Alan García
Acompanhei de perto o protagonismo que teve nos últimos 30 anos da vida pública do Peru. Era mais inteligente que a média dos que se dedicam a fazer política. Mas teria sido ele um político honesto?
Mario Vargas Llosa
20 abr 2019
Eu o conheci durante a campanha eleitoral de 1985, por intermédio de Manuel Checa Solari, um amigo em comum que havia se empenhado em nos apresentar e que nos deixou a sós a noite inteira. Era inteligente e simpático, mas algo nele me alarmou. No dia seguinte, eu disse na TV que não votaria em Alan García, mas em Luis Bedoya Reyes. Ele não era rancoroso, pois, eleito presidente, ofereceu-me a embaixada na Espanha, que não aceitei.
Seu primeiro Governo (1985-1990) foi um desastre econômico. A inflação chegou a 7.000%. Ele tentou nacionalizar os bancos, as companhias de seguro e todas as instituições financeiras, uma medida que teria não só acabado de arruinar o Peru, mas também eternizado no poder o seu partido, a Aliança Popular Revolucionária Americana (APRA). Nós o impedimos com uma grande mobilização popular hostil à medida, que o obrigou a recuar. Seu apoio foi decisivo para que a eleição presidencial de 1990 fosse vencida por Alberto Fujimori, que dois anos depois deu um golpe de Estado. Alan García precisou se exilar. Seu Governo seguinte (2006-2011) foi muito melhor do que o primeiro, embora, infelizmente, deteriorado pela corrupção, sobretudo associada à construtora brasileira Odebrecht, que venceu licitações de obras públicas muito importantes, corrompendo altos funcionários. O Ministério Público justamente o investigava sobre esse assunto, e havia determinado sua prisão preventiva por dez dias, quando ele decidiu se suicidar.
Um tempo antes, García tentou pedir asilo no Uruguai, alegando ser vítima de uma perseguição injusta. Mas o Governo uruguaio negou o pedido por considerar – com toda justiça – que no Peru atual o Poder Judiciário é independente do Governo e que ninguém é assediado por suas ideias e convicções políticas.
Durante seu segundo Governo, eu o vi diversas vezes. A primeira foi quando o fujimorismo quis impedir a abertura do Lugar da Memória, que mostraria os seus vários crimes políticos cometidos sob o pretexto da luta antiterrorista. A seu pedido, aceitei presidir a comissão que implementou esse projeto, que hoje – felizmente – é uma realidade. Quando ganhei o Nobel de Literatura, ele telefonou para me parabenizar e me ofereceu um jantar no Palácio do Governo, no qual tentou me incentivar a ser candidato à Presidência. “Achei que tínhamos feito amizade”, brinquei. Acredito que o vi pela última vez numa peça em que eu atuava, As Mil e Uma Noites.
Mas acompanhei bem de perto toda a sua trajetória política e o protagonismo que ele teve nos últimos 30 anos da vida pública do Peru. Era mais inteligente que a média dos que em meu país se dedicam a fazer política, com muitas leituras, e um orador fora do comum. Uma vez o ouvi dizer que era lamentável que a Academia de Letras só incorporasse escritores, fechando a porta aos “oradores”, que segundo ele não eram menos originais e criadores do que os primeiros (imagino que o dizia seriamente).
Quando García assumiu a liderança da APRA, fundada por Haya de la Torre, o partido estava dividido e, provavelmente, em um longo processo de extinção. Ele o ressuscitou, tornou-o muito popular e o levou ao poder, algo nunca logrado por Haya, seu mestre e modelo. Um de seus maiores méritos foi ter aprendido a lição de seu desastroso primeiro Governo, no qual seus planos intervencionistas e de nacionalização destruíram a economia e deixaram o país muito mais pobre do que estava. Ele percebeu que o estatismo e o coletivismo eram absolutamente incompatíveis com o desenvolvimento econômico de um país. Em seu segundo mandato, estimulou o investimento estrangeiro, as empresas privadas e a economia de mercado. Se ele tivesse combatido a corrupção com a mesma energia, teria feito uma gestão magnífica. Mas nesse campo, ao invés de avançar, retrocedemos, embora certamente não com a intensidade vertiginosa dos roubos e saques de Fujimori e Montesinos que, acredito, estabeleceram um limite inalcançável para os Governos corruptos da América Latina.
Teria sido ele um político honesto, comparável a um José Luis Bustamante y Rivero ou a um Fernando Belaúnde Terry, dois presidentes que saíram do Palácio do Governo mais pobres do que entraram? Acredito sinceramente que não. E o digo com tristeza porque, embora tenhamos sido adversários, não há dúvida de que havia nele traços excepcionais, como o carisma e a energia inesgotável. Temo, contudo, que participasse dessa falta de escrúpulos, dessa tolerância aos abusos e excessos tão comuns entre os dirigentes políticos da América Latina que chegam ao poder e se sentem autorizados a dispor dos bens públicos como se fossem deles, ou, o que é muito pior, a fazer negócios privados ainda com isso que violem as leis e traiam a confiança dos eleitores.
Não é realmente escandaloso, uma vergonha sem desculpas, que os últimos cinco presidentes do Peru sejam investigados por supostos roubos, propinas e negócios ilícitos cometidos durante o exercício de seus mandatos? Essa tradição, que vem de longe, é um dos maiores obstáculos para que a democracia funcione na América Latina e os latino-americanos acreditem que as instituições estão ali para servi-los, não para que os altos funcionários encham o bolso saqueando-as.
O disparo efetuado por Alan García na cabeça poderia querer dizer que ele se sentia injustamente perseguido pela Justiça. Mas, também, que desejava que aquele estrondo e o sangue derramado corrigissem um passado que o atormentava e agora retornava para cobrar responsabilidades. Os indícios são sumamente inquietantes: as contas abertas em Andorra por seus colaboradores mais próximos, os milhões de dólares entregues pela Odebrecht ao então secretário-geral da Presidência, agora preso, e a outra pessoa muito próxima, seu próprio nível de vida tão acima do que afirmou ter, ao fazer a declaração de bens antes de assumir o primeiro mandato: “Meu patrimônio é este relógio.”
No Peru, já faz tempo, há um grupo de juízes e promotores que surpreenderam a todos pela coragem que demonstram ao combater a corrupção, sem se deixarem amedrontar pela hostilidade desencadeada contra eles pela mesma esfera do poder que enfrentam, investigando, revelando os culpados, denunciando a má gestão dos poderosos. E, felizmente, apesar do silêncio covarde de tantos meios de comunicação, há também alguns jornalistas que apoiam o trabalho desses funcionários heroicos. Esse é um processo que não pode nem deve parar, pois o país depende dele para sair finalmente do subdesenvolvimento e fortalecer as bases da cultura democrática, para a qual a existência de um Judiciário independente e honesto é essencial. Seria trágico que, na compreensível emoção provocada pelo suicídio de Alan García, o trabalho desses juízes e promotores fosse interrompido ou sabotado, e que os poucos jornalistas que os apoiam fossem silenciados.
Madri, abril de 2019
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