segunda-feira, 13 de julho de 2015

Rubem Fonseca / O vendedor de Seguros



Rubem Fonseca
BIOGRAFIA

O Vendedor de Seguros


Renata, de vestido novo, ficou de lado na frente do espelho, virou o pescoço para ver o traseiro, era um espelho grande que dava para ela ver o corpo por inteiro. Quando coloquei meu paletó, nem sei como me notou, quando olhava para o espelho ela não via mais nada, perguntou você vai sair a esta hora para trabalhar?

Meu negócio é vender seguros, você sabe disso, não tenho horário, respondi.

Eu preferia que tivesse, são cinco horas da tarde, não sei a que horas vai voltar, já vi que não vamos sair hoje à noite, de que adianta eu comprar roupas novas se não saio com elas?


Desculpe, mas tenho que ganhar dinheiro.

 Você não tem ganho muito ultimamente.

A concorrência é muito grande. E isso não era uma desculpa.

Pelo menos vou ver o meu desfile, ela disse, ligando a televisão. Havia uma TV a cabo que passava um desfile de moda todos os dias.

Quando eu estava na porta Renata disse, as mulheres elegantes agora andam com seios de fora, o que você acha?

Ainda não vi isso.

Eu disse mulheres elegantes. Quantas mulheres elegantes você conhece?

Só você.

Se as coisas continuarem assim, não vai ser por muito tempo.

Peguei o carro e parei na porta do meu futuro cliente, um prédio de cinco andares. Não parei exatamente na porta, parei um pouco antes. Ele sempre chegava de táxi carregando uma pasta, era um sujeito muito gordo, devia ser das pizzas que comia. Saiu com dificuldade do carro, pensei que desta vez ele estava sozinho, mas o outro cara, um barbudo, saiu logo em seguida. Eu queria visitá-lo quando ele estivesse sozinho, o outro sujeito não estava no seguro e eu não ia desperdiçar o meu latim. Eles entraram no edifício e eu acendi um cigarro. Meu celular tocou. Atendi.

É você?

Quem podia ser?, eu disse.

Diz a senha.

Cara, você anda vendo filmes demais.

É a maneira que eu trabalho. Você já devia estar acostumado.

Foz do Iguaçu.

Tenho um seguro para você.

Vai ter que esperar. Estou no meio de uma venda.

Que apólice é essa? Você trabalha para outro corretor?

Isso não interessa.

Quando acaba?

Não sei. Você também devia estar acostumado com a minha maneira de trabalhar.

Acho que você anda meio promíscuo.

Preciso ganhar a vida. Você não arranja negócios suficientes.

Que ruído é esse?

Não ouvi nenhum ruído.

Eu ouvi. Você sabe que celular é uma merda. Linha cruzada, os narigudos entram facilmente.

Fodam-se os narigudos, não estamos dizendo nomes.

Troca de celular.

Estou com ele há menos de dois meses.

É muito tempo. Eu troco todos os meses.

Você é um corretor.

O vendedor também tem que fazer isso. Ainda mais um como você, que mija fora do penico.

Acabou?

Te ligo daqui a dois dias.

Esperei meia hora e chegou o entregador de pizza. Falou no interfone que ficava na portaria, a porta foi aberta, ele entrou. Uma mola fechava a porta. O prédio não tinha porteiro. Acendi outro cigarro. Esperei uma hora, fumei 8 cigarros esperando  o barbudo sair. Um táxi parou na porta do prédio e pouco depois o gordo e o barbudo saíram juntos e entraram num táxi. Eu não ia perder tempo seguindo os dois, não me interessava o que eles faziam. Voltei para casa.

Antes de entrar, desliguei o celular. Renata estava vendo televisão.

Voltou rápido. Vamos pedir uma comida no chinês?

Está bem.

Você não está muito entusiasmado. Você não gosta de comida chinesa. Confessa.

Confesso que não gosto de comida chinesa.

Você só gosta de bacalhau.

Está tirando sarro comigo?

Mais ou menos. Como foi o desfile de moda?

Algumas modelos desfilaram com a bunda de fora. O que você acha?

Não conheço mulheres elegantes.

Está mesmo tirando sarro comigo. No escritório da companhia de seguros você não vai mesmo ver mulheres desfilando com a bunda de fora.

Onde que isso acontece?

Nos lugares chiques. Lugares onde ninguém anda com um revólver debaixo do sovaco, como você.

Não é revólver, é pistola. Me sinto mais tranqüilo com ela. Já imaginou, estou vendendo um seguro numa joalheria e aparece um assaltante?

Se aparecer, o que você faz?

Não sei. Isso ainda não aconteceu.

E você foi vender seguro numa joalheria hoje?

Não.

Mas levou o revólver.

Virou hábito. É pistola.

Para mim é tudo a mesma coisa. Vou ligar para o chinês.

Comemos a comida do chinês. Renata continuou vendo televisão. Eu fui deitar. Antes fumei um cigarro na área de serviço, Renata não me deixava fumar em nenhum outro lugar da casa. Mais tarde ela entrou no quarto, tirou a roupa. Minha vida é tão chata, ela disse, ainda bem que você não nega fogo.

O mérito não era meu. Com a Renata ninguém ia negar fogo.

Durante uma semana eu fiquei vendo o gordo chegar de táxi, e o barbudo estava sempre com ele. Nunca vi os dois conversando. Depois aparecia o entregador de pizza. O gordo ficava cada dia mais gordo, mas o outro cara parecia ficar mais magro, vai ver não gostava de pizza. Um dia eu fiquei a noite inteira nas imediações do apartamento do gordo, os cigarros acabaram e eu fiquei ali, esperando o barbudo sair, mas ele não saiu. Então passei a chegar lá de madrugada. O barbudo saía por volta das sete da manhã, ele usava sempre um blusão largo, bom para esconder uma ferramenta, tinha cara de tira, devia pegar o serviço na delegacia de manhã. O gordo só saía de tarde.

Cheguei em casa e encontrei um bilhete da Renata. Pra mim chega, fui para a casa da minha mãe. O engraçado é que ela sempre tinha me dito que não tinha mãe. Levou as três malas com as roupas dela, também não tinha muito mais coisa para levar, ela só comprava roupa. Esse assunto tinha que ficar para depois, eu tinha outro problema para resolver antes. Peguei o telefone e pedi comida no chinês, não sei bem por quê. Acho que queria ficar na ponta dos cascos, e a melhor maneira para isso é comer mal.

Meu cliente morava no quarto andar. O corredor estava deserto. Tirei o silenciador do bolso e adaptei no cano da pistola. A fechadura da porta podia ser aberta até por um amador. Entrei. O corretor havia me fornecido a planta do apartamento. Não ouvi nenhum barulho, nem fiz nenhum. Ninguém na sala, nem na cozinha. Fui para os quartos, as camas estavam desarrumadas mas nenhum sinal do cliente. A porta do banheiro estava entreaberta.

Abri lentamente a porta do banheiro com o cano do silenciador.

Meu cliente estava deitado na banheira, com água até o pescoço. Me viu quando entrei, e deu um suspiro. Eu devia atirar logo, mas não atirei.

Vai perder o carreto, ele disse, com sotaque de português. Começou a tirar um dos braços de dentro da água.

Devagar, eu disse, apontando a pistola para a cabeça dele.

Ele me mostrou o pulso, sangue escorrendo. A água não estava muito vermelha. Uma gilete brilhava no chão de azulejo. Sentei no banco ao lado da banheira.

Me mostra o outro braço, pedi.

Também tinha o pulso cortado.

Coloquei as luvas e revistei a casa. Encontrei um revólver, um 22, o tambor carregado.

Tirei as luvas e saí. Desci o elevador, pensando. Quando cheguei ao térreo, apertei o botão do quarto andar. Entrei novamente no apartamento do cliente.

Ele viu quando entrei no banheiro.

Voltou?

Quanto tempo demora isso?, perguntei.

Não sei. Mas não dói.

Coloquei as luvas, fui à sala, peguei a arma do cliente e retornei ao banheiro.

Não olha para mim, eu disse.

O 22 não faz muito barulho. Atirei na cabeça dele. Mais uma noite sem dormir.

Deixei o revólver no chão do banheiro, ao lado da gilete.

Liguei do carro para o corretor.

Fiz o serviço.

Faço o depósito hoje, disse o corretor, e desligou.

Gosto de tomar banho de banheira, ler o jornal deitado na água quente. Mas não tomei banho. Entrei só para urinar.

Não almocei. Mais uma noite sem dormir. Seria bom se Renata estivesse comigo.


Rubem Fonseca
A Confraria dos Espadas
Companhia das Letras, São Paulo, 1998, pág.43. 




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