segunda-feira, 17 de agosto de 2020

Morre Mercedes Barcha, a mulher que tornou possível o sucesso de García Márquez



Mercedes Barcha y Gabriel García Márquez


Morre Mercedes Barcha, a mulher que tornou possível o sucesso de García Márquez

A esposa do Nobel de literatura faleceu neste sábado no México, aos 87 anos


Camila Osorio
Cidade do Mexico, 16 ag 2020

Entre os milhares de lendas e imagens literárias que o Nobel Gabriel García Márquez tornou famosas em seus 87 anos de vida, uma das mais conhecidas incluía sua esposa, Mercedes Barcha. Contava que ela penhorou vários eletrodomésticos para poder enviar pelo correio o romance que tornou Gabo universal. Mercedes Barcha morreu neste sábado na Cidade do México, aos 87 anos. Foram casados por 56 anos e tiveram dois filhos, Rodrigo e Gonzalo. O marido se encarregou de tornar o nome dela famoso durante anos porque não teria conseguido se entregar em tempo integral às letras não fosse o trabalho administrativo e o cuidado que ela lhe dedicou.

No dia em que o escritor terminou o manuscrito de Cem Anos de Solidão, na década de 1960, ele e a mulher foram ao correio do México para enviá-lo à editora na Argentina que estava interessada no livro. Um funcionário do local pesou as folhas do texto e disse que a remessa custaria 83 pesos, mas Mercedes --que era a administradora da família-- falou que só tinha 45. Os dois decidiram então enviar apenas metade do manuscrito, a parte que podiam pagar, e ficar com o restante na esperança de poder mandar depois. “Então, fomos para casa e Mercedes pegou as últimas coisas que faltava penhorar”, disse Gabo. Ela empenhou o aquecedor, seu secador de cabelo, a batedeira, e assim Mercedes conseguiu enviar o resto do romance que tornaria seu marido lendário. “Agora, só falta o romance ser ruim”, lhe disse, então, com raiva. Mercedes era a primeira pessoa que lia a obra de Gabo e era a crítica que o escritor mais temia.
“Sua personalidade era única, uma mescla singular de inteligência absoluta, força de caráter, pragmatismo, curiosidade, senso de humor e hermetismo'‘, disse Jaime Abello Banfi, diretor geral da Fundação Gabo, em um comunicado de condolências. “Querida Mercedes, você foi um polo na Terra, jamais te esqueceremos. Sua recordação nos inspirará.”

Embora ela sempre se certificasse de que a vida doméstica estivesse funcionando, Mercedes Barcha também era uma devota da literatura e lia os manuscritos do marido antes de muitos amigos do Nobel. Quando Gabo estava terminando Cem Anos de Solidão, disse a certa altura que a crítica que mais o preocupava era a da companheira. “A expressão em seu rosto me garantiu que o livro estava no caminho certo”, contou Gabo.

Pouco se sabe sobre os esforços de Mercedes para escrever, embora os arquivos de Gabriel García Márquez da Universidade de Austin-Texas contenham um pequeno texto que ela escreveu aos 15 anos para um jornal de estudantes. É um elogio ao enorme rio Magdalena, na Colômbia, que nasce na cordilheira dos Andes e deságua no mar do Caribe, onde ela o chama de “um tesouro” impossível de retratar. “Considero como um átomo o que minha caneta pode escrever sobre essa longa e majestosa corrente”, disse naquele texto de 1947.


“Os pais de Mercedes eram amigos dos pais de García Márquez”, diz Gustavo Tatis, biógrafo de Márquez e autor do livro The Conjurer’s Yellow Flower. Ela tinha 9 anos e ele 12 quando se conheceram, “e García Márquez teve desde muito cedo a clarividência de que esta seria a mulher que o acompanharia durante toda a vida”. Mercedes mais tarde inspirou vários personagens de Gabo em romances como Cem anos de solidão, O outono do patriarca e O amor nos tempos do cólera, que foi dedicado a ela. “Ela era uma espécie de Úrsula Iguarán”, lembra Tatis, “uma grande mulher por trás do gênio de García Márquez”.

Jon Lee Anderson, jornalista da revista The New Yorker e amigo de Mercedes, lembra que era uma pessoa escassa, com poucas palavras, mas que falava eufemisticamente e com sabedoria. “Quando escrevi um perfil sobre Gabo em 1999, entendi que só com a aprovação dela eu conseguiria acessá-lo”, diz Anderson, que, como outros amigos de Mercedes, se lembra dela naquele papel protetor de escritora. “Quando a conheci em Bogotá e conversamos, sem que ela me dissesse, senti que havia me dado a aprovação para que eu pudesse me aproximar dele”. Os amigos de Gabo eram facilmente amigos de Mercedes também, e ela decidia quais deveriam estar mais perto e quais deveriam ser distantes. No artigo de Anderson, quando falava com Gabo sobre sua esposa, o ganhador do prêmio Nobel lhe diz que ele tinha uma teoria: que Fidel Castro, amigo do escritor, na verdade confiava mais em Mercedes do que ele.

“Ela sempre foi uma mulher muito reservada, desempenhou muito bem aquele papel de muro de contenção diante de Gabo”, lembra outro amigo próximo, o escritor nicaraguense Sergio Ramírez. Outra pessoa que conseguiu passar por esse muro foi Zheger Hay, um militante de esquerda na Colômbia que foi exilado no México nos anos 80 e conheceu Mercedes logo após sua chegada. “Ela sempre teve uma vida muito discreta, sem se exibir”, lembra Hay. Mercedes, diz sua amiga, passava os dias cuidando das casas da família em Cartagena ou na Cidade do México e era constantemente informada sobre as últimas notícias políticas, embora tivesse o cuidado de não compartilhar sua opinião publicamente. “Mercedes era uma viciada em televisão para assistir ao noticiário, ela estava muito ciente de tudo”, diz Hay. “Mas tinha um senso de discrição especial, porque sabia muito bem que Gabo era seu marido e por isso tudo que ela dizia também podia virar notícia.”

Embora calorosa com seus amigos, Mercedes decidiu que não queria ser uma figura pública que falava constantemente na mídia sobre seu marido ou sua vida familiar, e é por isso que a maior parte do que se sabe sobre ela foi através das palavras de seu marido. Mas nenhum homem de letras pode se dedicar à literatura sem uma comunidade íntima para sustentá-lo. Com a sua partida, Mercedes lembra que hoje nem Cem Anos de Solidão nem O amor nos tempos do cólera existiriam sem uma mulher como ela.

EL PAÍS




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