segunda-feira, 31 de julho de 2023
domingo, 30 de julho de 2023
sexta-feira, 28 de julho de 2023
‘Barbie’ (que não é um filme para crianças) pretende ser algo mais do que é
Crítica - ‘Barbie’ (que não é um filme para crianças) pretende ser algo mais do que é. E fica no meio do caminho
Cotação: duas estrelas
Por TOM LEÃOPublicado em 21/07/2023 às 10:55
Alterado em 21/07/2023 às 10:55
‘Barbie’, de Greta Gerwig (roteirizado por ela e por seu marido, o cineasta Noah Baumbach, de ‘Frances Ha’), é uma ‘cinebio’ da boneca da Mattel; na verdade, uma ‘crítica’ a tudo o que ela representa (a mulher linda, de corpo impossível, embora fútil), mas sem pegar muito pesado (afinal, não podem falar mal do produto, ficam bem em cima do muro). Na trama, de um dia para o outro, Barbie (Margo Robbie, como a Barbie básica, a mais estereotipada - existem outras no filme) entra numa crise existencial e passa a pensar em coisas como morte e sobre o que existe além de seu lindo e perfeito Barbieworld.
Daí ela dá defeito e, para consertar, precisa vir ao nosso mundo descobrir onde aconteceu a falha (geralmente, é alguém que já brincou com a boneca de forma diferente). Então, após uma primeira parte muito divertida e multicolorida, entra em cena a jornada da boneca em busca de seu ‘eu’ -- numa Los Angeles estranhamente cinza e escura, onde as pessoas só usam preto. O empoderamento feminino entra na pauta e o mundo masculino é questionado. Ok. Mas, na parte final, a diretora perde o pé e vira chororô chato e antiquado, com direito a discurso da criadora da boneca, Ruth Handler, com sua criatura (supostamente inspirada em sua filha, Barbara).
Já se esperava que Gerwig (que até agora dirigiu filmes apenas ok, como ‘Ladybird’ e ‘Adoráveis mulheres’) não fosse fazer algo banal. Tanto que não é ‘censura’ livre, para crianças. Ela expõe questões um pouco mais adultas (ma non tropo) no roteiro e sugere certas coisas nas entrelinhas. Mas Gerwig perdeu a chance de fazer algo muito mais legal, usando dos mesmos expedientes, como já vimos em outros filmes que tocam no tema criador vs criatura. O terço final é bem entediante (números musicais bastante longos e chatos com os Kens, cujo Ken principal é feito por Ryan Gosling), e dá a impressão de que o filme condena a felicidade. Afinal, Barbie (que, vale lembrar, é apenas uma boneca, fruto de sua época, mas se atualizou com outros modelos) é feliz por viver num mundo onde nada do que nos preocupa, ‘do lado de cá’, interessa. Não era preciso faze-la virar ‘uma de nós’ e acabar com a sua felicidade. Ela era feliz. E sabia.
Mas as mulheres (sobretudo, adolescentes) vão adorar. E, no fim, a Mattel, também, pelo mega comercial gratuito da boneca.
quinta-feira, 27 de julho de 2023
Cantora Sinéad O’Connor, dona do hit ‘Nothing Compares 2 U’, morre aos 56 anos
Cantora Sinéad O’Connor, dona do hit ‘Nothing Compares 2 U’, morre aos 56 anos
Irlandesa havia perdido o filho adolescente no início do ano passado
Publicado em 26/07/2023 às 17:35
Alterado em 26/07/2023 às 17:45
A cantora irlandesa Sinéad O’Connor, intérprete do hit 'Nothing Compares 2 U', morreu nesta quarta-feira, aos 56 anos. A informação foi confirmada pela família, mas a causa da morte ainda não foi revelada.
"É com muita tristeza que comunicamos o falecimento de nossa querida Sinéad. Família e amigos estão devastados e pediram privacidade neste momento tão difícil", disse a família da artista, em nota.
O’Connor, que alcançou a fama a partir de 1990, falava abertamente - e por décadas - sobre a luta que travava contra doenças mentais, probrema agravado em 2022, após o suicídio de seu filho Shane, de 17 anos. Ela disse se culpar pela morte do adolescente, que estava internado em um centro de tratamento para saúde mental. O jovem fugiu do hospital em que estava sob observação justamente para evitar que atentasse contra a própria vida.
Na ocasião, pelo Twitter, a cantora declarou que Shane "decidiu encerrar sua luta terrena" e ameaçou processar o hospital. Shane é filho da cantora com o ex-marido, o cantor folk Donal Lunny. Na ocasião, ela cancelou todos os shows do ano por causa da perda.
Esta não foi a única tragédia que a cantora enfrentou durante a vida. No livro Rememberings, de 2021, ela falou sobre a infância traumática e violenta, com episódios de abusos sexuais cometidos pela mãe. De acordo com a revista People, após os pais se divorciarem quando criança, a mãe dela Marie “não estava bem” e a espancava diariamente, por vezes no abdômen.
“Minha mãe tinha essa obsessão de destruir meu útero”, disse a cantora à publicação.
O’Connor ainda era conhecida como uma militante pelos direitos das mulheres e crítica a abusos religiosos, como a pressão pela proibição do aborto.
Carreira
Sinead O’Connor nasceu em Dublin, na Irlanda, em 1966. A cantora começou a carreira musical em 1987, com o álbum The Lion and the Cobra, tendo se apresentado, nessa época, em diversos países da Europa, ganhando visibilidade e alguma notoriedade.
Foi seu segundo trabalho, o disco I Do Not Want What I Haven’t Got, de 1990, que garantiu à cantora uma carreira internacional. É nele que está seu maior hit, Nothing Compares 2 U, composta por Prince. A canção fez com que o álbum atingisse a primeira posição entre os mais vendidos em inúmeros países. E o vídeo da música no YouTube tem quase 400 milhões de visualizações.
Em 1992, ela lançou o terceiro álbum de estúdio, intitulado "Am I Not Your Girl?”. Foi neste mesmo ano que a carreira ficou marcada por uma polêmica. O’Connor rasgou uma foto do papa João Paulo II durante uma apresentação no Saturday Night Live, em que cantou a música War, que critica preconceitos e desigualdades sociais.
A cantora, que já tinha relatado professar a fé católica, disse ter rasgado a foto do papa em protesto contra as denúncias de abuso sexual a clérigos da Igreja. Na época, a instituição passava por uma crise, com bispos e membros do alto escalão do Vaticano sendo denunciados.
Sua carreira musical ainda inclui o álbum Universal Mother, lançado em 1994, que contém a faixa Fire On Babylon, que fala sobre abuso sexual infantil. Em seguida, veio o EP Gospel Oak, que tem seis músicas dedicadas aos povos de Ruanda, Israel e Irlanda.
Depois de uma pausa na carreira, em 2000, lançou ao disco Faith and Courage, dois anos mais tarde, foi a vez de Sean-Nós Nua, que traz canções folclóricas irlandesas. Em 2003, lançou She Who Dwells in the Secret Place of the Most High Shall Abide Under the Shadow of the Almighty, um disco duplo coletânea com um registro ao vivo e outro com faixas raras e covers.
O'Connor recebeu o prêmio inaugural de Álbum Irlandês Clássico no RTÉ Choice Music Awards no início deste ano. Segundo o Irish Times, na ocasião, ela foi aplaudida de pé ao dedicar o prêmio, por "I do not want what I haven't got", a “todo e qualquer membro da comunidade de refugiados da Irlanda”.
No total, ela tem dez álbuns de estúdio gravados e planejava lançar um novo trabalho em breve. Ela também faria uma turnê por Oceania, Europa e Estados Unidos a partir do ano que vem.
Mais polêmicas religiosas
A polêmica com o papa não foi a única vez em que a artista se envolveu com uma crise na Igreja Católica. Em 1999, ela foi nomeada sacerdotisa da Igreja Independente Católica, na França. A cantora foi excomungada e sua ordenação revogada, já que a Igreja Católica não permite que mulheres seja sacerdotisas.
Em 2018, a cantora se converteu ao Islamismo e também revelou ter mudado de nome, passando a chamar-se Shuhada’ Davitt. No mesmo ano criou mais polêmica ao dizer que não queria mais estar perto de pessoas brancas. “Em momento nenhum, por nenhuma razão. São nojentas”, disse em uma publicação no Twitter. No ano seguinte, ela chegou a acusar Prince de ter tentado agredi-la.
O corte de cabelo
Na adolescência, Sinead estava trabalhando no disco "The Lion and the Cobra", seu álbum de estreia lançado em 1987, quando foi convidada pelo Nigel Grainge, um executivo de sua gravadora, para almoçar. Ele pediu que ela deixasse o cabelo curto crescer e se vestisse mais como uma menina. A jovem que estava começando na música foi até o cabeleireiro e raspou a cabeça. Corte que ela manteve por muitos anos.
Em 2011, ela voltou ao noticiário internacional por aparecer com um visual diferente. Durante um show que fez no Manchester International Festival, na cidade inglesa, Sinéad apareceu com as madeixas curtas. Entretanto, o corte raspado voltou a ser sua preferência e se manteve até o fim de sua vida.
quarta-feira, 26 de julho de 2023
Mick Jagger 80 anos / Veja as músicas mais tocadas no Brasil
Mick Jagger |
Mick Jagger 80 anos: veja as músicas mais tocadas no Brasil
Isabel Prado
Jul. 26, 2023
Mick Jagger completa 80 anos de idade nesta quarta-feira, dia 26 de julho. O fundador, cantor e compositor da banda britânica Rolling Stones é referência no rock mundial.
Em sua homenagem, o Ecad (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição) fez um estudo de quais as músicas que os brasileiros mais consumiram de Mick Jagger na última década. Faixas como “Satisfaction (I can't get no)”, “Miss you” e “Start me up” compõem o top 3 das obras mais tocadas no Brasil.
Mick Jagger: lista de músicas mais tocadas no Brasil na última década
Confira abaixo as cinco músicas mais tocadas de Mick Jagger juntamente com o Rolling Stones na última década no país.
Satisfaction (I Can't Get No)
O hit é fruto da parceria Mick Jagger com Keith Richards, guitarrista e amigo da banda. A música foi a mais tocada de Rolling Stones no Brasil entre os anos de 2013 e 2023.
Miss You
A segunda canção foi um dos grandes sucessos de Rolling Stones. Lançada em 1978, "Miss You" debutou em primeiro lugar na Billboard Hot 100.
Start me Up
A faixa foi abertura do álbum "Tattoo You" e foi o último single da banda a aparecer no top 10 britânico.
Bitter Sweet Symphony
A música envolve uma polêmica entre os Rolling Stones e a banda The Verve, que envolvia direitos autorais da obra. No entanto, após 22 anos de discussão, Mick Jagger e Keith Richards devolveram o direito do hit para o The Verve.
"Sympathy for the Devil"
A obra tem um carinho especial dos brasileiros, pois Mick Jagger se inspirou no samba ao compor a canção.
terça-feira, 25 de julho de 2023
segunda-feira, 24 de julho de 2023
Pedro Cabral Santo / Incondicionalmente artista
Pedro Cabral Santo, *Homage a Victor Pinto de Fonseca*, 2014, cabeça de gesso, almofada. Cortesia Colégio das Artes, Coimbra |
Pedro Cabral Santo
Incondicionalmente artista
Pedro Cabral Santo é um artista que vem, ao longo dos anos, demonstrando uma inegável capacidade de fundir os gestos mais delicados com as ideias mais duras, ou vice-versa. As suas obras, que podem ser consideradas de cariz conceptual, necessitam de espaço para serem vistas e vivenciadas. E necessitam, sobretudo, de um espectador que possua múltiplas referências e que (re)conheça o seu próprio tempo. Não é um artista de consumo fácil, porque o espírito de contenção que emana das suas obras só se revela, plenamente, aos iniciados. O vir-a-ser da obra torna-se real quando experienciado. Ver as obras de Pedro Cabral Santo é como ir ao encontro de alguém que se deseja muito conhecer e, como no poema de Donne, “ela é um livro místico e a poucos, a quem tal graça se consente, é dado lê-la”. Os poucos, a que tal graça se consente, são os que não desistem no primeiro encontro. São os que persistem em penetrar aos poucos nas camadas que cada obra possui. O que não quer dizer (de modo algum!) que suas obras sejam demasiado complexas. Pelo contrário, muitas delas são de uma simplicidade desarmante. São despidas de artifícios e o excesso só aparece quando convocado, o que raramente acontece. A sua última exposição, Unconditionally foi pensada para o espaço que a alberga. Todas as peças foram concebidas para significar em conjunto, sem que deixem de funcionar individualmente. Unconditionally é composta por sete peças que incluem instalação, vídeo-instalação, escultura e pintura instalada: Turn left, Turn left (Tru Thougths); Red and Blue (Just waiting); Ícaro II (Up, up into the sky); Selfish; NON; Ponto cego e Impressionism.
Turn left, turn left propõe uma viagem sobre a obra do artista – um comboio anda em círculos e podemos adivinhar um fim trágico, o encontro com o abismo. A viagem não se completa porque não é possível voltar ao princípio, que é também o fim. Chegar e partir são sempre dois lados de uma mesma viagem e o artista convida a despenharmo-nos com ele num abismo possível, previsível, antevisto porque não seguimos a indicação de virar à esquerda. Mas não nos enganemos, a mensagem é, aparentemente, óbvia. Até porque o óbvio nem sempre é visível. Como disse, as peças do artista são compostas por camadas de significação e é a significação o material que as compõe. A matéria é apenas o suporte, que pode ser mais ou menos sólido, mais ou menos nobre. O que torna cada peça um objeto único não é a sua condição de objeto, mas a sua condição de arte: a sua incondicional condição de objeto artístico, que não se confunde, no caso deste autor, com quadros, esculturas, vídeos ou quaisquer objetos que identifiquemos, imediatamente, como tal. A sua obra é composta de significação e de espaço – dum espaço que se converte em tempo, pela presença sempiterna do devir. Cada obra é um vir-a-ser que se realiza na experiência instalada no espaço que a circunda.
Red and Blue (Just waiting) remete-nos para o universo cinematográfico que é o universo do espaço-tempo, do eterno presente, que pode alçar-nos no futuro ou promover uma visita ao passado sem perder, jamais, a sua condição de presente/presença, daquilo que se desvela ante os nossos sentidos enquanto vemos/vivenciamos, que cria memórias partilhadas por muitos, como as memórias de uma espada de luz e de um filme que nos fala do mito do herói.
E aparece-nos um herói, não o do filme mas um herói mítico que tentou roubar a luz aos deuses e que se perdeu neste intento: Ícaro. (Up, up into the sky) é um totem, objeto fundador de uma cultura cuja lógica não obedece à linearidade do tempo histórico mas repete, infinitamente, o mesmo percurso circular – o herói parte para cumprir sua jornada e retorna para ocupar o lugar do pai. O Ícaro II é um boneco de plástico, herói de novas jornadas e fruto de uma cultura flutuante e permeável. O artista fala-nos do herói de cada um de nós, de cada época, de cada circunstância. Eu sou eu e minha circunstância disse o filósofo espanhol. E esta circunstância do eu aqui e agora é que determina os símbolos que a representam. Cada época tem seu Ícaro, tem sua luz própria. E estamos na era do simulacro da luz – da sua reinvenção nos laboratórios de efeitos especiais.
Do espaço partimos para um mergulho num aquário de peixes tropicais: Selfish. Isto não é um aquário, seria uma legenda possível para esta vídeo-instalação. É um simulacro de aquário autorreflexivo, como o título indica: selfish. Criaturas marinhas que refletem sobre si mesmas, imagem que se reflete sobre si mesma. Obra que reflete sobre si mesma e sobre a sua condição de arte.
NON pode dizer-nos o que não é. Ou sobre o que não quer falar. NON é uma palavra composta de letras que estão sobre uma mesa de trabalho. Uma proposta de jogo, uma brincadeira de criança – como o comboio, o Pokemon, a espada de Star Wars. Schiller acreditava que a arte era um jogo entre a forma sensível e o conteúdo que poderia ser mais impenetrável mas que, quando conjugado com a forma, se tornava passível de ser percebido e vivenciado. Um jogo entre a dureza e a permeabilidade, entre a seriedade e a leveza, entre a delicadeza e a resistência dos materiais. O jogo, na arte de Cabral Santo, é de origem schilleriana – é um impulso demasiado humano e inevitável. A melhor, e talvez a única maneira, segundo o filósofo alemão, de se evadir do quotidiano.
Ponto Cego é aquele ponto específico em que não vemos nada – único ponto em que o espelho não consegue penetrar. Os automóveis trafegam pelas autopistas e pelas ruas e os motoristas tentam não pensar que há um ponto do retrovisor que funciona como um buraco negro – as imagens não aparecem e só se ouve o barulho de um carro que se aproxima perigosamente de nós. O que deixamos de ver para além dos carros que o retrovisor não reflete? E o que vemos afinal? E o que é que ouvimos/vemos? Como no final de Blow Up do Antonioni, o que vemos ou ouvimos depende da nossa disponibilidade para ver e ouvir, depende da nossa vontade de entrar no jogo e de nos deixarmos envolver pelos sons e pelas imagens, que, muitas vezes, não estão lá.
Impressionism, um conjunto de pinturas, fecha o ciclo que se iniciou com um comboio a despenhar-se. Pinturas que se insinuam, que nos abstraem e que nos absorvem – trinta telas pintadas de vermelho. Trinta telas vermelhas maculadas por manchas amarelas. Trinta telas que poderiam ser bandeiras, que poderiam ser simbólicas, que poderiam ter apenas um significado. Mas que funcionam, como o restante das obras, como um espaço de significação, para além do óbvio ou para aquém da superfície.
Virar à esquerda não é, no caso do artista, uma indicação de sentido. É o caminho que ele escolheu percorrer. Como disse Drummond “quando nasci, um anjo torto, desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida”. Pedro Cabral Santo decidiu que seria, incondicionalmente, como artista, gauche na vida. Porque a sua obra é a sua verdadeira existência, a sua linguagem, o seu lugar da significação. Não acredito que se possa dizer o que o artista, ou a sua obra, quis dizer. As palavras apenas roçam os sentidos, insinuam as imagens, reverberam os sons. A obra, acredito, fala por si. Mas é preciso, nalguns casos, conhecer bem a sua língua, perceber as suas nuances, os seus ditos e não-ditos. A arte não é um lugar que se visita inocentemente e de onde se sai incólume. Pelo menos não esta arte, não a arte deste artista incondicionalmente engajado, comprometido naquilo que faz. E aquilo que faz também faz dele aquilo que ele é. Um artista. Incondicionalmente.
sábado, 22 de julho de 2023
sexta-feira, 21 de julho de 2023
Arte contemporânea no Mediterrâneo / Um olhar sobre a Turquia
Arte contemporânea no Mediterrâneo
Um olhar sobre a Turquia
"The driving force behind my works is my tradition. If it wasn’t for Damascus, I wouldn’t have that heritage; I wouldn’t be me. Of course, the question remains: do you have to be a traveller in order to be a cosmopolitan?". ‒ Marwan
Giulio Carlo Argan, há uns anos, ao falar do Romantismo e do Neoclassicismo, dizia que o Romantismo só poderia ser fruto do norte da Europa e que o Neoclassicismo só poderia ser mediterrânico. Porque, para o urbanista e teórico italiano, a relação que o homem mantém com a natureza determina, de alguma maneira, a relação que ele manterá com a arte. A natureza sombria, impenetrável e misteriosa do norte da Europa é refletida numa arte ensimesmada que beira sempre o abismo, onde o homem busca, sobretudo, o desvendamento. Busca dificultada pelo entorno que o envolve e que não facilita o seu percurso. Já a luz aberta e franca que permeia a arte neoclássica, mostra um homem que dominou já a natureza à sua volta, que esta já foi convertida em cultura e em espaço da representação. A natureza é amena e aprazível, penetrável, não necessita de desvendamentos, apresenta-se como espaço a ser ocupado, não dificulta o caminho. Aliás, o Mediterrâneo é o mar, por excelência, dos caminhos, da fundação da civilização que redundará, séculos depois, na civilização europeia.
Falar de arte no Mediterrâneo é falar de uma parte da arte europeia. Uma parte apenas, porque a Europa, anos mais tarde, tratou de expurgar aquilo que era considerado bárbaro, ou menos europeu. Expurgou, ou tentou fazê-lo, a arte mais oriental. Decidiu que o caminho europeu era aquele que representava melhor a ideia que tinham de cultura e civilização e chamou a todo o resto de Outros. Criou a alteridade que distancia culturas e povos, que fecha os caminhos abertos pelo mar. O outro é aquele que não sou eu, é aquele que não entendo. É aquele tão impenetrável quanto uma floresta do norte da Europa, mesmo que esteja banhado, como nós mesmos, de sol.
Vários são os motivos que levaram a este progressivo afastamento entre povos alimentados pela mesma bacia e que navegaram as mesmas águas. Durante vários séculos o padrão greco-romano, convertido em cânon, dominou a arte europeia e de alguma maneira, determinou a História da Arte como nós a conhecemos. Heinrich Wölfflin fala de períodos clássicos e barrocos na História da Arte, como um ciclo que se repetiu por muito tempo e que se encerra no limiar do século XX. Esta alternância entre o clássico e o barroco era, no fundo, a alternância entre o cânon e os seus opositores. Entre a regra e àqueles que a ousaram quebrar. Os historiadores, geralmente, estavam a favor do cânon, da regra.
O berço da arte canónica produziu seu último grande ciclo em meados do século XVIII ‒ o movimento Neoclássico foi o estertor final de um modelo de representação do mundo. Um modelo excludente e que pretendeu ser o modelo. O Romantismo instaura, no seio da arte, o delírio. O sentimento de pertença não a um continente simbólico, mas sim a uma nação mais pequena. A uma nação que precisava ter uma voz própria que se sobrepusesse a que fora imposta durante tanto tempo. O sentimento do Romantismo sai do sítio onde nasceu e floresce um pouco por todo o lado, aliado ao sentimento e a necessidade crescentes de uma arte que queria ter também ela a sua própria voz.
É interessante percebermos que durante o século XIX, o papel que a Itália ocupou na História da Arte ocidental sofre um declínio. A Itália transforma-se num espaço museológico a ser visitado, e admirado, por aqueles que queriam ainda perpetuar o modelo. Os outros, distantes deste apelo canónico, decidiam olhar para outro lado ou para diversos lados ao mesmo tempo e daí surgem as vanguardas. A Itália volta a aparecer neste cenário com o Futurismo, dos movimentos de vanguarda o que mais apontou para o futuro e que mais ardentemente quis romper com o passado. De qualquer forma, por mais diversificada e diversa, a vanguarda europeia continua a ser a vanguarda europeia. Os outros continuam a ser os outros, frequentando, algumas vezes, como convidados bem comportados, algumas obras de alguns artistas.
Duas guerras depois, a arte, que faz parte da vida, intrinsecamente, e que não é uma atividade outra ou marginal, incorpora todas as mudanças que o mundo passou num século tão conturbado. E finalmente vê os discursos alheios ao seu próprio umbigo atravessarem os seus próprios discursos. E de repente se dá conta que existe outra arte. Que existem outras artes e outras maneiras de se ver e representar o mundo.
A arte na contemporaneidade é uma arte múltipla e pluridiscursiva. São várias as vozes que a compõem, são vários os discursos. Não é possível falarmos de um modelo ou cânon. Talvez a falta de cânon seja o modelo. Mas há algo que une, ou que pelo menos, põe em diálogo tudo que se fez ou se faz desde a segunda metade do século XX: com tantos caminhos abertos, vias, redes, reais e virtuais, com o esboroamento das fronteiras, físicas e simbólicas, parece que ainda não conseguimos falar a mesma língua. Que estamos todos juntos e muito próximos mas, simultaneamente, terrivelmente distantes. E a arte reflete sobre isto. Primeiro como um espelho e depois como alguém que pensa e questiona e coloca o dedo na ferida. Nas feridas. Há uma questão que é fulcral para a arte nos tempos que correm e que diz respeito a um sentimento de pertença: se eu não sou nem sou o outro, quem sou eu afinal? E o espaço é o território onde esta questão se expande. O espaço, já não apenas geográfico e mapeado, é o lugar que define quem sou, o que em mim é meu e o que é fruto de um sentimento comum. O que me liga aos outros? O que me difere? O que me faz ser eu?
Desta maneira o Mediterrâneo volta a fazer parte das discussões. Volta a ser um lugar de navegações e trocas, de encontros. Nicolas Bourriaud disse certa vez que a arte contemporânea não é um objeto em si, é a maneira nova de habitar velhos espaços. E são estes velhos e conhecidos espaços que foram se distanciando que devem ser novamente visitados. E re-habitados. Por isso a importância de se pensar hoje numa arte do e no Mediterrâneo. Uma arte com semelhanças e diferenças, com consensos e dissensões, mas uma arte que precisa dialogar mais e absorver melhor o outro, que nunca deixou de ser, apesar da distância, uma outra face de nós mesmos. E há que se buscar a completude.
A arte contemporânea do Mediterrâneo mais a oriente, como a Turquia, apresenta as mesmas características da arte europeia "modelar" ‒ entre os novos e os velhos media, entre as novas e as velhas técnicas, os artistas visuais procuram re-habitar um espaço aparentemente conhecido e visitado. E procuram, com a sua arte, estabelecer diálogo entre culturas diversas, entre diversidades dentro da sua própria cultura, entre modos diferentes de se habitar o mundo. Não há um modelo preestabelecido, não há uma fórmula única, nem um projeto comum. O que os une entre si, e entre os artistas do lado de cá do Mediterrâneo, é a afirmação de uma identidade, é a exploração de feridas que foram ocultadas, é, sobretudo, o desejo de ter uma voz.
Haluk Akakçe, artista turco que vive e trabalha em New York, utiliza ícones de várias culturas para falar da relação entre o homem e a tecnologia. Mas, não apenas para fazer uma reflexão sobre o tema, como muitos outros o fazem, a sua ideia é promover uma autêntica fusão dialógica que produza novos significados. A sua arte é apenas uma das muitas representantes de uma contemporaneidade que já percebeu o papel que cabe a arte, e aos artistas, nos tempos que correm: promover, uma vez mais, o diálogo entre distintas culturas, entre meios diversos, entre lógicas que aparentemente se repelem, mas que necessitam de alguém, ou algo, que construa uma ponte.
A obra de Gunes Terkol, outra artista turca, que pertence ao Ha Za Vu Zu artist group, é uma fusão entre técnicas diversas utilizadas para falar da identidade, ou das identidades sexuais. Entre um fundo abstrato e a colagem de objetos retirados do quotidiano, ela se considera uma contadora de histórias. E com suas histórias pretende que o espectador entre na sua obra através de suas próprias memórias. A identidade não é apenas do artista, mas daqueles que o veem e que com ele se identificam. Mais uma vez a presença do elemento dialógico que nos remete, invariavelmente, para uma amplificação do conceito criado por Bourriaud da estética relacional: a arte só funciona quando habitada e vivenciada.
Há artistas, como Vahap Avṣar, cujo trabalho político o obrigou a procurar refúgio fora da Turquia, refletem outra instância de criação da obra dos eternos Outros. Por mais diversos que sejam os trabalhos e as técnicas, todos caminham numa direção: o possível diálogo. O possível entendimento que não é a aceitação passiva e pacífica do outro, mas a fusão de ideias e a desejada confusão de identidades e espaços. Navegar já não é preciso. Mesmo sendo necessário. Navegar pode ser a possibilidade de perder-se no e com o outro, em outras terras, em outros espaços. Navegar em ir em direção a. Em direção ao outro, simultaneamente ao passado e ao futuro. Simultaneamente ao ocidente e ao oriente. O Mediterrâneo, como já disse, sempre foi um caminho. Talvez seja preciso voltar a percorrê-lo. E desta vez, deixar-nos perder um pouco naquilo que não conhecemos e experimentarmos o outro, que faz, mesmo que não queiramos, parte de nós.
quinta-feira, 20 de julho de 2023
Arte no pós-II Guerra / O adormecer da razão gera monstros
Arte no pós-II Guerra
O adormecer da razão gera monstros
“El sueño de la razón produce monstruos” - Goya
Após uma participação mais ou menos ativa na I Guerra, por parte de alguns movimentos de vanguardas, os artistas europeus não resistiram ao horror da guerra que veio a seguir e refugiaram-se numa espécie de estupor, onde as imagens da guerra foram banidas porque estavam demasiado presentes e por serem extremamente reais. Através da análise da obra de dois artistas, Zoran Mušič e Francis Bacon, pretendo refletir sobre o silêncio da arte europeia no pós-II Guerra.
Para Régis Debray “é uma banalidade verificar que a arte nasce funerária, e renasce apenas morre, sob o aguilhão da morte”. E conclui, posteriormente, que “as sepulturas foram os museus das civilizações sem museus, assim também nossos museus são, talvez, os túmulos característicos das civilizações que já não sabem edificar túmulos” (1993: 22). A arte nasce da morte porque a humanidade desejava ser imortal e, através das imagens de si mesma, convertia o seu desejo em obras que perdurariam para além da sua frágil existência. A figura humana, em suas diversas formas, mais ou menos simbólicas, mais ou menos perfeitas tecnicamente, mais ou menos belas, sempre foi um dos principais motivos da arte ocidental. Teoricamente, o início da História da Arte no ocidente é celebrado com as obras dos gregos que, liberados da obrigação simbólica de converter homens em deuses, tentaram criar, com suas mãos, imagens de homens e mulheres que representassem a ideia que eles tinham do real.
A presença do humano na arte confunde-se com o nascimento mesmo daquilo que chamamos de arte ‒ obras que em seu momento tiveram funções diversas, rituais, celebratórias ou mágicas, mas que a história passou a considerá-las como parte do grande acervo artístico ocidental. O corpo mimético começa a desaparecer da arte no início do século XX para ressurgir um outro corpo, fragmentado, reflexo de uma civilização à beira do abismo da I Grande Guerra. Podemos dizer que a fragmentação da figura humana nas artes visuais foi compensada pela aparição do corpo cinematográfico, cujo ecrã especular mostrava, em tamanho hiperdimensionado, corpos em movimento que encantavam um público crescente.
Através da análise do fim do século XIX, René Huyghe mostra-nos o caminho inexorável que os artistas acabarão por trilhar no século XX. Um caminho que reflete a incomunicabilidade e o declínio, não só da civilização ocidental, mas do próprio conceito de civilização. A opção pelo não figurativo na arte nada mais é que uma tentativa de escapar dos “sobejos do mundo visível”. A arte desiste de ser um reflexo da imagem humana e passa a refletir sobre a própria ideia de humanidade. A figura humana, presente em obras como a do artista italiano Giorgio De Chirico, aparece como estrutura obsessiva que exclui qualquer possibilidade de vida: são manequins e autómatos que atualizam o pesadelo de Goya. Os monstros gerados pela arte irão cada vez mais levar-nos a uma descida às trevas que pairam sobre a civilização europeia.
Apesar das descobertas da ciência e dos avanços tecnológicos, os artistas das vanguardas sentiam que era necessário representar o vazio que se instaurava na Europa, e no mundo ocidental. Sentiam-se incapazes de preencher este espaço deixado pelo fim das diversas crenças que alimentaram o século XIX e decidiram que o contributo que arte poderia, ou deveria, dar era o de representar os indícios da derrocada de um modelo de civilização. “No entanto, neste vazio, os artistas constroem muitas vezes uma realidade (…) Já no Surrealismo, Max Ernst gostava de erigir, como uma muralha intransponível, blocos de pedra numa esquadria curiosa onde, por vezes, se abrem estranhamente olhos” (HUYGUE, 1998: 270).
A II Grande Guerra e o fim das utopias
Cubistas, dadaístas, surrealistas, futuristas, expressionistas e todos os outros movimentos de vanguarda do início do século XX tinham algo em comum: acreditavam que a arte, a nova arte criada por eles, seria capaz de mudar o mundo. Experimentaram novos materiais, novos conceitos, novos suportes. Experimentaram novas maneiras de representar o humano, através da fragmentação, da negação do ponto de vista único da perspetiva linear, da simplificação de linhas, do despojamento ou do excesso. O corpo, na arte, era um novo corpo, construído à medida para uma nova era. Todos os artistas das vanguardas históricas transformaram a sua arte num manifesto ao novo, a um possível e desejável futuro, a um futuro que seria construído sob os escombros de uma grande guerra. Ou então, como os expressionistas, projetavam no passado o possível futuro da humanidade. Mesmo os dadaístas que fizeram da sua arte um manifesto contra o artista demiurgo, transformando os criadores em observadores privilegiados, em recolectores de objetos do quotidiano, viam na arte um caminho possível.
Com a chegada súbita, mas anunciada, da II Guerra, os artistas foram sendo dispersados pelo mundo. Da Europa rumaram, ou voltaram, para os Estados Unidos e enfrentaram a nova face do medo. Se a I Guerra ainda foi corporificável, a II não tinha uma face visível, tal era o horror que suscitava. Num mundo onde a incomunicabilidade tornara-se um problema de dimensões mundiais, paradoxalmente os novos meios de comunicação funcionavam como dispositivos de exibição de um mundo idealizado e expandido, cujo novo centro civilizacional estava situado fora da Europa.
Theodor Adorno, um dos grandes pensadores da Escola de Frankfurt, afirmou que seria impossível escrever poesia depois de Auschwitz. Esta ideia provocou um debate aceso entre os intelectuais e artistas do pós-guerra porque, afinal, a arte aparecia como uma possível forma de representação ou de sublimação do horror que fora experienciado por milhares de seres humanos. De qualquer forma, Valeriano Bozal diz que a arte e a literatura do anos 40 e 50 “estuvieron sometidos a las fuertes presiones de un mundo que parecía no poder ser dicho” (2003: 13). Um mundo em ruínas, já anunciado pelo Angelus Novus do artista suíço Paul Klee. Um anjo que é empurrado para frente, mas que olha, aflito, para o passado do qual não se consegue libertar. Uma figura que foi analisada nas teses do filósofo Walter Benjamin e que representava, na sua visão, o porvir da Europa e do mundo.
O ideário das vanguardas ainda acompanhou alguns artistas e refletiu-se em movimentos como o Expressionismo Abstrato, primeiro grande momento da arte no pós-II Guerra. Artistas como Pollock ou Rothko assumiam, nas suas obras, o silêncio do mundo visível que se tornara irrepresentável, mas as suas obras ainda aspiravam a alguma transcendência. Na Europa, o ar estava irrespirável e alguns artistas, e movimentos, reproduziram o clima de terror absoluto criando obras que lembravam a utopia passadista de algumas vanguardas, buscando o passado idílico, não na natureza, mas no próprio homem, na sua infância, antes de ser corrompido pela cultura, caso do Grupo Cobra ou da Arte Bruta. Ou, simplesmente, fugiram da representação mimética e/ou realista do mundo. Caso do artista Zoran Mušič. Ainda na Europa do pós-guerra Francis Bacon, seguindo a genealogia do espanhol Goya, produzia seus monstros: figuras disformes, como que apanhadas num momento em que revelavam seu espanto, seu estupor.
Um artista e o trauma da guerra
Zoran Mušič, artista esloveno, foi detido e ficou preso em Dauchau em 1944 de onde só saiu no fim da Guerra, em 1945. Foi-lhe dado a escolher: tornar-se um espião, membro das SS ou ser prisoneiro num campo de concentração. Ele escolheu a segunda opção que o levou para Dauchau onde presenciou a morte de diversos amigos e de desconhecidos. Conseguiu, durante a sua estância ali, representar o que via, com giz ou lápis, utilizando folhas retiradas de livros da biblioteca do campo de concentração, produzindo mais de 200 desenhos. Destes desenhos conseguiu salvar apenas cerca de 70. Os desenhos eram claramente influenciados pela obra de dois grandes artistas, considerados mestres por Mušič: Goya e Rembrandt.
Da obra de Goya encontramos, nos desenhos do artista esloveno, a minúcia dos detalhes nos pequenos formatos, bem como os traços selvagens, tortuosos, que tornam as figuras quase fantasmagóricas. De Rembrandt encontramos a capacidade que este tinha de isolar um rosto no meio de tantos e de, ao mesmo tempo, convertê-los todos em rostos de homens comuns. O claro-escuro das suas águas-fortes transparece nos desenhos a lápis que Mušič produziu entre 44 e 45 e que foram salvos, juntos com ele, do grande Holocausto.
A obra de Mušič compunha de corpos. Corpos amontoados, em improvisados carros funerários, homens enforcados, corpos deitados fora como lixo. Para Bozal, há uma forte consciência dramática nos traços deste artista, o que o torna muito próximo dos desenhos negros de Goya e da obra de Egon Schiele. Zoran Mušič disse que nunca teve uma intenção documental, apesar de sua obra ter-se convertido num importante retrato do pesadelo da II Guerra. Numa entrevista ao Le Monde, em Abril de 1995, quando confrontado com a ideia de ter revelado ao mundo “uma visão abominável”, ele responde: “Il le fallait. C’était abominable, mais c’était nécessaire. Je ne pouvais pas faire autrement. Dans le camp, il y avait une usine d’armement, avec des bureaux pour architectes. On m’y a mis un moment, j’ai pu prendre du papier, j’ai commencé…C’étaient des dessins descriptifs. Dans ces corps amaigris, les mains, les pieds et les sexes devenaient très importants. Et la structure, les doigts très fins, d’une finesse incroyable. Egon Schiele a dessiné des mains ainsi, mais il me semble que ce sont des dessins trop voulus, trop théâtraux. Schiele a cultivé ce genre, alors que, chez moi, c'était simplement le fait de l’observation”.
O motivo demandou o tipo de desenho que Mušič produziu. O drama não estava nos traços nem na composição em si, estava além, na própria realidade que o circundava. Depois de sair de Dauchau, o artista passou muitos anos a pintar ou desenhar apenas paisagens e muitas delas abstratas. Mesmo que estas paisagens deixassem transparecer uma certa atmosfera de desconforto, como se o mundo estivesse em suspensão, eram paisagens que nada tinham a ver com os retratos produzidos durante a sua prisão. Voltou-se para um abstracionismo muito particular, como forma de reafirmar que, diante do indizível, não havia nada que a arte pudesse fazer. Só em 1970 é que ele volta à figura humana numa série de desenhos e pinturas que denominou Nous ne sommes pas les derniers.
Nós não somos os últimos é uma série que reproduz, obsessivamente, a ideia dos desenhos de Dachau: a morte, o flagelo, a despersonalização do homem que se converte em cadáver, ao lado de tantos outros, atirados em valas comuns. O rosto de cada uma das figuras denota um desespero mudo retratado numa boca aberta que, sabemos, incapaz de produzir qualquer som. Mais uma vez os traços de Goya que anunciam o Expressionismo e a assunção plena da dramaticidade, presente nos traços de Egon Schiele. Os corpos distorcidos e alongados remetem-nos à obra de Giacometti, outro artista que Mušič admirava.
Para Bozal há, na série Nous ne sommes pas les derniers, uma tentativa do artista demonstrar que o horror não acabou, que a figura humana é esvaziada e desumanizada em diversas ocasiões e que aquelas figuras não são apenas ecos de Dachau ‒ os cadáveres sem substância, como se estivessem ocos, são memórias reelaboradas e transpostas para a contemporaneidade: “la memoria se convierte de este modo en marco donde elaborar el presente” (BOZAL, 2003: 31).
O presente é vivido através do filtro da memória que, de maneira obsessiva, reinscreve a história continuamente no ciclo da vida. Na citada entrevista ao Le Monde, Mušič acaba por dizer: “J’aurais pu illustrer. Ce n’aurait pas été difficile. Je ne voulais pas. J’attendais que cette vision prenne une forme dans ma mémoire. Elle était en permanence devant moi, ces cadavres allongés. Pour réussir à sortir une lumière de cela, il aurait fallu un Goya peut-être. Il me semble que je n’ai pas réussi comme je l’aurais voulu. Ce n’était pas possible peut-être. Si j’ai réussi à donner à celui qui regarde un peu de mon émotion, c’est déjà beaucoup”.
Foram necessários 25 anos para que o artista esloveno conseguisse recuperar as imagens que traumatizara ao sair de Dachau. Diante do horror real, à arte, muitas vezes, só resta o silêncio.
Os monstros de Francis Bacon
A obra do pintor irlandês Francis Bacon retrata, de outra maneira, uma visão pessimista e cruel da figura humana e, talvez, da própria ideia de humanidade. Seus quadros reproduzem um horror indizível presentificado nas formas e nas cores com as que compõe suas figuras. Admite que foi influenciado pelo cinema de Fritz Lang e de Sergei Eisenstein que teve oportunidade de ver quando da sua passagem por Berlim nos anos 20. O Couraçado Potemkin deu-lhe a conhecer os rostos estupefactos das pessoas na famosa cena da escadaria. Rostos desumanizados pela dor, pelo desespero, mudos na sua condição de sombra projetada num ecrã e na sua condição de seres anônimos, atravessados por uma batalha que não era deles, mas que os atingia a todos de forma cruel.
Bacon apropria-se da obra de Velázquez, Papa Inocéncio X e atualiza a imagem, sobrepondo-lhe um grito de horror, inspirado numa personagem do filme de Eisenstein. Além do grito, as cores retratam uma ideia muito comum à obra do artista irlandês, a putrefação. Corpos putrefactos ou mutilados, desinvestidos de qualquer indício de beleza ou de equilíbrio povoam o universo de Bacon. Um dos quadros mais significativos do seu período pós II Guerra, Man with dog (1953), reproduz a visão do homem naqueles dias: uma sombra sem rosto ao lado de um animal quase humano, numa rua escura.
O homem é apenas uma sombra, não tem substância, volume, peso. É uma mancha no passeio que se alastra pela parede. O cão tem um rosto humanizado e traduz uma espécie de angústia profunda na sua figura retorcida, levado por uma trela, olha na direção de um bueiro. Mais uma vez a presença do mestre espanhol, Goya, que influenciou a obra de Mušič, aparece aqui como presença reclamada neste quadro de Francis Bacon. O quadro de Goya, El perro, representa um cão, do qual vemos apenas a cabeça já que o resto do corpo está ocultado por uma espécie de monte castanho. Metade da obra é preenchida por um espaço vazio, para onde o cão olha. Muitas são as interpretações que este quadro, da fase das Pinturas Negras, suscitou. O quadro, também conhecido como Perro Semihundido, dá-nos a ver um cão aparentemente semienterrado que olha para o céu mas o que vê é um imenso vazio.
O vazio de um céu que já não tem respostas e nem saída para o cão, ou para a humanidade. A obra de Goya data dos anos 20 do século XIX e a de Bacon da segunda metade do século XX. Numa ou noutra a ideia de vazio é central para a compreensão do conceito por trás do quadro de ambos artistas. O vazio como única resposta para a humanidade que perdeu a fé, por razões diversas, e que se encontra irremediavelmente só.
E no final, o silêncio
Através da pintura ou do desenho, diversos artistas tentaram, se não reproduzir, refletir sobre o que aconteceu à humanidade finda duas guerras mundiais. Será que era ainda possível escrever poesia depois de Auschwitz? Está comprovado que sim, Adorno não tinha razão. Apesar do horror do Holocausto, a arte ainda consegue falar. O que mudou, sem dúvida, foi o seu discurso e a sua forma. Quando os homens deixaram de ser nómadas e assentaram, a arte deixa de ser naturalista e vai, paulatinamente, tornando-se abstrata. Os homens não sabiam como representar o invisível ‒ as forças da natureza com as quais tinham de lidar. Na falta de uma imagem no mundo que pudesse traduzir em formas o indizível, optou-se por seguir o caminho da abstração.
Finda a II Grande Guerra, os artistas perceberam que traduzir tal horror era tarefa impossível. Poderiam representar a ideia do horror. Poderiam falar sobre ela, gritar o seu nome, invocá-la. Mas não conseguiriam dar-lhe um rosto único, porque sabiam das muitas faces do horror. Assim, decidiram optar pelo silêncio. Não por se calarem ou por deixarem de criar. Mas por permitirem que as suas obras refletissem, de forma especular, sobre esta nova forma de vazio, sobre este novo silêncio que se abateu sobre o mundo, mesmo depois de a guerra acabar.
Referências Bibliográficas
ARGULLOL, Rafael. El fin del mundo como obra de arte. Barcelona, Acantilado, 2007
BOZAL, Valeriano. El tiempo del estupor. Madrid, Siruela, 2003
DEBRAY, Régis. Vida e morte da imagem: uma história do olhar no ocidente. Petrópolis, Vozes, 1993
HUYGUE, René. O poder da imagem. Lisboa, Edições 70, 1998
quarta-feira, 19 de julho de 2023
Hilda Hilst / XXIX
Te sei. Em vida
Provei teu gosto.
Perda, partidas
Memória, pó
Com a boca viva provei
Teu gosto, teu sumo grosso.
En vida, morte, te sei.