reverter os danos e acreditar que cada semente lançada à terra vai vingar, assim como todo homem é passível de transformação. Então, a sociedade torna-se reflexo do poder dos seus indivíduos em transformar o meio que já existe. Assim como o sal, devemos encher nossa comunidade de sabor e conservar o o que há de extraordinário.
"Vós sois o sal da terra. Ora, se o sal se tornar insosso, com que a salgaremos?" (Mateus 5,13)
OBVIOUS
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