sexta-feira, 11 de julho de 2025

10 anos depois, Alien / Isolation continua a nos levar ao espaço para gritar

 

Imagem do jogo Alien: Isolation. A imagem se trata de um close-up do rosto do alienígena Xenomorfo. É uma criatura preta com dentes prateados e afiados. A cabeça longa não apresenta olhos e possui uma testa lisa. De dentro da boca completamente, há outra boca menor com dentes tão brilhantes e afiados quanto a maior que ocupa o lugar da língua da criatura.
É tempo de aproveitar o hype de Alien: Romulus e revisitar essa experiência inesquecível (Foto: SEGA)

10 anos depois, Alien: Isolation continua a nos levar ao espaço para gritar

Iris Italo Marquezini
18 / 11 / 2024

Quando Alien: O Oitavo Passageiro estreou nos cinemas em 1979, a audiência foi surpreendida com uma explosão vinda do peito de um homem. De dentro dele, uma nova criatura surgia repleta de sangue e ansiando, sedenta, por muito mais. Anos depois, sequências bem diferentes do filme original foram lançadas para expandir a história da protagonista Ellen Ripley, incluindo o também clássico dirigido por James Cameron, Aliens (1986). Durante muitos anos, os fãs mais assíduos do primeiro longa, dirigido por Ridley Scott, ficaram órfãos de obras que tivessem uma ambientação claustrofóbica e aterrorizante à altura. Alien: Isolation, jogo diretamente inspirado pelo pioneiro, foge desse cenário ao passo que é exatamente a experiência que os fãs tanto queriam de volta. 

inspiração não é qualquer segredo para os desenvolvedores. O jogo deve tanto ao filme original que a história dele é ligada diretamente com a trama do clássico do Terror,  ainda fazendo o favor de resolver um furo de roteiro de Aliens. Na história, Amanda Ripley precisa encontrar a caixa preta da nave-cargueira Nostromo para chegar a alguma conclusão sobre o paradeiro da mãe, Ellen Ripley, a protagonista do primeiro capítulo da franquia. Após um acidente, a engenheira vai parar na estação espacial de Sevastopol – uma espécie de versão infernal e misteriosa da Deep Space Nine de Star Trek – após ser abandonada por investidores, repleta de vestígios sangrentos de revoltas e massacres. Foram os próprios moradores em uma guerra civil que fizeram isso? Foi o Xenomorfo? É função do jogador preencher as lacunas.

Desenvolvido pela Creative Assembly e distribuído pela SEGA, o jogo, lançado em 2014, decepcionou em vendas, mas não deixou de chamar a atenção. Era comum, na época, o compartilhamento de vídeos de pessoas aterrorizadas e gritando conforme o grande predador da história finalmente percebia a presença da vítima indefesa. Até hoje, inclusive, muitos podem conhecer a obra justamente por causa da viralização desses conteúdos. Outros games da franquia Alien foram lançados, deixando o terror de lado e focando mais na ação presente na sequência de Cameron. Em meio a Outlast (2013), Dead Space 3 (2013) The Evil Within (2014), o jogo conseguiu se destacar dentro do gênero e vencer prêmios, recebendo até indicações ao Game of the Year.

Imagem do jogo Alien: Isolation. Da esquerda para a direita, há um sensor de movimento com tela verde e preta fora de foco. No centro da imagem, mais ao fundo, há um Alien andando prestes a atacar cercado de um laboratório futurista em chamas. Há mesas, armários, cabos e líquidos desconhecidos espalhados para todos os lados.
A visão em primeira pessoa oferece uma imersão ainda maior na narrativa (Foto: SEGA)

Não é à toa que Alien: Isolation encanta fãs do filme original e continua a conquistar um público assíduo mesmo 10 anos depois. A ambientação do jogo é diretamente inspirada na obra de Ridley Scott e H. R. Giger, trazendo a estética retrofuturista única e o sentimento pesado de estar dentro de corredores de maquinários escuros sem ter para onde fugir. Chega a ser divertido pensar que a franquia Dead Space se inspirou diretamente no universo Alien para causar tensão nos jogadores e como a linguagem dessas histórias se converge nesta obra à sua própria maneira. 

A trama é repleta de quebra de expectativas. Um dos exemplos mais claros desse aspecto é a primeira aparição completa do Alien. Surgindo algumas horas depois do começo do jogo, o predador desce de uma ventilação em meio ao silêncio do que parecia somente uma sala monótona repleta de computadores. É neste momento em que a jogabilidade furtiva da narrativa começa a brilhar, já que qualquer mínimo barulho, até mesmo do microfone de quem está jogando, pode chamar a atenção e causar uma morte violenta. 

Uma das maiores provas de como a linguagem de Alien: Isolation sabe causar tensão é a partir da perspectiva de duas das ferramentas adquiridas relativamente cedo na história: o sensor de movimento e o revólver. O sensor ajuda na criação de estratégias para evitar inimigos mas, proporcionalmente, causa medo, já que nem sempre o que aparece no visor está realmente visível nos corredores. Ou seja, mesmo possuindo uma ferramenta para a proteção, esse próprio recurso pode causar paranoia.

Imagem do jogo Alien: Isolation. Há uma mulher branca, de cabelo preto e enrolado e de olhos castanhos no centro da imagem. A personagem é Ellen Ripley, do filme original do Alien de 1979, mas a versão em videogame da personagem, com o mesmo rosto da atriz Sigourney Weaver. É possível vê-la somente do busto para cima. Ela está apoiada com os braços em cima de uma cadeira preta de couro, localizada à esquerda da imagem. Ela utiliza uma jaqueta jeans em cima de uma camiseta branca. Há um relógio retrô no pulso esquerdo dela, com um display e botões coloridos. A personagem possui um semblante sério, impaciente e desafiador.
Sigourney Weaver retorna ao papel de Ellen Ripley na dublagem do jogo (Foto: SEGA)

O revólver em si não é inútil e aparece como uma solução arriscada demais para os problemas. A arma faz muito barulho, depende de munições escassas e não é efetiva contra o Xenomorfo ou os androides, os outros principais inimigos na história, que não são fáceis de eliminar. A sensação de vulnerabilidade é uma constante na experiência; o ato de correr já causa barulho demais para chegar perto de um save point. No menu principal, recomenda-se jogar na dificuldade difícil e essa afirmação faz todo o sentido. Afinal, a narrativa faz o jogador se sentir uma presa que depende da própria criatividade e sorte para escapar de um inimigo quase onisciente. 

Outro complemento para a sensação de ser somente um ser humano indefeso contra a criatura mais brutal da galáxia é o design de som, encabeçado por Mark Angus juntamente a mais de 16 desenvolvedores. A experiência de desfrutar da história com fones de ouvido chega a ser obrigatória, tamanho o empenho dos envolvidos na criação de Alien: Isolation. O jogo nunca oferece um silêncio verdadeiro – há ruídos de computadores e de máquinas operando para manter a estação de Sevastopol funcionando. Em meio a essa cacofonia futurística e artificial, há batidas nas ventilações, e não há nada mais desesperador do que perceber que os passos pesados do Alien no chão de metal começaram a te perseguir. Toda essa ambientação condiz perfeitamente com as descrições de Alan Dean Foster na ‘novelização’ do filme de 1979. 

Por outro lado, uma das reclamações mais comuns acerca do game é a quantidade exaustiva e repetitiva de horas necessárias para zerar a campanha principal. Essa impressão fica clara na segunda metade da narrativa, quando há diversas reviravoltas, muito parecidas com as que a própria Ellen Ripley precisa encarar. A história parece estar prestes a encerrar e a heroína finalmente ficará segura, mas traições acontecem e retornos inesperados do Alien surgem para trazer o inferno à vida da protagonista. Todavia, essa experiência pode ser muito relativa, já que o jogo oferece sim muita variedade pelo aspecto mais memorável de Alien: Isolation uma década depois: a Inteligência Artificial.

Imagem do jogo Alien: Isolation. Em primeiro plano, um Xenomorfo olha para o lado. É possível observar as costelas expostas e o longo rabo e mãos afiadas da criatura. Em segundo plano, há uma porta pouco iluminada, assim como todo o cenário que cerca o Alien.
O ‘organismo perfeito’ do Alien cria dificuldades imprevisíveis para cada jogador (Foto: SEGA)

É a partir do desenvolvimento complexo dos sentidos apurados do Alien que um dos maiores desafios do gênero do Terror na mídia dos videogames nasce. O Xenomorfo pode circular por ventilações e corredores livremente em uma velocidade impressionante. Além disso, o inimigo é atraído pelo som e pela própria visão periférica. Mesmo que o jogador se mantenha distante, a I.A. do jogo é treinada para sempre guiar a criatura para próximo do player. Até mesmo buscar esconderijo dentro de armários da Sevastopol, durante a missão Quarentena, por exemplo, não é garantia de paz, já que existe ainda uma mecânica para segurar a respiração de forma correta. Se você falhar… bom, o Alien vai arrancar a porta fora, abrir a boca enorme e o resto você já sabe.  

Um dos exemplos de como todas essas mecânicas anteriores somadas podem criar experiências marcantes para cada jogador acontece pouco depois da metade da narrativa, em que uma facção de humanos hostis surge em Sevastopol. Neste trecho, já é possível entender mais detalhadamente como os instintos do Alien funcionam. Os residentes da estação estavam fortemente armados e ameaçando acertar qualquer um que se mexesse. Realizar essa ação causa um tiroteio frenético, com todos os inimigos apontando as armas na direção do jogador. Mas o centro de todo o barulho vinha das armas nas mãos deles. Resultado? O Alien foi atraído e aniquilou todos os inimigos. Amanda Ripley consegue fugir. 

São tantos fatores que criam um senso de surpresa que chega a ser triste pensar que o mesmo não pode ser dito dos androides, também chamados de Working Joe. Pode soar irônico, mas esses personagens são extremamente mecânicos, engessados e previsíveis. Embora sejam lentos e fáceis de fugir, o jogo, às vezes, dependeu muito de puzzles para alguns trechos com as presenças deles, já que as ferramentas disponíveis não davam conta da quantidade de inimigos. O jeito, muitas vezes, era deixar a personagem agachada e se mover conforme a rota programada dos robôs ou, até mesmo, correr e tentar evitar ser pega.

Imagem do jogo Alien: Isolation. É uma imagem em close up da personagem Amanda Ripley. A engenheira está com um semblante preocupado e utilizando um equipamento na cabeça que inclui um microfone e uma lanterna, presos À cabeça por uma tiara prateada. Ela olha e conversa atentamente em direção a um computador que está fora do quadro.
Tal mãe, tal filha: Amanda Ripley também é uma final girl (Foto: SEGA)

Outro ponto não tão positivo é o mapa. Embora o radar possua uma espécie de bússola que guia o jogador para o objetivo, há diversos momentos que fica fácil se perder nas idas e vindas entre elevadores e transportes para outras partes da estação. É absolutamente admirável o quão bem feita e plausível é a arquitetura do jogo, com os cenários não envelhecendo e sem problema algum na questão gráfica, mesmo anos depois. Ainda assim, a criação de um labirinto pode até ser um conceito bom para aumentar a tensão de se perder com um bicho bem pior que um minotauro te perseguindo. Todavia, em momentos mais monótonos da história pode gerar, sim, uma frustração quando o mapa não oferece indicações claras. 

Alien: Isolation, porém, possui boas performances nas cutscenes, isto é, as cenas que são inseridas para conectar as fases do jogo e avançar na trama principal. São esses os momentos em que outros personagens começam a aparecer, como o paranóico Axel (Matheus Carrieri), o injustiçado Samuels (Paulo Ávila) e o delegado extremamente suspeito Waits (Hélio Vaccari). Nenhum desses personagens particularmente encanta, mas conseguem alcançar o nível de dramaticidade necessário em momentos marcantes. Nesse sentido, a narrativa acaba em uma situação complicada: para poder causar a sensação de isolamento pela jogabilidade, diálogos para quebrar o silêncio não são exatamente recorrentes. 

Imagem do jogo Alien: Isolation. Trata-se de uma cena na visão de Amanda Ripley. As bordas da imagem são curvas e tampadas e toda a imagem é repleta de reflexos de luz, pois Ripley está utilizando um capacete espacial. Na frente dela, quatro xenomorfos avançam em direção a ela. Todos estão com as bocas abertas, revelando uma segunda boca com os mesmos dentes brilhantes de dentro dela no lugar da língua. Em planos mais distantes, explosões e outros planetas no espaço são visíveis.
Alien: Isolation não poupa esforços para aproveitar o melhor do terror que a franquia tem a oferecer (Foto: SEGA)

A personagem de Amanda Ripley (Fernanda Bullara), inclusive, poderia se tornar menos interessante justamente por conta desse silêncio constante. Felizmente, isso não acontece. Em diversos momentos, é possível perceber como ela se demonstra uma personagem criativa, extremamente capacitada e bastante direta com os outros, pois sabe que não tem tempo a perder. Amanda parece muito com a própria mãe, obviamente, mas possui uma camada maior causada pelo luto nunca processado. 

Nesse sentido, dá a impressão de que ela já chega na aventura esperando algo de errado. A personagem segue o conceito apresentado em The Walking Dead, de que os protagonistas nunca viram nada parecido com zumbis, nem mesmo em filmes, e, por isso, sentem medo genuíno. Amanda Riley é uma personagem que nunca viu o Xenomorfo até o começo da história; no entanto, tem certeza, assim que o vê, que é a criatura mais mortífera da história do universo. É isso que a salva. 

É essa mesma sensação de completa vulnerabilidade, mas ao mesmo tempo de empoderamento e determinação diante do desconhecido, que torna Alien: Isolation uma experiência eufórica para quem joga também. Toda a gama de sentimentos possíveis sentida pela protagonista são transmitidas para quem está segurando o controle. Se o Alien é o organismo perfeito, a sensação de conseguir escapar utilizando poucos recursos, escondendo-se estrategicamente e utilizando ferramentas de forma criativa, causa um alívio que poucos jogos de terror conseguem oferecer. Alien: Isolation é um deles, mesmo 10 anos depois.

Imagem do jogo Alien: Isolation. Da esquerda para a direita, há um sensor de movimento improvisado com um sensor de LED azul de duas barras e coberto de fitas adesivas. No centro da imagem, mais ao fundo, há um alienígena de quatro patas e membros bastante finos andando e prestes a atacar. O cenário é ao ar livre, à noite, em um chão gramado com uma árvore À direita e uma estrutura metálica à esquerda
A Silent Place: The Road Ahead copia? Copia, sim, mas não faz igual (Foto: Saber Interactive)

Desde então, continuações espirituais – e bastante promissoras – inspiradas no game começaram a ser produzidas. Um jogo VR que está para ser lançado chamado Alien: Rogue Incursion, por exemplo, parece utilizar muitos elementos parecidos. Inclusive, demora aproximadamente cinco segundos lendo os comentários dos trailers de A Quiet Place: The Road Ahead (2024), inspirado na franquia Um Lugar Silencioso (2018), para encontrar comparações com o Alien: Isolation. Outra experiência que está por vir é Jurassic Park: Survivor, que aplica a fórmula em um cenário que também se passa bem próximo dos acontecimentos do clássico de 1993, dirigido por Steven Spielberg

Além dessas influências mais óbvias, pode-se dizer que Alien: Isolation teve seus toques em outros jogos como Prey (2017) e Amnesia: The Bunker (2023). Até mesmo Fede Alvarez, diretor do recentemente aclamado Alien: Romulus (2024), revelou ter jogado o game perto do lançamento de Don’t Breath (2013) e gostou do quanto o Xenomorfo e os cenários inspirados na Nostromo ainda podiam aterrorizar nos dias de hoje. Felizmente, mesmo após uma década, a aventura infernal de Amanda Ripley ganhou um aumento de 328% na quantidade de jogadores simultâneos na Steam. De certa forma, se Alvarez foi influenciado, agora é a obra dele que inspira uma série de pessoas a revisitar ou, até mesmo, experienciar esse jogo pela primeira vez. 

Para a surpresa e alegria de muitos fãs, justamente na data de comemoração dos 10 anos do jogo, o diretor criativo Al Hope anunciou nas redes sociais que uma sequência está em desenvolvimento. A Creative Assembly será, novamente, a desenvolvedora encarregada. Alien: Isolation teve, para o choque de muitos, uma  continuação oficial anos atrás: Alien: Blackout (2019). Todavia, trata-se de um jogo para o celular e nos moldes da gameplay de Five Nights at Freddy’s (2014). O game foi desativado e não está mais disponível nas plataformas de aplicativos. Agora, basta esperar para ver se a próxima aventura de Amanda Ripley vai fazer jus ao primeiro capítulo e expandir as pontas soltas, mecânicas e potenciais narrativas e tecnologias que podem oferecer mais uma experiência inesquecível.

Imagem do jogo Alien: Isolation. No centro da imagem há a silhueta de uma mulher de cabelos longos e enrolados. Ela utiliza uma regata e uma calça estilo cargo. Ao redor dela, um corredor cilíndrico cheio de cabos metálicoscanos e vigas a cercam. Há uma fonte de luz amarela forte vindo da frente da personagem, permitindo observar somente a silhueta aterrorizada e andando furtivamente.
Tanto Alien: Romulus quanto Alien: Isolation se passam cronologicamente entre o primeiro e segundo filmes (Foto: Disney+)

De forma geral, Alien: Isolation consegue trazer essa ‘ansiedade boa’ que somente as melhores obras do Terror oferecem. É o tipo de experiência que pode levar o dobro de tempo para quem sente medo até de correr em jogos do gênero para não chamar a atenção. Ainda assim, não há quem não sinta o tempo passar desfrutando dessa obra. Chega a ser impossível, depois de passar por tanta tensão, não esboçar um sorriso quando finalmente se desbloqueia o lança-chamas. Apesar de todo o estresse sentido por Amanda Ripley, o alívio quando o monstro vai embora também é sentido por quem segura o controle. Os sustos também, é claro. Muitos, muitos, muitos sustos mesmo.

PERSONA





quarta-feira, 9 de julho de 2025

Batman / O Cavaleiro das Trevas III: mais um retrato da paranoia de Frank Miller

Dark Knight III

Batman – O Cavaleiro das Trevas III: mais um retrato da paranoia de Frank Miller

Continuação do quadrinho clássico começa bem, mas é logo barrado pela cruzada antiterrorista do autor.Após uma sequência ruim de obras, Miller retorna a sua série mais conhecida. (Créditos: DC Comics)



Lucas Marques dos Santos
28/03/2016

O primeiro 
Cavaleiro das Trevas de Frank Miller, lançado em 1986, é um inegável marco nas histórias de quadrinhos ao situar os super-heróis em um ambiente político, de violência explicita e midiatizado. Junto com Watchmen, de Alan Moore, os quadrinhos de super-heróis começaram um movimento de conquista de um público que ia além do infanto-juvenil masculino já estabelecido. Hoje, 40 anos depois do original, O Cavaleiro das Trevas III está sendo publicado – por enquanto somente nos EUA com o título Dark Knight III: The Master Race. Entretanto muita coisa se passou e Frank Miller não é o mesmo.

As obras de Frank Miller no aspecto temático podem ser divididas em um ponto histórico, do qual este novo quadrinho do Batman não é exceção: os atentados de 11 de setembro de 2001. Nos anos 80, Miller transformou a estética dos quadrinhos americanos ao incorporar técnicas e temas do mangá, que ainda era pouco popular no ocidente. Ao passar da Marvel, na qual escreveu e desenhou excelentes histórias do Demolidor, para DC, o artista propôs uma história distópica protagonizada por um Batman envelhecido e aposentado. Pela narrativa gráfica ousada (que incluía, por exemplo, muitos dos recursos dos telejornais e jogos de sombra e luz) e pelo teor adulto, O Cavaleiro das Trevas se tornou quase que um instantâneo sucesso de vendagem e crítica.

Miller continuaria a produzir obras de sucesso com contribuições importantes principalmente para os gêneros noir (Batman Ano Um, Sin City) e ficção científica (Martha Washington vai à Guerra, Elektra Assassina). O fascínio pela violência e pela política militar podem ser identificados em grande parte de sua obra, como na famosa 300, mas sem transparecer uma posição política conservadora.

A queda das torres gêmeas foi presenciada pessoalmente por Miller e as consequências dessa experiência foram expressas justamente na aguardada continuação de O Cavaleiro das Trevas. Utilizando-se de um estilo gráfico mais debochado, Miller expandiu a paranoia típica do Batman para todo o universo da DC, atribuindo aos heróis características violentas e autoritárias.

Os projetos de Miller então passaram a ser cada vez mais escassos e graficamente caricatos, como All Star Batman e Robin, parceria com o desenhista Jim Lee que, de tão mal recebida, foi cancelada. Mas o extremo dessa visão deturpada se deu pelo álbum Holy Terror, de 2010, na qual o protagonista entra numa matança aos terroristas islâmicos, em uma visão totalmente maniqueísta. O gibi, aliás, foi originalmente concebido como uma história do Batman.

O Cavaleiro das Trevas III não é exceção nesta fase de Miller, o que decepciona levando em conta o começo promissor da série. Inteligentemente a DC Comics colocou Miller para trabalhar junto ao roteirista Brian Azzarello (especialista em noir, como 100 Balas) e do desenhista Andy Kubert, detentor de uma boa narrativa gráfica e advindo de uma família de quadrinistas. Completando a equipe está o lendário arte-finalista Klaus Janson, que trabalhou no primeiro Cavaleiro das Trevas.

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Recursos narrativos televisivos (imagem) se tornaram notórios no primeiro Cavaleiro das Trevas, mas não retornam com o mesmo impacto. (Créditos: Comicbook.com)

O primeiro número parte de alguns acontecimentos estabelecidos anteriormente: Batman está desaparecido, assim como sua Robin Carrie Kelley; Superman se aposentou ao se auto-congelar; e Lara, filha das cenas bizarras de amor entre Superman e Mulher Maravilha em Cavaleiro das Trevas II, está crescida. Mas apesar desse mundo estranho criado anteriormente por Miller, é surpreendente a sobriedade e o teor progressista dessa primeira história em relação ao restante da série.

A primeira cena mostra um jovem negro correndo da polícia, retomando a discussão da violência policial, em voga na mídia norte-americana após o assassinato de Michael Brown. Essas páginas também marcam a primeira aparição do Batman, contra os polícias, após anos. Agora, em conjunto com quadros de telejornais, característicos da narrativa de Miller, está também a repercussão da internet.

A equipe criativa é hábil em estabelecer os núcleos do enredo, mais pela dinamicidade do desenho de Kupert e das ideias de página de Miller do que pelos recordatórios já manjados do autor. O mundo deste Cavaleiro das Trevas, pelo menos ao que indicava essa primeira edição, é protagonizado por mulheres: a Mulher-Maravilha é a única dos heróis clássicos na ativa, Lara é talvez a pessoa mais poderosa da Terra, Gothan possui uma comissária e o ótimo desfecho da trama contribui para essa tese.

De início, a aproximação da narrativa policial, típica do coautor Brian Azzarello, e as poucas extravagâncias pareciam prometer um bom gibi. Uma história curta escrita e desenhada por Miller completa a edição (todos os capítulos terão uma, mas a cargo de outros artistas), que mostra o empenho do Capitão Átomo para libertar os cidadãos kryptonianos de Kandor, cidade minimizada e engarrafada assim como nas velhas histórias do Superman. O desenho de Miller é fortemente estilizado, em algumas partes soando interessante, mas na maior delas apenas preguiçoso.

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A capa da história extra exemplifica bem o desenho caricato de Miller (Crédito: DC Comics)

A segunda edição começa com  uma cena de fuga policial grandiloquente e empolgante, bem ao ritmo dos filmes de ação de Michael Mann. Mas eis que chega a sequência que modifica e compromete toda a série: o Capitão Átomo consegue finalmente extrair os kryptonianos da garrafa a tempo de perceber que fora manipulado por fanáticos religiosos que dizimaram a antiga Kandor.

Uma virada de roteiro ao mesmo tempo surpreendente e inevitável, lamentavelmente. Miller mais uma vez não consegue se dissociar da sua cruzada paranoica e a faz de modo vulgar e preconceituoso. A ligação é perceptível já no primeiro quadro pelas roupas: todos de preto, as mulheres cobertas até o rosto. Todo o bom alicerce da primeira edição é derrubado para dar lugar à “alegoria” de Miller. Os kryptonianos terroristas são representados pelas frases e ações mais estereotipadas e unidimensionais possíveis. Mas a falta de bom senso atinge seu ápice na frase “nem todos os kryptonianos são maus”, emulando uma postagem de rede social.

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Na metáfora vulgar de Miller, Kryptonianos matam jornalistas e destroem monumentos históricos (Créditos: DC Comics)

É difícil pensar o que poderia modificar o futuro da série, que tende a ser cada vez mais desinteressante e ofensiva. Miller jogou de lado a interessante história policial que vinha construindo – com a ajuda nos roteiros de Azzarello e o ótimo desenho de Kupert – para mais uma vez pregar contra os terroristas islâmicos. E mais uma vez de maneira artificial e preconceituosa.

PERSONA



terça-feira, 8 de julho de 2025

O monstro no túmulo / As Histórias extraordinárias de Edgar Allan Poe

Capa do livro Histórias extraordinárias, de Edgar Allan Poe. Na imagem, o livro está de pé em um fundo branco. O livro é uma edição em capa dura, de cor roxa, com o nome de Edgar Allan Poe escrito em fonte de cor amarela, com uma caveira desenhada logo acima de seu nome. Abaixo está escrito Histórias Extraordinárias em fonte de cor igualmente amarela. Abaixo está o logo da editora Companhia das Letras, com a fonte de cor amarela 

O monstro no túmulo: as Histórias extraordinárias de Edgar Allan Poe

A edição de Histórias extraordinárias, publicada pela Companhia das Letras, reúne 18 contos de Edgar Allan Poe, com seleção, apresentação e tradução de José Paulo Paes, oferecendo ao leitor um panorama da obra do grande mestre do Terror (Foto: Companhia das Letras)

Bruno Andrade

Há uma linha tênue entre o Horror e o Terror. Enquanto no primeiro o apreço pelo sobrenatural e sua respectiva negação da realidade são predominantes (lembre-se do Horror, o Horror!” anunciado pelo agente Kurtz em O Coração das Trevas), o segundo preza pela criação de uma atmosfera repleta de suspense, cuja brincadeira consiste justamente na ausência do mágico, e na dúvida se determinadas situações ocorreram ou se estão na cabeça dos personagens. Na Literatura, há predominância dos textos de terror, e, de forma mais apropriada, trata-se de uma categoria precursora ao suspense psicológico, na qual ambos os gêneros se cruzam quando o assunto é aterrorizar. Em Histórias extraordinárias, uma coletânea de 18 contos traduzidos pelo poeta José Paulo Paes, o leitor encontrará a angústia e a engenhosidade de Edgar Allan Poe, um dos principais inventores do Terror moderno.

São poucas as coisas que se assemelham a auspiciosa — e estimulante — sensação de que estamos sempre um passo atrás do escritor, e essa habilidade é bem desenvolvida nos contos de Poe. Nesse jogo em que somos submetidos, através de figuras de linguagem, gêneros narrativos e estruturas textuais, recebemos a catarse, possibilitada através de uma brincadeira íntima entre leitor e autor. Mas essa graça parte de um pressuposto, no qual estamos sempre observando em suspeita, analisando o mínimo em detalhe, e, de certa maneira, lançando um olhar um pouco mais crítico. No ensaio O conto policial, o argentino Jorge Luis Borges escreve que Edgar Allan Poe inventou esse jogo, e não criou um novo gênero literário, mas sim “um novo leitor, sempre desconfiado”, à espreita de uma revelação. 

Mesmo levando em conta o aspecto fundamental da crítica, que é atentar-se à obra — deixando, na melhor das hipóteses, o autor em segundo plano —, torna-se tarefa particularmente árdua não analisar alguns aspectos da vida particular de Poe, observando reflexos em sua obra. Sabe-se que ele foi um homem infeliz, e o conteúdo biográfico sobre o autor, cuja morte precoce — faleceu aos 40 anos — ainda é motivo de teorias, assegura que o contista teve uma vida conturbada, com distúrbios psicológicos e uma marca permanente da ausência paterna. A mãe morreu pouco mais de um ano após o abandono do pai, e Edgar foi morar, ainda aos dois anos, com um comerciante chamado John Allan, que o aceitou, porém se recusou a adotá-lo legalmente; aí surge o sobrenome: Allan Poe.

Embora alguns argumentem que essa ausência dos pais e uma possível inclinação a problemas psicológicos tenham dado origem a seus escritos, sabe-se que Poe foi um jovem inclinado para a Literatura desde muito cedo, e aos 18 anos publicou seu primeiro livro, Tarmelão & Outros Poemas (ainda sem tradução no Brasil). Mas o fato é que, como qualquer um que leu pode afirmar, Histórias extraordinárias é composto por contos poderosos, de enorme profundidade psicológica, mas também muito estranhos. Publicadas originalmente em 15 de fevereiro de 1845, as histórias possuem o medo e a loucura como traços em comum, às vezes de forma conjunta na mesma trama, e seus personagens não conseguem — ou podem — se desenvolver, estando sempre inseridos em espirais temporais. 

Esse aspecto evidencia a originalidade de Poe, visto que a maioria dos romancistas da época discorriam sobre as minúcias dos ambientes, com a quase delirante riqueza de detalhes, enquanto o contista norte-americano deixava de lado o moralismo e a extensão, enxugando seus textos e focando no desfecho da história. De modo a sempre considerar a reação do leitor — dispondo rigorosamente seus elementos —, ele construía, assim, a atmosfera para o clímax. Por isso sua escolha pelo gênero: o que poderia prender mais a atenção de alguém que o Terror

Talvez por essa razão os cenários em Histórias extraordinárias sejam sempre os mesmos castelos sombrios, as mesmas masmorras escuras e os recorrentes personagens misteriosos à beira da loucura. Esses elementos são fundamentais para a apreensão do leitor, que logo de cara percebe um mistério a ser desvendado. Em seus contos, a descrição dos ambientes tem o intuito de construir a atmosfera horripilante, e não é um fim em si mesmo, tendo em vista que auxilia o leitor a compreender os sentimentos do protagonista, que de forma premeditada sente que algo está errado. Ainda assim, elementos físicos misturam-se com a consciência dos personagens, e essa forma pode ser observada no trecho a seguir, retirado do conto A queda da casa de Usher:

“Débeis raios de luz avermelhada coavam-se através das vidraças e das rótulas, servindo para tornar suficientemente distintos os objetos mais proeminentes em torno; a vista, contudo, esforçava-se em vão por alcançar os cantos mais remotos do aposento ou os recessos do teto, abobado e cheio de ornatos. Tapeçarias escuras pendiam das paredes. A mobília era profusa, sem conforto, antiquada, e encontrava-se em estado precário. Muitos livros e instrumentos musicais espalhavam-se ao redor, mas não conseguiam dar nenhuma vitalidade ao ambiente. Senti que respirava uma atmosfera de angústia. Um sopro de profunda, penetrante e irremediável tristeza andava no ar e tudo invadia.”

O que é interessante notar nesse trecho é que a realidade está imposta como um mero jogo de aparências, um produto de consenso. Diferente do real, a realidade é imaginária, pois os artifícios que utilizamos para enxergá-la são possibilitados através de abstrações da consciência. Dessa forma, sabemos que não há possibilidade de se respirar “uma atmosfera de angústia”, mas conseguimos enxergar a afirmação em um cenário real, pois temos conhecimento do medo. Na verdade, não há muitas coisas que distinguem a realidade cotidiana da realidade dos contos de Poe. A diferença é que, em suas histórias, tudo ameaça ser apenas uma perspectiva. 

Porém, de forma equivalente à originalidade de Poe, os críticos da época mantiveram o tom conservador em relação às inovações propostas pelo escritor — atitude diferente da que teve o poeta Charles Baudelaire, que saudou a engenhosidade do autor norte-americano e chegou a traduzi-lo para o francês. Essa inovação, observada por Baudelaire, está presente em contos como William Wilson, cuja trama gira em torno de um rapaz que encontra um outro jovem de mesmo nome e aparência física, onde a única diferença entre ambos é o fato do doppelgänger comunicar-se somente por sussurros. 

Essa história — que inspirou a obra O Duplo, de Fiódor Dostoiévski, e também aparece com certa frequência em A Trilogia de Nova York, de Paul Auster — apresenta, de forma paradoxal, o interior humano como um outro ser, uma espécie desconhecida e por si só revoltante. Para citar novamente Borges, a história nos remete ao conto O milagre secreto, do livro Ficções (1944). Ambos os textos retratam indivíduos que abandonam a realidade, colocando o tempo em suspenso e deixando de lado qualquer tipo de lógica. Mas, como se sabe, a lógica não é garantia da verdade.

Capa da edição de bolso do livro Histórias extraordinárias, de Edgar Allan Poe. Na imagem, está escrito Edgar Allan Poe em fonte de cor branca, com um fundo de cor roxa. Abaixo, está escrito Histórias extraordinárias em fonte de cor branca, e logo abaixo escrito Seleção, tradução e apresentação de José Paulo Paes, também em fonte de cor branca. O fundo desse trecho é de cor azul. Abaixo, escrito em fonte de cor branca, está o logo da editora, escrito Companhia de Bolso. Na lateral esquerda, há um gato preto com olhos de cor laranja, em um fundo de cor branca.
A edição de bolso da obra faz alusão ao conto O gato preto, um dos mais famosos da carreira de Poe (Foto: Companhia das Letras)

O gato preto, um dos contos mais famosos do livro, traz a noção de anormalidade e uma metáfora para a deterioração do homem, destacada pela violência do protagonista. O gato, que se chama Plutão — mesmo nome do deus dos mortos na Mitologia romana —, é uma possível metáfora na qual a morte vem acertar as contas com o narrador, traçando, ainda, um limiar entre a sanidade e a loucura. Em A carta roubada, considerado o primeiro texto da literatura policial, há a investigação do detetive Auguste Dupin sobre o desaparecimento de uma carta furtada pelo Ministro D., sendo Dupin muito parecido a Sherlock Holmes — e isso não ocorre por acaso, pois Poe foi a influência declarada de Arthur Conan Doyle. 

Mais de 175 anos depois de seu lançamento, Histórias extraordinárias ainda apresenta aos leitores de primeira viagem uma profundidade e imersão surpreendentes, mesmo em tempos atuais. A forma envolvente dos contos — seja pelo terror ou pela construção da narrativa — estimula e cativa o imaginário, através de uma escolha exata de palavras e situações. Diferente de William Wilson, o duplo de Edgar Allan Poe é o que restou, definindo a maneira de enxergar a obra desse autor atormentado. Ele é o gênio do conto, o inventor de um novo gênero literário, o mestre do terror, mas, acima de tudo, é o escritor. 

PERSONA



segunda-feira, 7 de julho de 2025

Drácula / O horror de um clássico

Capa do livro Drácula de Bram Stoker pela editora Principis. Na imagem, aparecem representados em um tom de azul escuro: o castelo do Conde acima de um monte envolto por um grande portão e árvores tortuosas, na frente do portão está a sombra do próprio vampiro e de pequenos morcegos. Ao fundo a cor vermelho sangue toma conta do espaço do céu e o nome do livro e do autor aparecem estampados.

Drácula: o horror de um clássico

Exprimindo a atemporalidade da literatura gótica, Drácula de Bram Stoker é a prova de que existem clássicos que envelhecem como vinho (Foto: Editora Principis, com tradução de Karla Lima)

Jamily Rigonatto

“Quando o Conde viu meu rosto, os olhos dele brilharam com um tipo de fúria demoníaca, e de repente ele fez um movimento para agarrar meu pescoço. Eu me desviei, e a mão dele tocou a corrente onde estava o crucifixo. Aquilo provocou uma mudança instantânea, pois a fúria passou tão depressa que eu mal podia acreditar que tinha existido.”

Não há quem escute o nome Drácula e não reconheça a famosa representação vampiresca e suas lendas folclóricas. Ao longo dos anos, o Conde se consolidou como um personagem clássico dos gêneros de Terror e Horror e ganhou diversas releituras das mais variadas áreas, nas quais é descrito do grotesco ao carismático. A figura imponente criada por Bram Stoker no livro Drácula, de 1897, popularizou os vampiros no imaginário do público e alimentou mitos sobre o assunto. Hoje, a obra segue ganhando novas edições e sendo um dos textos mais apreciados pelos leitores do gênero. 

Fazendo da Inglaterra um cenário misterioso e cheio de um suspense encantador, Stoker nos leva a conhecer o vampiro em detalhes a partir de um conjunto muito plural de relatos retirados de documentos, diários, cartas e recortes jornalísticos atribuídos aos personagens do escrito. Jonathan Harker, um procurador de Exeter, é convidado a visitar o castelo de Drácula na Transilvânia, e, ao notar os comportamentos um tanto singulares que o cercam, o personagem expressa em seu diário uma experiência no mínimo perturbadora que o deixa a iminência da morte. 

A personalidade gentil e cordial encenada pelo Conde faz com que ele pareça uma companhia agradável e retarda as desconfianças sobre o mesmo, mas, em certo ponto, o personagem deixa escapar um comportamento animalizado e repulsivo, com capacidades sobrenaturais que culminam em eventos traumáticos. Mais tarde são acrescentadas ao texto as vozes de Mina Murray – futura esposa de Jonathan, que, enquanto espera notícias do amado, também testemunha situações macabras e curiosas – e Lucy Westenra, que se torna uma das vítimas dos ataques do Lorde Vampiro.

O avanço de acontecimentos peculiares em Londres chegam até Lucy, que passa a se queixar de uma estranha letargia que a deixa pálida e sem forças – não demora muito para que ela precise de um médico, o que abre o arco para a entrada de outros personagens que se envolvem nesse grande mistério de dentes afiados. Logo, os sujeitos se juntam e Abraham van Helsing, John Seward, Arthur Holmwood e Quincey Morris assumem um papel de heroísmo marcante nos livros ingleses da época.

A partir disso, a narrativa assume um tom um tanto maniqueísta, que coloca em jogo contraposições entre virtude e pecado, puro e profano e outros aspectos de uma dualidade extrema, que sempre reafirmam Drácula como um ser amaldiçoado que personifica o mal. A religião se torna um tema relevante na história e se mostra tão poderosa que adota uma função bélica contra a entidade. 

Mesmo que a ideia de um ser maligno que dorme em um caixão e é capaz de sugar a vida das pessoas seja considerada fantástica, a maneira como a alternância dos pontos de vista é colocada na história acrescenta detalhes à trama que trazem um tom realista e autêntico aos acontecimentos mais absurdos. E ainda que o formato da escrita epistolar possa causar estranheza em um primeiro momento, a leitura facilmente se adapta à ausência de um narrador e consegue se tornar surpreendentemente fluida, dinâmica e envolvente.

Os quatro homens se juntam aos recém-casados Jonathan e Mina Harker em uma busca incansável atrás dos rastros sangrentos de Drácula. Os seis somam seus escritos e tudo que presenciaram até o momento para que possam calcular e impedir os próximos passos, ou bater de asas, do vampiro. Em uma jornada incerta e enigmática, o grupo enfrenta o medo em sua forma mais pura e a minuciosidade na forma em que os sentimentos são descritos cria um cenário perfeitamente sombrio e assustador. 

As cenas ficam longe de serem brutais e o terror da obra – contrariando autores como Stephen King – se constrói em cima da expectativa, da tensão e do temor causados por alguém tão ubíquo quanto o Drácula – alguém que pode estar sob quaisquer formas ou espaços, alguém que pode estar bem mais perto do que imaginamos. Assim a narrativa se dá, e entre névoas inebriantes e lobos famintos, os personagens enfrentam o desconhecido de forma nobre e corajosa. Sem um final dramático ou reviravoltas, o romance consegue seu “felizes para sempre”

Drácula representa um debruçar completo sobre a imagem de um vampiro, dos dentes pontudos ao reflexo faltante do espelho, com um texto que conquista sem apelar para nada além de sensações tão bem escritas que se tornam vívidas. É o livro que todo amante de Terror ou pelo menos de mitologias precisa ter a oportunidade de contemplar. Aproveitando o mês, tenham um bom Halloween e não se esqueçam das suas flores de alho e seu crucifixo, afinal, nem todo morcego é tão inocente quanto parece. 


PERSONA