Hiroshima |
Sobrevivente de Hiroshima: “Um exército de fantasmas veio até mim”
No 70º aniversário da bomba atômica de Hiroshima, sobreviventes revivem lembranças
Macarena Vidal Lyn
Hiroshima, Japão, 6 ag 2015
Hiroshima, Japão, 6 ag 2015
Na segunda-feira 6 de agosto de 1945, às 8h de uma manhã ensolarada em Hiroshima, Takashi Teramoto, de 10 anos, era o menino mais feliz do mundo. Sua mãe tinha se deixado convencer e o trouxera de volta para casa depois de passar meses recolhido a um refúgio infantil. Naquela noite, o garoto tinha dormido em sua casa pela primeira vez em mais de três meses. “Como me senti confortável! É uma de minhas lembranças mais intensas”, sussurra. Às 7h30, depois de ser acordado por um alarme antiaéreo, havia saído para brincar com dois amigos. Sua mãe o fez entrar às 8h10 para preparar-se para ir ao médico. Cinco minutos mais tarde, às 8h15, explodiu o inferno.
Hiroshi Hara. |
Takashi nunca voltaria a ser completamente feliz. Em meio a um céu completamente limpo, o Enola Gay, um B-29 norte-americano pilotado por Paul Tibbets, havia lançado a primeira bomba atômica, chamada Little Boy.
Com cerca de três metros de comprimento e quatro toneladas de peso, carregava 50 quilos de urânio. A 600 metros de altura sobre o centro da cidade e 43 segundos depois de seu lançamento, sua explosão causou uma bola de fogo de 28 metros de diâmetro, com uma temperatura de 30.000 graus Celsius. Uma área de dois quilômetros de raio se tornou apenas terra queimada. Setenta mil dos cerca de 350.000 habitantes de Hiroshima, que até então não havia sido bombardeada na guerra, morreram imediatamente depois do ataque. Outras 70.000 pessoas morreram antes do fim daquele ano, vítimas de seus ferimentos ou da radiação.
“Vi de relance um grande clarão azul. E ouvi um grande estrondo. Depois não vi mais nada. A terra tremia e não paravam de cair coisas em cima de mim. Finalmente vi um pouco de luz e saí à rua”, onde uma vizinha se responsabilizou por ele. “Minha mãe ainda estava dentro da casa, eu não queria sair dali, mas os vizinhos me disseram que cuidariam dela. Quando começou a cair chuva ácida, gotas de água negra, a vizinha me protegeu com um pedaço de lata porque meu rosto ardia. Ela morreu meses depois, doente por causa da radiação. Estou convencido de que lhe devo minha vida”, lembra-se Teramoto.
Takashi Teramoto
Minoru Yoshikane também viu o clarão de relance. Aos 18 anos, estava terminando a escola secundária e aspirava a tornar-se professor de inglês, entusiasta que era da literatura e das canções nessa língua. Havia sido recrutado, como os demais estudantes da escola secundária, para trabalhar no esforço de guerra e encontrava-se numa fábrica esperando ordens. Quando explodiu a bomba, ele e seus colegas se refugiaram no sótão. “Duas horas mais tarde, um de nossos professores nos disse que a escola corria perigo e tínhamos que sair para oferecer ajuda, e então nos dirigimos ao centro.”
Nunca esquecerá o que viu. Não restavam casas em pé. Cerca de 90% dos edifícios de Hiroshima ficaram destruídos pela explosão e pelos incêndios que se seguiram. “Vi o que parecia ser um exército de fantasmas vindo até mim. Dezenas de feridos, queimados, com os rostos destroçados, não pareciam humanos. A pele caía em pedaços. Também havia mortos, muitos mortos. Fiquei muito assustado.”
Hiroshi Hara, de 13 anos, estava numa ilha próxima procurando comida para seu tio doente quando ocorreu a explosão. No dia seguinte, tentou chegar à escola, no centro de Hiroshima. “O rio estava cheio de corpos. Muitos feridos, queimados, com as orelhas derretidas. Imploravam por água, alguma coisa para beber. Ao verem que eu era estudante, perguntaram para que escola estava indo, se conhecia seus filhos e filhas. No momento da explosão, muitas crianças, agrupadas por idade e escola, estavam no centro trabalhando em fábricas ou construindo abrigos... Milhares e milhares deles morreram.”
Minoru Yoshikane.M. V. L.
Na sua fuga até o campo, o pequeno Takashi também havia encontrado outros desses feridos graves, que escapavam como podiam. Reconheceu um deles, com o rosto queimado e que caminhava com os braços estendidos à frente, para evitar que a pele que saía em tiras tocasse no chão: era um dos amigos com que estivera brincando antes da explosão e que morreria em poucos dias. O outro morreu imediatamente, ele saberia depois.
Três dias mais tarde, 9 de agosto, às 11h02 da manhã, outro B-29, Bockscar, lançava outra bomba, desta vez de plutônio, contra Nagasaki. O Fat Man, que tinha uma onda explosiva muito maior –equivalente a 22.000 toneladas de trinitrotolueno, contra as 15.000 do Little Boy— caiu sobre um bairro da periferia. Cerca de 70.000 pessoas morreram de imediato ou nos meses que se seguiram até o fim do ano. Em 15 de agosto, o Japão capitulou. Nesse mesmo dia, a mãe de Takashi morreu em decorrência de ferimentos.
Hiroshi Hara
O inferno não tinha acabado para as vítimas. Takashi, como muitos outros residentes, viu como perdia o cabelo por efeito da radiação. Sangrava pelas gengivas e pontos negros irrompiam na pele. Teve que ficar de cama até dezembro. Ele conta que ver as pessoas vomitar sangue se tornou algo normal naqueles meses. Seu irmão acabou morrendo depois de um câncer que ele crê ter sido causado pela bomba. “Muita gente continua sofrendo ainda hoje.”
Para os hibakusha, como são conhecidos no Japão os sobreviventes da bomba atômica, “foi um caminho difícil” desde então, como afirma Yasuyoshi Komizo, da Fundação para a Cultura da Paz de Hiroshima. Tiveram que viver sob a censura oficial dos EUA a respeito dos bombardeios e sob a discriminação dos próprios compatriotas, que temiam os possíveis efeitos da radiação. Alguns negavam que tinham estado ali. “Como qualquer ser humano, no início o que sentiam era ódio e vontade de vingança. Não mudaram de opinião facilmente. Mas com o tempo concluíram que continuar com ódio não faz sentido, que a paz é algo que cabe a cada ser humano, e querem dar seu testemunho para que nunca mais se repita um ataque nuclear.”
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