sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Abdulrazak Gurnah ganha o Nobel de Literatura por sua “comovedora descrição dos efeitos do colonialismo”

 

Abdulrazak Gurnah


PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA 2021

Abdulrazak Gurnah ganha o Nobel de Literatura por sua “comovedora descrição dos efeitos do colonialismo”

O escritor tanzaniano, radicado no Reino Unido desde o final da década de 1960, leva o prêmio mais importante das letras universais



Andrea Aguilar
Madri, 7 Oct 2021

Começou a escrever aos 21 anos como um jovem refugiado tanzaniano no Reino Unido, e nesta quinta-feira, aos 73, estava na cozinha da sua casa quando recebeu um telefonema da Academia Sueca para lhe informar que ganharia o maior prêmio literário que existe. Horas depois, em Estocolmo, era anunciado ao público que o Prêmio Nobel de Literatura de 2021, dotado de 10 milhões de coroas suecas (6,28 milhões de reais), foi dado ao tanzaniano Abdulrazak Gurnah, “por sua comovedora descrição dos efeitos do colonialismo na África e do destino dos refugiados, no abismo entre diferentes culturas e continentes”. A surpresa foi notável não só para o autor, cujo nome estava fora das listas e das apostas.


Nascido em 1948 na ilha de Zanzibar, Gurnah escreve em inglês e já lançou 10 romances – todos inéditos no Brasil – como Paradise (1994), que foi indicado ao Booker Prize e ao Whitebread Prize. Outros títulos conhecidos são By the sea (2001), Desertion (2015) e os mais recentes Gravel heart (2017) e Afterlives (2020), elogiados pela crítica. Na manhã desta quinta (hora do Brasil), Anders Olsson, membro da academia, explicou como em seu “magnífico último livro ele se afasta das descrições estereotipadas e abre nosso olhar a uma África culturalmente diversa, pouco conhecida em outras partes do mundo”.



Gurnah também escreveu e editou ensaios sobre literatura pós-colonial e é professor emérito no departamento de língua inglesa da Universidade de Kent. Em seus textos analisou o trabalho de outro Nobel, V.S. Naipaul, e de um eterno candidato ao prêmio da Academia, Salman Rushdie – sobre quem também publicou um livro de introdução à obra, Companion to Salman Rushdie (Cambridge University Press, 2007). Mas, na ficção do Nobel de 2021, o que mais ecoa é provavelmente esse exílio britânico sobre o qual o Nobel sul-africano J. M. Coetzee escreveu em Verão. Gurnah é o sexto africano a obter o prêmio, depois do argelino Albert Camus (1957), do nigeriano Wole Soyinka (1986), o egípcio Naguib Mahfouz (1988), e dos sul-africanos Nadine Gordimer (1991) e J. M. Coetzee (2003).


No ano passado, o Nobel de Literatura foi atribuído à poetisa americana Louise Glück. Em 2019, para a polonesa Olga Tokarczuk. O prêmio de 2018, ao austríaco Peter Handke, foi adiado para 2019 devido aos escândalos de abusos sexuais e vazamentos que atingiram a academia sueca no ano anterior. O prêmio para o romancista tanzaniano neste ano revela um autor desconhecido para o grande público, algo que também é parte da tradição da Academia Sueca.


O autor chegou ao Reino Unido no final da década de 1960, após sair do seu país em um momento no qual a minoria muçulmana estava sendo perseguida. Tinha estudado na Universidade Bayero Kano, na Nigéria, e de lá se transferiu para a Universidade de Kent, onde se doutorou em 1982. Seus estudos se centram no pós-colonialismo e no colonialismo, especialmente relacionado com a África, o Caribe e a Índia.


Abdulrazak Gurnah se impôs na decisão final diante de outros nomes que apareciam como apostas para o prêmio neste ano, como a francesa Annie Ernaux, o queniano Ngũgĩ wa Thiong’o, o japonês Haruki Murakami, o sul-coreano Ko Un, a guadalupense Maryse Condé ou a chinesa Can Xue. Outros autores que sempre aparecem como favoritos são Don DelilloSalman RushdieAdonis, Jon Fosse, Mircea CărtărescuHilary Mantel e Margaret Atwood.


EL PAÍS

quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

Volta ao mundo em livros / Tanzânia / Desertion

 



VOLTA AO MUNDO EM LIVROS: TANZÂNIA – DESERTION


Por JULIA BOECHAT
22/10/2021


Quando o prêmio Nobel de literatura de 2021 saiu para Abdulrazak Gurnah, um autor da Tanzânia, resolvi que o país merecia pular a fila. Fiquei com muita vontade de ler algo dele, e ele já estava na minha lista como um autor sugerido para a Tanzânia, então resolvi unir o útil ao agradável.

Vários romances dele pareciam interessantes, mas resolvi ler Desertion. O romance começa em 1899, quando Hassani, dono de uma pequena loja em Zanzibar, encontra um inglês passando mal na rua. Ele acha primeiro que o homem é uma aparição, e depois pensa que seria melhor deixar que um dos ricos da ilha tome conta dele, mas decide que é sua obrigação como muçulmano cuidar de um desconhecido doente. Como no good deed goes unpunished, ele é acusado por outro europeu de ter roubado e tentado assassinar o hóspede. Quando o inglês, Martin Pierce, recupera os sentidos, ele tenta reparar o dano, e acaba se apaixonando no processo pela irmã de Hassani, Rehana. Rehana é cercada de escândalos, já que o pai dela era indiano e ela foi abandonada pelo marido, também indiano, e quando a relação com um europeu se soma a isso, ela é forçada a abandonar a cidade.

No meio da história, começamos a descobrir mais sobre o narrador, Rashid, que abandonou Zanzibar anos antes, enquanto ele nos conta outra história de amor, a do seu irmão, Amin, com Jamila, outra mulher cercada por escândalos, para começar, o de ser uma descendente da relação proibida entre Martin e Rehana. Eles crescem na Zanzibar dos anos 50, na época da independência da Inglaterra, quando a elite omani do lugar foi expulsa do país. Com tudo isso, dá para sentir muito no texto a nostalgia de um autor por um mundo que não existe mais, por uma mescla de pessoas, línguas e culturas que era única. As relações me pareceram quase idealizadas no início do livro, cheias de um romanticismo, começando na própria profissão de Martin Pierce como um orientalista. E quanto mais a relação é revisitada nos olhos de Rashid, morando em uma Inglaterra onde ele recebe o tratamento reservado para imigrantes africanos e muçulmanos, mais ele vê as ligações entre esses casais e o colonialismo inglês em Zanzibar. Com isso, fiquei pensando muito sobre o título, Desertion, e achei uma resenha escrita pela Laila Lalami que expressou tudo o que eu queria dizer sobre ele:

“The desertion of the title should, by now, be fairly straightforward. White men desert their native lovers, Muslim men desert liberated partners, and young, educated men desert Zanzibar for the comforts of Britain. But there is another kind of desertion that haunts the novel: the British colonial experience. Indeed, Gurnah seems to suggest that Britain “deserted” its colonies, like the islands of Zanzibar, before the time was right. In a postcolonial novel this might seem like a startling assertion, but it is not new to Gurnah. One of the main characters in By the Sea remarks that he married in 1963, ‘a year before the British departed in a huff and left us to the chaos and violence that attended the end of their empire.’ Gurnah appears to fault the British for not living up to their responsibilities, for disrupting a social order without being asked and then leaving the resulting problems for others to solve. One could even argue that the disjointed narrative in Desertion is deliberate, that it is Gurnah’s way of reflecting a world in which relationships between people, between countries, are interrupted before they have run their course. Seen in this light, the novel has a staying power that belies its quietness.”

Já vi por esse romance por que o Gurnah é tão amado, e por que seu Nobel foi tão celebrado. Quando ele ficou sabendo do prêmio, ele respondeu que ele gostaria mesmo de ter mais leitores, e acho que em breve isso será possível no Brasil, já que já estão preparando traduções de seus romances. Zanzibar me parece muito interessante desde que eu fiz uma aula sobre o Oceano Índico, e a atmosfera desse romance foi perfeita para aprender mais sobre a ilha, e, por isso, foi uma escolha perfeita para a Tailândia.

VOLTA AO MUNDO EM LIVROS


terça-feira, 28 de dezembro de 2021

Obra de Abdulrazak Gurnah editada pela Cavalo de Ferro em 2022

Abdulrazak Gurnah

 

Obra de Abdulrazak Gurnah editada pela Cavalo de Ferro em 2022

A obra do escritor tanzaniano Abdulrazak Gurnah, vencedor do Prémio Nobel de Literatura de 2021, vai começar a ser editada em Portugal pela Cavalo de Ferro, a partir do início do próximo ano, anunciou hoje a editora.



18:04 - 26/10/21 POR LUSA
CULTURA 
ABDULRAZAK GURNAH

A publicação da sua obra começará em fevereiro/março de 2022 com "Afterlives", o mais recente romance do escritor que se radicou no Reino Unido em 1968 para fugir da perseguição religiosa no seu país.

Seguem-se "Paradise", a obra que revelou Abdulrazak Gurnah como escritor, em maio, e "By the Sea", em setembro.

"Paradise", de 1994, partiu de uma viagem de investigação que o autor fez à África Oriental por volta de 1990, e inclui uma referência a Joseph Conrad.

"Afterlives", publicado em 2020, é uma espécie de sequela de "Paradise", pegando-lhe no ponto em que acaba: o cenário é o início do século XX, um tempo antes do fim da colonização alemã da África Oriental em 1919.

Quanto ao romance "By the sea", editado em 2001 e o único do autor que teve publicação em Portugal, pela Difel, em 2003, com o título "Junto ao mar", foca-se na identidade e autoimagem dos refugiados.

No início de 2023, a Cavalo de Ferro prevê publicar "Desertion", romance de 2005, que usa uma história de paixão trágica para iluminar as vastas diferenças culturais na África Oriental colonizada.

"É um absoluto privilégio incluir Abdulrazak Gurnah entre os autores da Cavalo de Ferro e poder divulgar a sua obra junto dos leitores portugueses. Uma obra importante, que ajuda a repensar questões que se posicionam no centro das preocupações do mundo atual, com uma voz que ainda teima em ser considerada periférica", afirmou o editor da Cavalo de Ferro, Diogo Madre Deus.

Abdulrazak Gurnah, nascido em 1948 em Zanzibar, na Tanzânia, foi o primeiro negro africano a ser reconhecido pela Academia Sueca em mais de 30 anos, depois do nigeriano Wole Soyinka em 1986.

Todo o seu trabalho e obra foi dedicado aos legados do colonialismo, exílio e dos refugiados, temas que refletem a sua própria experiência de vida.

O autor cresceu em Zanzibar, mas após a libertação pacífica do domínio colonial britânico, em dezembro de 1963, Zanzibar passou por uma revolução que, sob o regime do Presidente Abeid Karume, levou à opressão e perseguição de cidadãos de origem árabe, e à ocorrência de massacres.

Pertencente ao grupo étnico vitimizado, após terminar a escola Abdulrazak Gurnah foi forçado a deixar a sua família e a fugir do país, a recém-formada República da Tanzânia. Tinha então 18 anos de idade.

O autor, que vive no Reino Unido desde então, foi distinguido "pela sua penetração descomprometida e compassiva dos efeitos do colonialismo e do destino dos refugiados no espaço entre culturas e continentes".

Segundo a Academia Sueca, "a dedicação de Gurnah à verdade e a sua aversão à simplificação são impressionantes. Isto pode torná-lo sombrio e intransigente, ao mesmo tempo que segue os destinos dos indivíduos com grande compaixão e compromisso inflexível".

A academia destacou ainda, na sua obra, "uma exploração interminável impulsionada pela paixão intelectual", que está presente em todos os seus livros, nomeadamente no seu mais recente romance, 'Afterlives'.

A obra do autor será ainda publicada por outras editoras do grupo Penguin Random House, no qual se inclui a Cavalo de Ferro, nomeadamente pela chancela Companhia das Letras, no Brasil, e pela Salamandra, em língua espanhola.

Ao longo da sua carreira literária, Abdulrazak Gurnah publicou dez romances e uma série de contos. O tema da perturbação dos refugiados atravessa todo o seu trabalho, e embora o suaíli fosse a sua primeira língua, o inglês tornou-se a sua ferramenta literária.

CULTURA AO MINUTO

segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

Abdulrazak Gurnah / Un Nobel para entender que o Ocidente não é o centro do mundo

 

Abdulrazak Gurnah


NOBEL DE LITERATURA

Um Nobel para entender que o Ocidente não é o centro do mundo

Repassamos alguns dos temas que irrigam a obra do novo Nobel de Literatura, o escritor de origem tanzaniana Abdulrazak Gurnah


Chema Caballero
Madri, 9 Oct 2021

A prosa de Abdulrazak Gurnah é polida e limpa, de fácil leitura. Também tem um retrogosto às narrações e conversas que se escutam em solo africano, o que faz apreciar cada uma das palavras. Mas sob ela fluem muitas outras coisas, horrores e atrocidades cristalizados em uma constelação de temas escassamente tratados nas literaturas africanas. Um deles é a presença das comunidades asiáticas assentadas na África oriental já no século XIX. Homens e mulheres que fugiram da pobreza na Índia e na Península Arábica e encontraram um meio de vida nessa região. Muitos foram comerciantes à procura de marfim e controlaram o tráfico de escravos do interior às regiões costeiras. Mercadorias que trocavam por quinquilharias, fuzis e pólvora, como reflete o autor em sua obra.


Mais tarde, os britânicos impulsionariam a chegada dessas pessoas como mão-de-obra qualificada à construção das ferrovias, por exemplo, em suas colônias da África oriental, e para preencher os postos de trabalho para os que não consideravam os nativos aptos. Mas os indianos e os omanis já estavam lá antes da chegada dos colonos. Também na atual Tanzânia, país onde Gurnah nasceu. E, entretanto, pouco se falou deles. Nos últimos anos, alguns autores lançaram um pouco de luz sobre essas comunidades, como é o caso do queniano Peter Kimani com Dance of the Jakaranda (2017) e a britânica Hafsa Zayyan em We Are All Birds of Uganda (2020). Muito antes deles, Gurnah sempre colocou o centro de sua narrativa nessas pessoas e descreve com detalhes e ternura seus costumes e formas de vida. Talvez tenha sido o pioneiro nesse campo.


Quando os alemães chegaram à África ocidental já encontraram os asiáticos lá. E essa é outra originalidade da literatura do tanzaniano. Muitos de seus romances se situam no período colonial alemão, no que foi a África oriental alemã (a Deutsch-Ostafrika), um território que compreendia a atual parte continental da Tanzânia, além de Ruanda e Burundi. A colônia se instaurou na década de 1880 quando as tropas alemãs intervieram para deter uma revolta contra a Companhia Alemã da África Oriental que operava na região e se manteve até o final da Primeira Guerra Mundial, quando após a derrota alemã a Sociedade das Nações entregou Ruanda e Burundi à Bélgica e Tanganica, como era conhecida a parte continental da atual Tanzânia, ao Reino Unido. Em seu último livro, Afterlives (2020), Gurnah mostra a resistência alemã à invasão britânica durante a guerra e o papel desempenhado pelos askaris, as tropas nativas que lutavam (forçadamente na maioria dos casos) ao lado dos alemães.


Foram escritos muitos romances que denunciam os efeitos causados pela colonização britânica e francesa nas sociedades africanas. Vale citar como exemplo o clássico por excelência das literaturas africanas: O Mundo se Despedaça (1958) do nigeriano Chinua Achebe. Mas poucas vezes se falou da colonização alemã nas literaturas africanas.


Esta, da mesma forma que as outras, rompeu a harmonia existente nas diversas sociedades presentes no continente africano anterior à sua chegada impondo suas normas e arrogando-se a faculdade de arrecadar impostos. Além disso, tratou com mão de ferro qualquer tentativa de dissidência e rebeldia. Essa intervenção convulsionou todo um sistema social e de relações que até aquele momento funcionava e gerou uma violência nunca antes vivenciada na área. No que talvez seja o melhor romance do tanzaniano – Paradise (1994) –, essas questões estão muito presentes e de maneira muito sutil se mostra como tudo se despedaça com a chegada dos alemães.

Mas Gurnah não é ingênuo e não tenta mostrar uma África pré-colonial idílica como talvez o façam Achebe e outros contemporâneos seus. A África que existia antes da chegada dos colonos era uma África cheia de contradições com suas diferenças, desigualdades, superstições e muita crueldade. Mas, por mais brutal que ela fosse, nunca seria como a dos alemães, homens frios, rígidos e muito seguros de si mesmos, tanto que os mitos populares diziam que “comem ferro” como aponta o autor em algumas de suas obras.


Todas as colonizações se caracterizam por seus massacres, e a alemã não é diferente. Basta lembrar o genocídio dos povos herero e namaqua na atual Namíbia. Em Tanganica isso também ocorreu. Lá foram massacrados, pelo menos, 75.000 tanzanianos para reprimir a rebelião Maji Maji (1905-1907) em que diversos povos se sublevaram contra a administração alemã pelas carências e pobreza geradas pelas políticas coloniais alemãs que exigiam aos camponeses prestar trabalhos forçados nas plantações de algodão, principalmente, para ser seu produto exportado à metrópole. Isso fazia com que precisassem abandonar seus próprios campos que eram os que os alimentavam. Essa brutalidade da colônia alemã fica muito bem evidenciada na narrativa de Gurnah.


Um terceiro tema, talvez menor e mais transversal, muito presente na obra do tanzaniano, é o do racismo. Os asiáticos consideram os africanos inferiores e os tratam como tal, impondo normas discriminatórias nos espaços que controlam. Essa realidade ainda pode ser percebida hoje nos países da África oriental. O próprio Gandhi foi acusado há alguns anos desse racismo durante sua estadia na África do Sul, o que causou manifestações e protestos em várias partes do continente africano que culminaram com a retirada de suas estátuas em algumas universidades como aconteceu na de Gana em 2018. Os alemães pensam o mesmo dos nativos, mas também dos asiáticos e tratam os dois grupos com igual desprezo.


É possível que seja a presença dessas temáticas e outras na obra de Gurnah ou qualquer outro motivo o que tenha levado um comitê de suecos a conceder a ele neste ano o Nobel da literatura. Talvez também tenha influenciado o fato desse comitê parecer gostar de rotacionar de continente e de gênero a cada ano, em uma tentativa de ser paritário ou algo do tipo. Por isso, era de se supor que neste ano o prêmio iria a um homem africano. Todas as apostas indicavam o queniano Ngugi wa Thiong’o, eterno candidato à premiação e, entretanto, não foi assim.


Por mais que possamos gostar da obra de Gurnah, se nos fosse dada a oportunidade de escolher teríamos preferido que o prêmio fosse para Thiong’o. Na literatura deste estão presentes muitas das questões tratadas por Gurnah, mas talvez apresentadas com mais crueza. Além disso, a perspectiva tomada pelo queniano é diferente, mais a partir dos últimos da terra, os mais estropiados e pisoteados. Ele relata as lutas de independência, o sacrifício do povo, a esperança quando se consegue a liberdade e o desencanto da realidade quando os que lideraram aquele sonho se assentam no poder e o utilizam em benefício próprio. E essas críticas custaram a ela a prisão, a tortura e o exílio. Mas talvez Thiong’o seja revolucionário e radical demais para os membros do comitê.


Thiong’o é uma referência das literaturas africanas, bem conhecido e acompanhado em seu país, onde suas obras são publicados em kikuyu e inglês, e em todo seu continente. Gurnah é praticamente um desconhecido em seu país de origem. Mora no Reino Unido e lá desenvolveu sua carreira. É muito difícil encontrar seus livros na Tanzânia, que precisam ser importados do Reino Unido. São encontrados somente na livraria de um centro comercial frequentado principalmente por expatriados a preços que somente esses expatriados podem pagar.


Humbert, de Arusha, no norte do país, confirma isso: “Pouca gente o conhece aqui, de modo que o prêmio passou praticamente despercebido. Somente o Governo postou algumas mensagens nas redes sociais parabenizando-o”. Mussa, em Zanzibar, diz: “Parece que há um escritor famoso que nasceu nessa ilha e não sabíamos”. Por fim, Abdurahman em Dar es Salaam enfatiza o dito pelos anteriores ao afirmar que “dizer que ninguém conhece Gurnah neste país talvez seja um pouco exagerado, mas devem ser bem poucos os que ouviram falar dele antes da notícia da premiação. Aqui, somos mais de literatura escrita em suaíli”.


Mas não vamos cair na armadilha de elucidar se existem as literaturas africanas e, em caso afirmativo, o que são. O escritor sudanês Abdelaziz Baraka Sakin, autor de The Messiah of Darfur, já se meteu nessa enrascada nessas mesmas páginas.


O fato de ser capricho de suecos e não satisfazer nossos desejos não impede que o Nobel outorgue um reconhecimento merecido a um autor que conseguiu com que o horror da colonização não seja esquecido, entre tantas outras coisas. Além disso, servirá para que seus livros sejam divulgados e os leitores tenham a oportunidade de ler narrativas onde “o universal não seja o ocidental”, como diz a especialista em literaturas africanas Sonia Fernández Quincoces.



sábado, 25 de dezembro de 2021

Abdulrazak Gurnah / “Não ganhamos prêmios por sermos africanos, mas pelo que escrevemos”


Abdulrazak Gurnah



PRÊMIO NOBEL DE LITERATURA

Abdulrazak Gurnah: “Não ganhamos prêmios por sermos africanos, mas pelo que escrevemos”

Vencedor do Nobel deste ano reflete sobre o conceito de literatura pós-colonial e as limitações do reconhecimento. “É a escrita que está sendo premiada, não a percepção dos leitores”


Andrea Aguilar

28 Nov 2021


Pouco mais de um mês depois de receber a ligação da Academia Sueca para informá-lo de que havia ganhado o Prêmio Nobel de Literatura de 2021, o escritor tanzaniano Abdulrazak Gurnah (Zanzibar, 1948) se conectava na segunda-feira passada por videochamada, de Barbados. Embora mantenha a sua residência habitual no Reino Unido, no condado de Kent, em cuja universidade fez o doutorado e lecionou durante quase três décadas, viaja com frequência para as Antilhas, pois sua mulher tem família ali.


Conciso e cortês, veste uma camisa de linho branco e está em um cômodo de madeira pintado da mesma cor e que nos oferece poucas referências do lugar. Já redigiu o discurso de aceitação do Nobel, que não irá buscar em Estocolmo, mas na Embaixada da Suécia em Londres.


A organização optou por manter a cautela na pandemia e celebrar os prêmios de acordo com o país de residência dos premiados. Gurnah trata da questão dizendo que suas palavras na cerimônia “não trarão grandes surpresas” e sem querer antecipar as ideias ou tópicos que abordará nessa verdadeira aula magna.


Autor de uma dezena de romances, Gurnah não aparecia nas apostas do Nobel. Segundo ele, recebeu o telefonema do comitê sueco com genuína surpresa, mas a verdade é que seu nome já havia constado da lista de indicados a dois dos mais conceituados prêmios da língua inglesa: o Booker Prize e o Whitebread. Foi em 1994, graças ao seu quarto livro de ficção, Paradise — Paraíso na edição que será reeditada em dezembro na Espanha, com nova tradução. “Não há edição brasileira dessa obra. “Foi o romance que me permitiu chegar a muitos e novos leitores. O processo de indicação ao Booker naquele momento não era tão longo como agora, era algo mais vivo e emocionante, ou pelo menos assim foi para mim”, lembra. Fazia muito tempo que ele havia deixado a Tanzânia, em 1968, quando o Sultanato de Zanzibar foi violentamente derrubado, e se graduou no Reino Unido. Depois de passar alguns anos dando aulas na Nigéria, voltou para a Universidade de Kent, começou a escrever romances e nunca mais foi embora.


Tinha começado aquele romance muito tempo antes e a primeira coisa que escrevera era precisamente a cena com a qual a história se encerra. “Foi assim que Paradise começou, mas depois fui escrevendo outras coisas, trabalhando em outros assuntos. Aquilo ficou guardado no meu caderno por seis ou sete anos sem que eu fizesse nada com isso, embora claramente o tivesse na cabeça. Queria escrever sobre a Primeira Guerra Mundial no leste da África. O tempo passava e comecei a me perguntar como se chegou àquele momento em que os alemães começaram a recrutar soldados ali”, recorda.


Em uma viagem bem longa e sozinho por vários países da região, ficou impregnado da paisagem e de outras histórias que ouviu nesses lugares. E assim foi se aproximando de “uma outra dimensão” sobre o lugar e sua história, sobre essa costa da Tanzânia e do arquipélago de Zanzibar. Tudo isso culminou de forma tangencial em um dos temas centrais da obra de Gurnah como um todo: o colonialismo. “O primeiro encontro com os colonos europeus é mais um dos temas sobre o qual comecei a refletir. Eu vi meu pai muito mais velho pouco antes de ele morrer e pensei que ele devia ser um menino quando aquilo aconteceu. Isso me levou a tentar imaginar como eram as coisas antes de acontecer aquele encontro, antes de esses estranhos chegarem e dizerem que eles estavam no comando de tudo”, explica, e acrescenta que sua escrita muitas vezes toma forma ao longo de muito tempo, e seguindo diferentes meandros, de modo que o princípio pode acabar sendo o final.


Essa extensa geografia de ideias acaba permeando o enredo e o terreno que Paradise percorre. No romance, a criança protagonista passa às mãos de um rico comerciante por causa das dívidas de seu pai e, depois de passar alguns anos trabalhando em dois empórios, se junta a uma grande expedição comercial, uma caravana mítica. Há referências a uma montanha nevada, um lago que conseguem atravessar em um único dia e algumas cachoeiras majestosas, mas não há nomes, nem mapas. “Escrevi presumindo que quem lesse conheceria o terreno e reconheceria o Kilimanjaro e o lago Tanganica. E de fato é possível ver o caminho que eles seguem, mas, ao não nomeá-lo, abre-se de alguma forma a possibilidade de que seja mais mítico, e de que o que é narrado possa acontecer em outro lugar. O leitor pode imaginar sem ter que se vincular a um lugar específico”, argumenta.


Sem dúvida, um dos mapas mais variados dos descritos por Gurnah em seu romance é o humano, com sua rica descrição da mistura de personagens de diferentes religiões e raças, dos árabes aos sikhs, que habitaram aquela parte do mundo no início do século XX e competiam entre si antes da chegada das potências europeias. “Havia distintas sociedades e culturas que estavam em contato sem que houvesse uma autoridade central ou algo semelhante. Eram grupos que não acho correto chamar de nações. Entre si viviam em uma negociação permanente, tanto cultural como linguística. Não havia uma cultura dominante”, afirma. “Aquelas pessoas eram mercadores que comercializavam entre si e se declaravam guerra ou o que fosse.” A descrição do caldeirão de culturas que povoam o romance de Gurnah escapa a qualquer simplificação ou idealização do passado pré-colonial. A violência e a crueldade despontam sem reparos e sem a necessidade de que o colonialismo europeu chegue. “As simplificações do passado e do presente têm que ser contestadas”, sustenta.

“A leitura e a escrita andam juntas, sempre pensei nisso. É um ingrediente tão fundamental para o escritor como as experiências de vida”

Essas pessoas falavam línguas diferentes, embora o protagonista, Yusuf, se faça entender em suaíli, um idioma cuja gênese, explica Gurnah, é muito semelhante à do crioulo e que, além do mais, é sua língua materna, embora sempre tenha escrito seus livros em inglês. “Em parte porque é um idioma no qual sempre fui bom, mesmo na escola em comparação com os colegas. Mas talvez o mais determinante é que só pensei em escrever quando cheguei à Inglaterra e, mesmo assim, levei algum tempo até aceitar que era isso que eu queria fazer. E durante todo esse período eu já estava morando no Reino Unido e estudando literatura e lendo em inglês. Tinha muita coisa ruim, mas uma das melhores é o quanto havia para ler, quantos livros eu tinha à minha disposição nas bibliotecas”, explica.


“A leitura e a escrita andam juntas, sempre pensei nisso. É um ingrediente tão fundamental para o escritor como as experiências de vida, é o que te dá contexto e relevo ao seu trabalho, o que te permite compreender a área em que você se desenvolve. Então, quando comecei a questionar em que idioma fazer isso, não passou outra coisa pela minha cabeça, fiz no mesmo idioma em que estava lendo.” A sua perspectiva sobre isso mudou com o tempo? “Assim como acontece com os atletas, às vezes você não consegue escolher a prova em que vai competir. Você pode gostar muito de salto em altura, mas pode não ser tão bom como nas maratonas. Algo assim acontece com a minha escrita, não foi de todo uma escolha. Faria diferente hoje? Não, porque gosto de escrever em inglês e sinto prazer ao fazer isso.”


A literatura pós-colonial é o campo de pesquisas dele desde a década de 1980, e em sua obra de ficção desempenha um papel central, conforme destacou o júri do Nobel. Em Paradise, um personagem fala sobre como a história será escrita e como os colonizadores farão com que leiam aquela versão como se fosse “a palavra sagrada”. Gurnah acha que literatura pós-colonial é um termo apropriado? “A primeira coisa é que isso nem existia quando eu estava cursando minha pós-graduação”, diz. O estudo das diferentes literaturas se dava então com base em um prisma geográfico e cada área contava com especialistas que defendiam seu terreno.


“Quem é você para falar sobre literatura caribenha ou literatura africana? Essa era a atitude até que um grupo de teóricos do pós-colonialismo, como Edward Said, Gayatri Spivak e Homi K. Bhabha, começou a aplicar certos modelos para identificar algumas experiências comuns e lançou as primeiras flechas. Foi isso que permitiu agrupar escritores de diferentes lugares e afastar-se das autoridades regionais. Só em meados da década de 1990 começamos a dar uma disciplina de Literatura Pós-colonial e isso aconteceu porque era algo útil, não a finalidade de tudo”, relata


“Hoje a discussão sobre o termo literatura pós-colonial não me preocupa. Eu a vejo como uma expressão provisória que nos permite reunir diferentes textos para estudo. É útil no plano acadêmico, mas não creio que seja como fórmula para descrever a literatura fora desse campo”, pondera, e prossegue dizendo que se alguém o descrever como um escritor pós-colonial, ele concordaria, embora isso diga pouco sobre a escrita em si. “A escola pós-colonial não deve ser jogada fora porque vale para algumas coisas, principalmente para ensinar e escrever crítica. Mas acho que essa utilidade, não servirá ao autor. É para quem estuda a sua obra, não para o criador. Quando me perguntam se sou britânico, africano ou zanzibar, bem, não sei, sou tudo isso, mas, serve para alguma coisa? Pode dar aos leitores um pouco de contexto, suponho, mas então você tem que ler os livros para chegar ao escritor.”


Sobre o sucesso da leitura pós-colonial no meio acadêmico, Gurnah tem uma visão positiva por sua enorme diversidade e abrangência. “Os especialistas do século XVIII, os medievalistas ou os estudiosos da dança moderna estão interessados nisso. As mentes se abriram com essa ideia do colonialismo e suas consequências, algo que se relaciona com qualquer aspecto da cultura, tanto os lugares europeus como dos lugares colonizados. Essa consciência surgiu e aumentou a conexão com o mundo não europeu. Os estudos pós-coloniais questionam coisas tão óbvias como os próprios escritos sobre o colonialismo. E é uma disciplina que vai em várias direções, que estuda relações que remontam a muitos séculos e que nos permite compreendê-las melhor.”


A coincidência este ano de vários escritores de origem africana na lista de importantes premiações literárias (o Nobel, o Booker, o Goncourt, o Camões e o Neustadt) levou alguns a se referirem a um fenômeno. Qual é a sua posição sobre isso? “Eles ganharam não porque são de origem africana, mas porque a sua escrita mereceu. Que esses prêmios tenham sido dados a esses escritores é bom, no ano passado não foi assim. Não é que mundialmente se tenha decidido que os africanos deveriam ser premiados, é a escrita que foi premiada”, afirma.


Essa literatura sempre esteve aí e até agora não lhe deram atenção? Esta é uma idade de ouro? “Há muitos escritores aos quais não se presta atenção e há muitos jovens, e alguns não tão jovens, que estão se destacando. E haverá muitos mais. Pode ser que haja um certo tipo de corrente, mas não estou seguro de que a atribuição dos prêmios signifique que haja uma consciência por parte dos leitores... Insisto, é a escrita que está sendo premiada, não a percepção dos leitores, embora isso tenha algo a ver. O que li sobre este assunto são manchetes sugerindo que este é o ano da África, e entendo que os jornalistas precisam tentar agrupar e resumir, mas o que isso faz é diminuir a conquista de cada um dos escritores premiados. E a história se apresenta como um fenômeno cultural mais do que literário.”


Gurnah conta que está trabalhando em um novo livro e se despede amável e apressado.


EL PAÍS






quarta-feira, 22 de dezembro de 2021

Benjamín Labatut / Novo fenômeno editorial da América Latina

Benjamín Labatut


 

O chileno Benjamín Labatut, novo fenômeno editorial da América Latina

Indicado aos prêmios anglo-saxões mais importantes, recomendado pelo ex-presidente Obama, seus contos e ensaios exploram o momento em que a razão e a loucura se encontram no lugar

Camila Osorio

México, 10 Oct 2021

Para o escritor chileno Benjamín Labatut, os livros são parecidos “aos laboratórios dos cientistas loucos e dos alquimistas, porque te permitem jogar com ideias sem a necessidade de que tenham rígida correspondência à realidade”. Um de seus laboratórios mais intrigantes se chama Un Verdor Terrible, um livro de cinco contos sobre cientistas, publicado em abril de 2020 na Espanha pela editora Anagrama e um fenômeno editorial para um autor que não era muito conhecido internacionalmente há pouco tempo: foi traduzido a 22 idiomas, e sua versão em espanhol está na nona edição. Sua versão em inglês, particularmente, foi indicada neste ano aos prêmios mais importantes da literatura anglo-saxã, como melhor livro traduzido do prêmio Man Booker e o National Book Award. Além disso, apareceu em 2021 na lista de livros recomendados pelo ex-presidente Barack Obama.


“Francamente, me espanta muito mais que tenha obtido tanto sucesso em espanhol, porque me parece que o mundo anglo-saxão presta um pouco mais de atenção a esses temas, ou pelo menos no mundo europeu, onde aconteceram a maior parte das histórias que relato no livro”, diz Labatut ao EL PAÍS, que nasceu em Roterdã há 41 anos, mas mora no Chile desde sua adolescência. “E também me dediquei muito à tradução, a revisei linha por linha, para que fosse seu próprio livro, e até escrevi o último texto – El Jardinero Nocturno – em inglês antes de fazê-lo em espanhol. Mas não tento me explicar o sucesso. Não me preocupo muito pelas reações dos outros e por suas opiniões. Treinei para escrever de costas ao mundo, para tentar encontrar meu próprio valor, fosse ele qual fosse, e se agora muitas pessoas ficam fascinadas com o livro tomo como um elogio, mas não dou muita importância. Pode ser que o próximo não desperte o menor interesse. A literatura não é um concurso de popularidade, é uma caminhada ao redor de um enorme buraco que traga tudo, e que tragará a mim também, cedo ou tarde”.


Seu próximo livro, La Piedra de la Locura, será publicado na Espanha pela Anagrama em 20 de outubro, e chegará às livrarias da América Latina em novembro. La Piedra de la Locura é quase uma continuação das perguntas que rondam o anterior: perguntas por aqueles momentos em que a razão e a loucura se encontram no mesmo lugar. “La Piedra de la Locura e Un Verdor Terrible são tentativas fracassadas, profundamente fracassadas, de colocar em palavras experiências e ideias que costumam fugir da classificação, e que contradizem o senso comum, porque falam de coisas que, até o dia de hoje, ninguém entende, pelo menos totalmente”, diz o autor.


Os laboratórios literários de Labatut

Un Verdor Terrible é um livro de contos que misturam ficção e fatos reais, mas mais próximo à filosofia da ciência do que à ficção científica. São cinco contos sobre cientistas, todos brilhantes, mas quase todos dementes.


Lá está como personagem, por exemplo, o astrônomo Karl Schwarzschild, que mudou a história da Física após encontrar a solução da teoria da relatividade de Einstein e provou a existência dos buracos negros – mas que morre no conto delirando em um hospital pela falta de sentido da física moderna caso suas teorias fossem corretas. Os cientistas podem caminhar “sonâmbulos ao apocalipse”, diz em outro dos contos sobre o brilhante matemático Alexander Grothendieck, cujos exercícios de abstração desafiaram a matemática pura, mas também o levaram à beira da loucura. “Grothendieck queria prender o sol nas mãos, desenterrar a raiz secreta capaz de unir inumeráveis teorias sem nenhuma relação aparente”, diz o conto. “De tanto mergulhar nos fundamentos, sua mente tropeçou com o abismo”.


“A ciência é fonte de milagres e catástrofes, mas o impulso humano que procura mais e mais conhecimento é algo muito antigo”, diz o autor sobre seu fascínio pela razão e o delírio. Essa fome de conhecimento “corre profundamente pelo lado luciferino de nossa natureza, sem o qual teríamos nos extinguido, mas que também nos custa muito caro, porque cada novo saber abre uma nova ferida”.


Outra dessas feridas, além da loucura, pode ser catastrófica ao planeta. O primeiro conto narra a história de Fritz Haber, químico alemão e judeu, vencedor do Prêmio Nobel de Química em 1918 e o primeiro a extrair nitrogênio do ar. Mas Haber também foi o pai da guerra química na Primeira Guerra Mundial e, diz o conto, sua esposa “o acusou de perverter a ciência ao criar um método para exterminar humanos em escala industrial”. Fritz a ignorou e ela se suicidou com um revólver. “Para ele, a guerra era a guerra e a morte era a morte”, diz o livro. Haber morreu em 1934, mas antes criou um pesticida utilizado nos campos de concentração de Hitler, e o “pesticida que ele ajudou a criar foi utilizado pelos nazistas em suas câmaras de gás para assassinar sua meio irmã, seu cunhado, seus sobrinhos, e tantos outros judeus”.


Os delírios e excessos dos cientistas foram evidentes na primeira parte do século XX e durante a Guerra Fria, mas nos últimos anos os líderes da ciência moderna sofreram outras ameaças à sua credibilidade que também são perigosas: ataques a biólogos e químicos pelos grupos antivacinas e os que ainda, contra toda as evidências, negam a mudança climática. Mas a literatura de Labatut, ainda que não faça apologia à ciência e aos cientistas, também não é conspiracionista. Suas obras não debatem as descobertas provadas mais de mil vezes. Andam procurando a “margem de erro”, aqueles pontos em que a razão revelou seus limites.


“A verdadeira ciência está cheia de dúvidas”, diz Labatut. “Não me parece que devamos confiar e acreditar na ciência, o que devemos fazer é conhecê-la. Porque uma visão científica das coisas te obriga a considerar aspectos da realidade que desafiam sua visão do mundo, que te tornam – quase sem que você queira – mais humilde, mais cético, e mais desperto”.


A loucura pessoal

La Piedra de la Locura, seu novo livro com dois ensaios, explora a obra e vida pessoal de mais cientistas, como o matemático David Hilbert, e outros artistas, como os escritores Howard Phillips Lovecraft e Philip K. Dick. Mas também é um livro muito mais pessoal e aterrissado em crises recentes. “Hoje vivemos no mundo de Dick, um pesadelo plural e demente no qual nunca poderemos acreditar totalmente no que vemos, sentimos e escutamos”, escreve Labatut sobre a instável credibilidade das grandes narrativas atualmente, científicas e sociais, e que deixam boa parte da população na incerteza. O autor conta nesse livro que após publicar Un Verdor Terrible várias pessoas se aproximaram para fazer a ele perguntas urgentes como “Quando deixamos de entender o mundo?” e “Alguma vez chegamos a compreender a realidade?”.


Para responder, dessa vez Labatut não recorre só à história da ciência do começo do século XX, e sim à mais recente: a explosão social chilena de 2019, um momento em que uma narração que a sociedade construiu durante décadas – sobre o desenvolvimento e o progresso econômico – entrou em erupção. “Ninguém – nenhum político, cientista, líder social e artista – era capaz de explicar o que estava acontecendo”, escreve sobre a raiva social do momento. Havia tragédias sociais reprimidas que alguns já haviam diagnosticado; mas a repentina metamorfose social durante a explosão que exigia uma mudança radical imediata, por um tempo, não tinha direção clara. “Apesar de sua enorme potência, nossa deslumbrante revolução teve uma qualidade muito especial: não tinha uma narrativa central”, escreve Labatut.


O que acontece quando a narrativa que as sociedades teceram durante décadas – dos cientistas europeus do começo do século XX à sociedade chilena do século XXI – acaba? Como não sucumbir à loucura quando se quebram as histórias que criamos para viver?


“A ausência de uma narrativa central é uma fonte de vertigem, é algo que assusta até o mais corajoso”, diz Labatut. “Mas também é um espaço de liberdade absolutamente necessário e uma grande oportunidade para que brote o novo, o inesperado e o milagroso”. Essa falta de uma narrativa central pode tomar diversos rumos, segundo o autor: que surja uma nova grande narrativa de senso comum; e que dominem perspectivas delirantes “como o neopaganismo dos nazistas”; e até “que entreguemos uma boa parte de nossa alma ao absurdo, talvez armemos nossa imagem do mundo baseada em fragmentos que não têm qualquer dose de narrativa e significado, como o horroroso conteúdo com o qual somos bombardeados nas redes sociais”.

“A Extração da Pedra da Loucura” de Bosch.

O título do novo livro é inspirado em A Extração da Pedra da Loucura, um lindo quadro de 1505 de Hieronymus van Aken, o pintor Bosch, que está no Museu do Prado. Nele se vê um cirurgião com dois ajudantes que está supostamente extraindo uma pedra, a loucura, do crânio de um homem. Mas quem é mais delirante no quadro? O paciente que pede ajuda? Ou o homem que, como se pensava na Idade Média, vê a loucura como uma pedra incrustada no cérebro que pode ser curada com uma rápida cirurgia?


“Eu não conheço a loucura sequer de longe, mas desde criança sempre tive a suspeita de que havia algo fundamentalmente torcido, algo muito extraordinário logo abaixo da pele das coisas”, conta Labatut. Ainda que em La Piedra de la Locura o autor fale dos delírios de artistas e cientistas, e de uma curiosa blogueira que o acusa de plágio, também menciona brevemente as doenças mentais de pessoas mais próximas à sua família (“Meu bisavô acabou em um manicômio. Minha avó certamente foi bipolar”, escreve). Seu livro de 2016, Después de la Luz, foi inspirado em uma crise pessoal na qual o autor experimentou uma estranha desconexão com a realidade. “Um livro que não sei se voltaria a publicar, especialmente agora que sou conhecido”, conta agora Labatut. “Mas que, para o bem e para o mal, me transformou no escritor e na pessoa que sou agora. Esse livro e essa experiência mudaram a forma que leio, escrevo e percebo o mundo”.


Os dois ensaios em La Piedra de la Locura são uma reflexão profunda sobre como podemos entender, e talvez aproveitar, tanto esse espaço que chamamos de loucura como o que chamamos de razão. “A razão não é nossa única faculdade, e também não é a mais importante”, diz o escritor. “O escritor argentino Néstor Sánchez (que era esquizofrênico, vale dizer) o expressou melhor do que ninguém: a verdade e a loucura são sintomas da mesma doença. O que realmente me interessa é essa doença”.


EL PAÍS



sábado, 18 de dezembro de 2021

A bruxa em três poemas de Anne Sexton por Virgínia Derciliano

Anne Sexton


A bruxa em três poemas de Anne Sexton por Virgínia Derciliano


21 de maio de 2021

Anne Sexton (EUA, 1928-1974), expoente da geração da poesia confessional, é detentora de extensa obra poética, geralmente pouco vista fora do âmbito da “confissão”. Entretanto, sua persona poética desafia essa noção ao expressar instâncias sociais diversas.

Não à toa, “Her kind”, um dos poemas mais conhecidos de sua prole, foi escolhido por Sexton para abrir suas récitas. Segundo a biógrafa Diane Middlebrook, Sexton “dizia ao público que o poema mostraria a todos ao mesmo tempo que tipo de mulher ela era, e que tipo de poeta.”

A bruxa de Sexton é irônica, insubmissa, questionadora e se regozija em sua própria natureza – seja em prazer ou na catarse da dor. 

Aqui, traduzo três poemas de momentos distintos de sua produção, que trazem a temática da magia e da bruxa. O primeiro é o supracitado, em To Bedlam and part way back (1960). O segundo, “The black art”, está em All my pretty ones (1962), e o terceiro, “The witch’s life”, em The awful rowing toward God (1975). 

SUA ESPÉCIE

Eu saí por aí, bruxa possuída,
assombrando o ar negro, mais corajosa à noite;
sonhando com o mal, eu fiz minha ronda
por sobre as casinhas iguais, de luz em luz:
coisa-solitária, doze-dedos, fora-de-si.
Uma mulher assim não é bem uma mulher.
Eu tenho sido sua espécie.

Eu encontrei as cavernas quentes na mata,
as enchi de frigideiras, estatuetas, estantes,
armários, sedas, artefatos inumeráveis;
preparei as ceias pros vermes e pros elfos:
queixosa, rearrumando o desalinhado.
Uma mulher assim é mal interpretada.
Eu tenho sido sua espécie.

Eu montei na sua carruagem, cocheiro,
acenei os braços nus pros vilarejos passando,
aprendendo o brilho da rota final, sobrevivente
das chamas que ainda me mordem a coxa
e minha costela estala onde sua roda gira.
Uma mulher assim não tem vergonha de morrer.
Eu tenho sido sua espécie.

HER KIND

I have gone out, a possessed witch,
haunting the black air, braver at night;
dreaming evil, I have done my hitch
over the plain houses, light by light:
lonely thing, twelve-fingered, out of mind.
A woman like that is not a woman, quite.
I have been her kind.

I have found the warm caves in the woods,
filled them with skillets, carvings, shelves,
closets, silks, innumerable goods;
fixed the suppers for the worms and the elves:
whining, rearranging the disaligned.
A woman like that is misunderstood.
I have been her kind.

I have ridden in your cart, driver,
waved my nude arms at villages going by,
learning the last bright routes, survivor
where your flames still bite my thigh
and my ribs crack where your wheels wind.
A woman like that is not ashamed to die.
I have been her kind. 

A ARTE NEGRA

Uma mulher que escreve sente demais,
esses transes e presságios!
Como se ciclos e filhos e ilhas
não bastassem; como se carpideiras e fofocas
e legumes nunca bastassem.
Ela acha que pode alertar as estrelas.
Uma escritora é essencialmente uma espiã.
Meu querido, eu sou essa garota.

Um homem que escreve sabe demais,
que feitiços e fetiches!
Como se ereções e congressos e produtos
não bastassem; como se máquinas e galeões
e guerras nunca bastassem.
De um móvel usado ele faz uma árvore.
Um escritor é essencialmente um trapaceiro.
Meu querido, você é esse homem.

Nunca amando a nós mesmos,
odiando até nossos sapatos e nossos chapéus,
nós amamos um ao outro, preciosa, precioso.
Nossas mãos são azul-claro e gentis.
Nossos olhos são cheios de confissões terríveis.
Mas quando nos casamos,
as crianças saem, enojadas.
Há muita comida e ninguém sobrando
para comer toda essa estranha abundância.

THE BLACK ART

A woman who writes feels too much,
those trances and portents!
As if cycles and children and islands
weren’t enough; as if mourners and gossips
and vegetables were never enough.
She thinks she can warn the stars.
A writer is essentially a spy.
Dear love, I am that girl.

A man who writes knows too much,
such spells and fetiches!
As if erections and congresses and products
weren’t enough; as if machines and galleons
and wars were never enough.
With used furniture he makes a tree.
A writer is essentially a crook.
Dear love, you are that man.

Never loving ourselves,
hating even our shoes and our hats,
we love each other, precious, precious.
Our hands are light blue and gentle.
Our eyes are full of terrible confessions.
But when we many,
the children leave in disgust.
There is too much food and no one left over
to eat up all the weird abundance.

A VIDA DA BRUXA

Quando eu era menina,
tinha uma velha na vizinhança
que nós chamávamos de Bruxa.
O dia todo ela espiava da janela do segundo andar
por trás das cortinas enrugadas
e às vezes ela abria a janela
e gritava: Parem de cuidar da minha vida!
Seus cabelos eram como algas
e sua voz como pedra pontiaguda.

Eu penso nela às vezes, agora
e me pergunto se estou me transformando nela.
Meus sapatos se curvam para cima como aqueles de bobo-da-corte.
Chumaços do meu cabelo, enquanto escrevo isso,
se enrolam individualmente como dedos dos pés.
Eu arredo as crianças pra lá,
enchendo pá atrás de pá.
Só meus livros me ungem,
e alguns poucos amigos,
aqueles que alcançam as minhas veias.
Talvez eu esteja me tornando um eremita,
abrindo a porta apenas
para alguns animais especiais?
Talvez meu crânio esteja muito lotado
e não tenha nenhuma abertura pela qual
eu possa alimentá-lo com sopa?
Talvez eu tenha conectado as minhas tomadas
para manter os deuses dentro?
Talvez, mesmo que meu coração
seja um gatinho manhoso,
eu o esteja detonando como um zepelim.
Sim. É a vida da bruxa,
escalar a escalada primordial,
um sonho dentro de um sonho,
e então sentar aqui
segurando uma cesta de fogo.

THE WITCH’S LIFE

When I was a child
there was an old woman in our neighborhood
whom we called The Witch.
All day she peered from her second story window
from behind the wrinkled curtains
and sometimes she would open the window
and yell: Get out of my life!
She had hair like kelp
and a voice like a boulder.

I think of her sometimes now
and wonder if I am becoming her.
My shoes turn up like a jester’s.
Clumps of my hair, as I write this,
curl up individually like toes.
I am shoveling the children out,
scoop after scoop.
Only my books anoint me,
and a few friends,
those who reach into my veins.
Maybe I am becoming a hermit,
opening the door for only
a few special animals?
Maybe my skull is too crowded
and it has no opening through which
to feed it soup?
Maybe I have plugged up my sockets
to keep the gods in?
Maybe, although my heart
is a kitten of butter,
I am blowing it up like a zeppelin.
Yes. It is the witch’s life,
climbing the primordial climb,
a dream within a dream, 
then sitting here
holding a basket of fire.

REFERÊNCIAS:

MIDDLEBROOK, Diane Wood. Anne Sexton: A morte não é a vida: uma biografia. Tradução: Raul de Sá Barbosa. Siciliano: São Paulo. 1994

SEXTON, Anne. The complete poems. 1981. Boston: Houghton MifflinCo.

Virgínia Derciliano (Virginia Derciliana Silva) é licenciada em Letras (UEMG) e mestranda em Estudos linguísticos e literários em inglês (DLM – USP). Dedica sua pesquisa ao arquétipo da bruxa na obra poética de Anne Sexton, sob um viés de crítica feminista.

PONTES OUTRAS