quinta-feira, 24 de agosto de 2023

Transpondo sátiras / Duas tradutoras de eslovaco falam sobre como encontrar inspiração

Texto de Majling, original em eslovaco, com os nomes modificados de Dostojevzski (Dostoiévski), Tolsztoi (Tolstói) e Toorgenef (Turguêniev). Foto de Filip Noubel, usada com permissão.


Transpondo sátiras: duas tradutoras de eslovaco falam sobre como encontrar inspiração

Para tradutores literários, nada é mais desafiador, e talvez mais inspirador, do que textos de humor, pois necessitam de uma tradução dupla: linguística e cultural. A Global Voices pediu para duas tradutoras que trabalharam com a obra “Ruzká klazika“, do escritor eslovaco Daniel Majling, um livro de sátiras sobre literatura clássica russa, contarem sobre suas estratégias para essa delicada transposição.

Podemos descrever a coletânea de contos de Majling como pastiche, um termo que se refere à imitação artística, e que também indica mescla de elementos. De fato, em seu livro, Majling faz referências a autores clássicos russos, mas distorce os nomes e os coloca em situações grotescas cheias de humor ácido. Além das ironias, o livro tem o subtítulo “Zostavil a preložil Daniel Majling”, que significa “organizado e traduzido por Daniel Majling”, como se o texto eslovaco original fosse em si uma tradução, semelhante a apresentação de Cervantes no clássico Dom Quixote.

Retrato de Weronika Gogola, foto usada com permissão.

Weronika Gogola é uma premiada escritora polonesa de Bratislava, que também traduz do ucraniano e eslovaco para o polonês. Sua tradução do livro de Majling será publicada no fim do ano na Polônia. Ela explicou a estratégia para transposição de humor, que muitas vezes depende de substituições e alusões veladas:

Em algumas partes do texto o humor na tradução polonesa foi menos ácido, em outras mais do que no original. Eu tive sorte de conhecer Majling pessoalmente e pude conversar sobre alguns temas, e também inseri algumas notas no caso de pequenas imprecisões no texto original. O próprio Majling sugeriu, que nessas notas, eu comentasse ironicamente a inabilidade dele com certos assuntos.

O tom do livro permite uma certa liberdade, o que podemos chamar de “efeito Majling”. Uma oportunidade assim é rara no trabalho de tradução — mas para ser clara, eu discuti todas essas questões com o autor.

Retrato de Julia Sherwood, foto usada com permissão.

Para Julia Sherwood, uma veterana em traduções da literatura eslovaca, juntamente com seu marido Peter, a tradução parcial do início do livro foi uma oportunidade de ser criativa na tradução de nomes, além de outros aspectos:

Cada história de “Ruzká klazika” (o título é uma variação de ‘Clássicos Russos’ com letras trocadas) é uma paródia do estilo de um escritor russo, então a tradução precisa atingir o mesmo efeito. A introdução do livro não foi difícil de traduzir, nem a história “The Rebirth of the Orthodox Faith in Our Town” (O renascimento da fé ortodoxa em nossa cidade), que é um pastiche de um conto folclórico, e eu espero termos conseguido fazer a tradução funcionar. Fazer uma versão em inglês dos nomes de personagens foi complicado, mas divertido; o personagem “tulák Arťom Skočdopoľa-Prašivý” se tornou “the vagrant Artyom Dzhumpilov-Scabbymugin” (o vagabundo Artyom Dzhumpilov-Scabbymugin). As letras trocadas não foram um problema, exceto no título do livro: Nós colocamos como “Rushian Clashics”, mas outras versões são possíveis. Vocês colocaram como “Roosyan Klassiks” em um artigo da Global Voices, e eu também vi a tradução “The Ruzzian Clazzics”. Um dia, se uma editora de língua inglesa for publicar o livro completo, o título pode ficar diferente novamente.

Uma escolha incomum: literaturas menos conhecidas

Traduzir um texto é apenas metade do trabalho para a maioria dos tradutores literários que trabalham com as chamadas “línguas menores”; línguas raramente traduzidas e com literaturas geralmente desconsideradas por editoras, como é o caso ainda da literatura eslovaca. Nesses casos, tradutores atuam como agentes literários e promotores de reinos literários menos conhecidos e menos valorizados, como explica Gogola:

No caso de “literaturas menores”, a regra é que os tradutores tomem a iniciativa sozinhos. Isso também aconteceu no meu caso. Fiquei maravilhada com o livro de Majling, com seu humor rasgado e a liberdade que ele se permitiu.

Porém, Sherwood, que também tem um podcast em inglês sobre literatura eslovaca, acredita que as atitudes estão mudando no mundo editorial global anglófono:

É verdade que, comparado com a literatura tcheca, polonesa ou húngara, escritores eslovacos são muito menos conhecidos, mas, felizmente, isso começou a mudar recentemente. Obras de autores eslovacos contemporâneos como Balla, Jana Bodnárová, Jana Beňová, Ivana Dobrakovová, Pavel Rankov, Monika Kompaníková e Uršuľa Kovalyk, têm sido traduzidos para o inglês. Autores eslovacos também têm recebido mais reconhecimento internacional, por exemplo, “Piata loď “(Boat Number Five – Barco número cinco), de Monika Kompaníková, traduzido por Janet Livingstone, foi uma das finalistas do concurso literário EBRD Literature Prize em 2022. De fato, “Boat Number Five” foi um dos dois primeiros livros da série de literatura eslovaca lançada pela editora Seagull Books, uma esplêndida pequena editora de Calcutá com distribuição mundial que publica muita literatura traduzida.

No fim, na verdade, a motivação da maioria dos tradutores literários é a paixão por um texto, e a decisão de traduzir e promover, mesmo que a publicação demore muitos anos. Quando perguntada sobre porque escolheu Majling, Gogola admite: “Definitivamente porque Majling é imprevisível. Quando você começa a ler, não consegue adivinhar o que vai acontecer no fim da história, é o que faz você realmente gostar do texto”.

Sherwood, que compartilha esse entusiasmo, também relaciona o livro com o novo contexto da invasão russa na Ucrânia:

O que eu mais gosto no livro é a irreverência e diversão. Nos últimos meses, diante da guerra na Ucrânia, muitas pessoas rejeitaram a cultura russa em geral e a literatura russa em particular. Ainda que essa resposta emocional seja compreensível, certamente por parte dos ucranianos, para mim foi longe demais, e fico feliz de ver em sua entrevista com Daniel Majling, que ele também pensa assim. Por outro lado, a literatura russa é frequentemente colocada em um pedestal e tratada como algo sacrossanto, e por isso a abordagem irreverente de Majling é tão refrescante. De certa forma, faz parte do espírito da literatura russa, pois, tirando os escritores dos livros pesados e solenes, sempre houve autores com um toque mais leve e senso do absurdo. Até mesmo o grande Pushkin é conhecido por ter escrito um poema sujo.

Gogola também fala do contexto atual na sua última resposta, sobre a questão das “literaturas menores”:

Talvez o livro de Majling seja um bom pretexto para redefinir o lugar da cultura russa no mundo europeu. Rir de algumas coisas pode nos ajudar a “ventilar” nossa angústia com o ataque russo à Ucrânia. Isso não significa que devemos parar de ler clássicos russos, mas precisamos lembrar que o status da língua ucraniana sempre foi incerto: os ucranianos precisaram provar por décadas que possuem uma língua e literatura próprias. Apoiar a literatura em línguas menores ajuda à sua sobrevivência. Infelizmente, a política russa impediu esse tipo de abordagem desde o período imperial. Simbolicamente, então, como leitores, nós podemos nos opor à Rússia pela leitura da literatura das “nações menores”.


GLOBAL VOICES

 

domingo, 13 de agosto de 2023

Dialogue Boxes on Street Windows / Traçando fronteiras, o público e o privado na cartografia das cidades contemporâneas

 


*Dialogue Boxes on Street Windows*, Faro, Portugal, 2009



Dialogue Boxes on Street Windows

Traçando fronteiras, o público e o privado na cartografia das cidades contemporâneas

22 AGOSTO 2014, 

“O homem que cavalga longamente por terrenos selváticos sente o desejo de uma cidade”‒. Italo Calvino

Vivemos numa época em que um vale-tudo no campo das Artes promove uma autêntica dessacralização dos termos e dos usos, no bom e no mau sentido. No bom sentido, promovendo uma aproximação entre a arte e vida, permitindo que os lugares considerados do saber sejam convertidos em lugares do sabor, da possibilidade lúdica da criação artística que ultrapassa fronteiras diversas. No mau sentido, por promover uma deseducação do público e um crescente afastamento do mesmo em relação àquilo que é artístico. Arte Pública é um termo historicamente consagrado, com diversas manifestações que, ao longo do século XX e no século XXI, esteve ligado a um princípio que não pode ser esquecido: intervir no espaço urbano é uma atitude política. É um ato que afeta a comunidade envolvente e, como tal, deve pensar o seu papel e conhecer a sua função.

No início do século XX, o Dr. ATL (pseudónimo do pintor e escritor Gerardo Murillo) publicou um manifesto defendendo a necessidade de uma arte pública. Em Barcelona, alguns anos mais tarde, o artista mexicano David Alfaro Siqueiros fez apelo aos artistas da América proclamando a necessidade de se lançarem todos na tarefa de promover uma arte capaz de falar às multidões: “Pintaremos os muros das ruas e das paredes dos edifícios públicos, dos sindicatos, de todos os cantos onde se reúne gente que trabalha”. O muralismo mexicano é um dos grandes exemplos de Arte Pública com uma função político-social inegável, que buscou levar a arte ao público, que de outra maneira não poderia ser por ela atingido. Não só levar a arte para o público como transformar os muros das grandes cidades e painéis de edifícios em superfícies especulares onde a classe trabalhadora se revia. No contexto do seu nascimento, o muralismo mexicano refletia sobre três questões fundamentais: a questão do nacionalismo, a ideia de classes populares e os princípios revolucionários. O povo, sobretudo os autóctones, não estavam representados nas camadas do poder e não tinham sequer direito à representação da sua imagem e a difusão dos seus princípios estéticos. A arte retratava o mundo europeu, conforme regras europeias e afastava tudo aquilo que se mostrasse como um desvio destes princípios. Assim sendo, a proposta de Siqueiros é duplamente revolucionária – ele propunha que as identidades nacionais fossem resgatadas e que se refletisse na produção artística mexicana. Além disso, era no espaço público que esta batalha deveria ser travada, retirando do universo elitista da produção e circulação da arte as obras que tinham uma função político-social bastante definida: uma arte feita para o povo e sobre o povo.

Este movimento foi protagonizado por três grandes artistas: Diego Rivera, David Alfaro Siqueiros e José Clemente Orozco. O ciclo de frescos pintados por Orozco na Escola Nacional Preparatória e os murais de Rivera no pátio do Ministério da Educação aparecem como ponto alto deste período artístico revolucionário, que tem início na década de 20 do século XX, e que se expande, a partir dos anos 30, além-fronteiras para países como Brasil, Estados Unidos e Peru. O muralismo consolidou-se como a arte representativa do período pós-revolucionário, seguindo “seu generoso anseio de servir a causa do homem: dos campesinos, dos trabalhadores, dos sobreviventes da dramática contenda da guerra civil, com um saldo de milhões de mortos” (1).

Seguindo os passos do muralismo mexicano, o artista norte-americano George Biddle propõe em 1933, ao então presidente Roosevelt, a criação de um projeto nacional para as artes. Surge aquilo que ficou conhecido com a Arte do New Deal, que originou dois tipos de apoio do governo aos artistas da época, promovendo, ao mesmo tempo, a criação de um acervo nacional e público da obra daqueles artistas. Através de dois projetos, o Public Works of Art Project e o Federal Art Program, 5.000 artistas, durante quase 10 anos, produziram cerca de 2500 frescos, 18 mil esculturas, 108 mil pinturas, 200 mil cópias de gravuras e 200 mil cartazes. Um crítico da época, Francis O’Connor, definiu a Arte do New Deal como “uma arte para milhões”. A ideia era precisamente esta: através da arte tentar promover o rejuvenescimento espiritual de que o país necessitava em tempo de crise.

Biddle acreditava que a arte poderia servir de base para a construção de um projeto social inclusivo e democrático. Acreditava no papel do Estado como patrocinador ou mecenas da arte. Numa entrevista concedida a Harlan Phillips para o Archive of American Art, em 1963, Biddle refere a sua experiência com os três grandes artistas mexicanos e o papel que o muralismo mexicano teve na arte do New Deal, influenciando toda uma geração de jovens artistas norte-americanos (2).

A relação entre arte pública e política nem sempre é explícita ou está enquadrada num programa ou movimento revolucionário. Durante o século XX a arte foi abandonando os lugares tradicionais de exibição e foi ampliando o seu alcance em busca de criar novas linguagens e de repensar o papel da arte na nossa cultura. Exemplo disto é o que aconteceu com a Land Art e suas diversas vertentes como a Environmental Art: o espaço deixa de ser um motivo e converte-se no suporte. Obras como a de Robert Smithson e Michael Heizer questionam a própria ideia de objeto/obra de arte e convidam o espectador a penetrar na obra para vivenciá-la plenamente. A natureza distante torna-se visível através das intervenções de artistas que provocam reações diversas no público e desestabilizam a ideia da obra de arte mercantilizável. O espaço abre-se para novas experiências, seja fora ou dentro dos centros urbanos. O limite entre arte-não arte, público-privado, real-representação torna-se cada vez mais diluído e permite aos artistas experimentarem novos formatos e proporem novas experiências/vivências.

A arte reclama novos critérios de validação e novos espaços, desafiando constantemente as classificações habituais. A partir da 2ª Guerra Mundial, as obras articulam cada vez mais novas e múltiplas linguagens e tentam dirigir a criação artística às coisas do mundo. Numa abordagem menos político-ideológica, mas não menos interessante, o argentino Lucio Fontana, escreve o seu Manifiesto Blanco em 1946, onde cria a teoria do espacialismo. Neste manifesto, Fontana propunha a colaboração estreita entre arte e ciência no desenvolvimento e na síntese de novas ideias e materiais. O desejo de Fontana, e de outros artistas que assinam também o manifesto, era o de projetar cores e formas num espaço real, utilizando técnicas como luz néon e a televisão, ao mesmo tempo que negava num espaço ilusório criado na pintura tradicional. Em 1947, o artista apresenta a obra inaugural do movimento ‒ uma sala pintada de preto ‒ designando-a Ambiente Espacial Negro, e reafirma as ideias do manifesto publicado no ano anterior com a divulgação do Manifesto Técnico do Espacialismo, que exalta a importância do espaço real, existente além da tela e da escultura, e o uso da ciência e da tecnologia na transformação plástica desse ambiente. A ideia chave de Fontana era invadir o espaço, extra-tela e extra-muros, para modificá-lo através da arte, provocando no público reações distintas e estimulando o nascimento de um novo olhar para o espaço circundante.

Assim, de diversas maneiras, a arte pública pode ser vista como uma arte fisicamente acessível, que modifica a paisagem, de modo permanente ou temporário. Seja através de técnicas tradicionais, como o Muralismo mexicano, ou da junção arte/tecnologia, proposta por Fontana, o essencial é que a proposta desta Arte, que invade os espaços fora dos tradicionais museus e galerias, é o de alterar a paisagem ordinária. Em alguns casos, promovendo a recuperação de espaços degradados e provocando um debate cívico.

O conceito de Arte Pública voltou a ganhar visibilidade a partir do início dos anos 70 do século XX e serviu para caracterizar um novo tipo de intervenção artística no espaço público que se distinguia do tradicional monumento comemorativo. Na passagem do século XIX para o século XX, artistas como Rodin, Brancusi e Picasso vão realizar obras que negam o conceito de monumentalidade da arte pública tradicional. O importante, para estes artistas, era a dessacralização do espaço tradicional de exibição da arte bem como a penetração no tecido urbano com obras que revelam um novo olhar diante do mundo. O espaço urbano vai, aos poucos, ser convertido num local por excelência da experimentação artística. Entre os anos 60 e 70 houve uma explosão de ideias que levou à invasão do espaço urbano, provocado pela necessidade de a arte, uma vez mais, afirmar-se como tal num mundo agora convertido em local de consumo.

A sociedade contemporânea vive num estado de psicastenia: perda dos limites espaciais. Este termo, utilizado por Celeste Olalquiaga, representa uma das muitas condições contemporâneas: “A psicastenia, definida como uma perturbação da relação entre o eu e o território em torno, é um estado em que o espaço definido pelas coordenadas do próprio organismo se confunde com o espaço representado” (3). Ou seja, o corpo do sujeito confunde-se com o ambiente e torna-se parte deste, perdendo, durante o processo, a sua condição de entidade própria. O processo é típico das culturas urbanas e já foi, de alguma maneira, retratado por Edgar Allan Poe no seu conto O Homem da Multidão, editado em 1840. No conto, Poe narra a história de um homem que se depara com um novo ser, desconhecido e não reconhecível, “o homem da multidão” – uma criatura que se confunde com o ambiente em que vive e, como uma espécie de camaleão, camufla a sua presença tornando-se invisível aos olhos mais desavisados. O conto de Poe mereceu a atenção de Baudelaire que, ao refletir sobre a ideia de Modernidade, usa a imagem de Poe para situar o novo homem que surgira no século XIX, após a Revolução Industrial e durante o processo de metropolização das grandes capitais europeias.

O espaço urbano, e a condição de quem nele vive, alteram-se profundamente no século XIX e esta mudança vai tornar-se cada vez mais visível no decorrer do século XX. Há uma crescente perturbação da relação entre o eu e o território que nos rodeia. O nosso organismo, dificilmente, consegue traçar as coordenadas que dividem o espaço da experiência real com o da experiência virtual. Espaço e representação se (con)fundem. Isto porque, além da relação constante com as novas teletecnologias, que comprimem e alteram a nossa relação espácio-temporal, as cidades há muito que se converteram em galerias a céu aberto, onde anúncios diversos, grafites, fios, luzes, cartazes, montras e muitos outros elementos, promovem uma saturação sensorial onde o corpo, para defender-se, metamorfoseia-se e confunde-se com o espaço que palmilha. Por isto a questão do espaço tem sido uma constante entre os artistas contemporâneos. É necessário promover uma nova cartografia, recriar este espaço saturado e apropriar-se dele, traçando necessárias fronteiras para que o olhar volte, novamente, a ver. Para que a Arte seja, novamente, um gesto de intervenção e provocação.

Dialogue Boxes on Street Windows

Na terceira edição do programa Art Allgarve, em 2009, foi pela primeira vez integrada uma componente regional, para a qual contribuíram docentes e alunos de Artes Visuais da UAlg – os primeiros enquanto curadores (Alexandre Barata/Xana e Mirian Tavares), os segundos enquanto artistas. O projeto Dialogue Boxes on Street Windows, composto por diversas intervenções produzidas por quatro artistas de renome e dez estudantes da UAlg, esteve nas ruas do centro histórico de Faro durante três meses, desde Junho até ao final de Setembro. Foi, comprovadamente, a exposição mais vista do Algarve já que as pessoas circulavam pelas ruas da baixa e do centro histórico de Faro conseguiram fruir, mesmo não intencionalmente, da arte que estava ali, ao lado delas. O projeto teve ainda uma vertente pedagógica pois tentou-se mostrar aos transeuntes, através do contraste entre as obras e o seu em torno, que nem tudo que está exposto na via pública é arte.

Dialogue Boxes on Street Windows visava, por um lado, recuperar a ideia inicial da Arte Pública como um processo de invasão do espaço urbano, promovendo a sua reconfiguração e, por outro, aproximar a arte do público que, em geral, não está habituado a ir a locais de exposição convencionais como galerias, centros de arte e museus. Nestas intervenções a arte afirma-se como um espaço de promoção do diálogo entre as pessoas, envolvendo-as e questionando-as. Foi um convite ao olhar crítico, à participação ativa no processo de construção de uma cidade de cultura e, obviamente, de uma cidade voltada para a cultura.

Há, com frequência, espaços que são esquecidos, ruas por onde não circulam pessoas, lugares que se tornam quase invisíveis, tão invisíveis que ninguém repara nas suas casas e fachadas, como se houvesse uma cidade oculta sob aquela mais solar. Assim, neste contexto, a ideia fundamental do projeto Dialogue Boxes on Street Windows foi o de criar uma cartografia alternativa, um percurso diverso que obrigasse as pessoas a olharem à cidade; (re)descobrirem cantos e recantos, deixarem-se perder em ruas transversais, em ruas por onde não costumam andar mas em que há muito que ver/viver. Se este património continuar escondido, deixará de fazer sentido no mapa da cidade e, perdendo assim a sua função, poderá ser destruído, não restando nem a sua memória: apenas um espaço vazio.

Os artistas e as obras

Os artistas escolhidos têm percursos muito diferentes mas possuem, como característica comum, um lado profundamente instigante e experimental em tudo o que fazem. António Costa Pinheiro nasceu em Moura em 1932 e muito cedo percebeu que a situação de repressão no país não o permitiria realizar grandes experimentações artísticas e culturais, assim sendo, emigrou à procura de um espaço para expor novas ideias.

A importância da sua obra, iniciada em finais da década de 50 e pouco depois integrada na ação do Grupo KWY, fez dele um dos mais significativos artistas da segunda metade do século XX em Portugal.

Para Dialogue Boxes on Street Windows, Costa Pinheiro recuperou parte da sua obra realizada entre 1967 e 1975, Citymobil – Arte-Projeto, que está integrada na fase conceptual do artista. Neste trabalho ele utilizou objetos que se organizam em narrativas dentro de uma cidade que é, permanentemente, transformada pelos seus habitantes. Ideia que se encaixou perfeitamente na proposta curatorial deste projeto e que continua a ser inovadora e instigante, mesmo após tantos anos.

Ana Vidigal nasceu em Lisboa em 1960, tendo estudado pintura na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa. Entre 1985 e 1987 foi bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian. Foi pintora residente, de 1998 a 1999, no Museu de Arte Contemporânea na Fortaleza de S. Tiago, no Funchal. Fez inúmeras exposições individuais e coletivas, entre as quais se destacam: I Exposição Ibérica de Arte Moderna, em Campo Maior e Cáceres; Feminine Dialogue, para a UNESCO em Paris; Portuguese Contemporary Artists, no World Trade Center de Nova Iorque; Portugal Hoy, no Centro Cultural Conde Duque em Madrid; Pintoras Portuguesas do Século XX, na Galeria de Exposições do Leal Senado em Macau e Quando o Mundo Nos Cai em Cima, no Centro Cultural de Belém. Em 1995, Ana Vidigal foi convidada pelo Metro de Lisboa a realizar um painel de azulejos para a estação de Alvalade, tendo, sete anos mais tarde, executado vários painéis de azulejo para a estação de Alfornelos.

No projeto Dialogue Boxes on Street Windows Ana Vidigal decidiu explorar o espaço público através de um olhar, ao mesmo tempo, perverso e infantil, ao utilizar figuras que parecem saídas de ilustrações dos anos 50. Os painéis da artista colocaram o público na incómoda posição de voyeur, que participa, voluntariamente ou não, de uma série de jogos propostos por duas meninas, especulares, mas de tamanhos diferentes ‒ o que marca uma relação de poder e submissão. As janelas abrem-se de par em par e deixam que o público invada, completamente, o espaço privado, e sagrado, da inocência infantil.

Susanne Themlitz nasceu em Lisboa em 1968. Vive em Lisboa e Colónia. Em 1993, concluiu os estudos de Desenho e Escultura no Ar.Co, em Lisboa, tendo passado o ano de 1992 no Royal College of Art, em Londres. Em 1995, concluiu um mestrado na Kunstakademia de Düsseldorf. O seu trabalho, nas diversas técnicas e materiais que utiliza, é caracterizado pela presença de figuras assustadas, mutantes e insólitas, numa condição visivelmente marginal. O carácter onírico é acentuado pela ideia de que as figuras e paisagens indiciadas em seus trabalhos estão fora do tempo, como se habitassem um espaço mítico.

Neste projeto, Susanne Themlitz desenvolveu um trabalho inquietante, onde um edifício deixa de ter fronteiras entre o espaço de fora e o espaço de dentro – ambos passam a conviver, lado a lado, numa superfície externa. Não é preciso espreitar para dentro das janelas, a casa, como que esventrada, é exposta ao olhar de todos. Os elementos, que convivem na superfície do edifício, estão também eles fora do tempo e do espaço apropriados, remetendo-nos para o universo onírico da artista.

Manuel Batista nasceu em Faro em 1936. Em 1957, matricula-se em Arquitetura, curso que abandona para se dedicar exclusivamente à pintura. Em 1962, conclui o Curso Complementar de Pintura na ESBAL. Entre 1962 e 1963, está em Paris como bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian e, em 1968, em Ravena, como bolseiro da Alta Cultura. Foi assistente de Pintura na ESBAL entre 1964 e 1972. A partir de 1977, desloca-se regularmente a Lippstadt e Schmallenberg, na Alemanha, onde trabalha e realiza tapeçarias para a fábrica Folke. Vive e trabalha em Faro e em Lisboa.

O seu trabalho, que sofre modificações ao longo dos anos, pode ser caracterizado pela ideia de desconstrução e recomposição das superfícies. Há um cruzamento entre uma paisagem apenas sugerida e uma forte tendência ornamental. As cores são utilizadas no intuito de valorizar o seu brilho e transmitir um tom alegre e despreocupado.

Manuel Baptista trabalhou a dualidade entre as superfícies, a ideia de bidimensionalidade e de tridimensionalidade que se cruzam e se complementam, criando um efeito ornamental e decorativo, sem deixar de ser provocador. Uma provocação que evoca a Pop Art, recheada de ironia e bom humor, tornando o espaço público atraente e vivo, buscando atrair também o olhar do público que passa e que já não vê o espaço que o circunda.

As obras dos jovens artistas

Andreia Filipe, Alexandre Lima, Guilherme Gonçalves, Gustavo de Jesus, Joana Bárbara, Mara Barth, Paulo Quaresma, Tatiana Barreiros, Tiago Custódio e Úrsula Mestre foram os dez jovens artistas e estudantes recém-licenciados do curso de Artes Visuais da UAlg que invadiram o centro histórico de Faro, interpelando os transeuntes com várias abordagens. Os seus trabalhos seguiram caminhos muito diversos, desde a utilização de uma linguagem de banda desenhada, onde as personagens espreitam das janelas das casas para a rua que as envolve, até à presença de noivas suicidas, enquadradas num espaço real que se converte em espaço cénico. As técnicas utilizadas foram as mais variadas, passando por pinturas realizadas diretamente sobre a superfície das casas até ao trabalho realizado sobre materiais, como telas e madeiras, e posteriormente colocado nas fachadas.

Além dos trabalhos realizados nas fachadas de algumas casas do percurso, estiveram ainda expostas peças tridimensionais que ocuparam o passeio e os largos e que abrigaram, em muitos casos, performances dos alunos/artistas, que tiveram lugar ao longo do Verão, aos sábados à noite, dando assim uma dimensão ainda mais dinâmica e intensa à relação da arte com o espaço público. Foi o caso, por exemplo, da obra de Úrsula Mestre, com a instalação performativa Saia que gritas, que abordava as questões de género no século XXI através de três peças ‒ três saias das quais três mulheres se tentam libertar ‒, e da obra de Paulo Quaresma, que no contexto do projeto O meu abrigo é o meu templo encarnou a personagem de um sem-abrigo e criou uma casa de papelão, que levava às costas e montava em vários espaços da cidade.

O projeto, que esteve visível por três meses, entre Julho e Setembro de 2009, proporcionou aos habitantes da cidade e aos que a visitaram no período, uma experiência sensorial única que, deveria ser repetida mais vezes. Este poderia ser um trabalho mais continuado para que Faro, e outras cidades, pudessem sentir como a arte é capaz de transformar o espaço que a rodeia e criar novos itinerários dentro da mesma cidade.

Este projeto proporcionou ainda um momento único de aprendizagem para os alunos da licenciatura em Artes Visuais da UAlg bem como para os recém-formados que participaram na exposição enquanto artistas, pois aprenderam a trabalhar em condições complicadas, em superfícies inovadoras e a criar algo para uma exposição site specific, o que não é uma tarefa fácil.

Tentou-se, efetivamente, provocar um diálogo entre a cidade e as pessoas que nela habitam ou que por ela passam, todos os dias e quase já nem a veem. A cidade torna-se invisível pelo cansaço do olhar que vê sempre o mesmo e que acaba, por conseguinte, deixando de ver. Mesmo que a política de uma forma mais explícita não estivesse presente em nenhuma das obras, a atitude do projeto foi uma atitude profundamente politizada, provocando uma ligação entre a Arte Contemporânea, muitas vezes tão distante do público em geral e a cidade, intervindo de maneira a evitar os lugares-comuns que habitualmente povoam as ruas e criando uma proposta instigante para que as ruas da baixa de Faro, muitas delas quase desertas, pudessem ser novamente repovoadas e reabilitadas.

Notas
(1) Arenal de Siqueiros, Angélica, Vida y obra de David Alfaro Siqueiros, México, FCE, 1975, pp. 8-9.
(2) Oral history with George Biddle
(3) Olalquiaga, Celeste, Megalópolis. Sensibilidades Culturais Contemporâneas, São Paulo, Nobel, 1998, p. 24.

MEER


sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Costa Pinheiro / Figurações

 

"Fernando Pessoa-Heterónimo": talvez o artista encontrasse no poeta uma tradução possível de si mesmo

Costa Pinheiro: Figurações

24 nov 2016 — 3 fev 2017 na Galeria Trem em Faro, Portugal

O aluno, muito admirado, pergunta: mas ele é mesmo o Costa Pinheiro, autor daquela imagem do Fernando Pessoa que tinha no meu livro do Liceu? O curso de Artes Visuais da UAlg tinha sido criado há um ano e contávamos, entre os professores, com a presença do artista Costa Pinheiro que, generosamente, aceitou partilhar connosco aquela recém-iniciada aventura. Durante os anos em que deu aulas, parecia um miúdo a mais entre os alunos e alunas que chegavam entusiasmados. Andava por ali a orientá-los, a questioná-los e a provocar cada um deles com propostas, com ideias de ocupação de espaço público, com planos que se tornavam objetos artísticos.

Muitos dos alunos não faziam ideia que tinham à sua frente um dos maiores artistas portugueses do século XX - um homem cuja obra o ultrapassou, porque se confundiu com a própria história de um país que crescia e que mudava. A sua pintura, e as suas ideias, eram grandes demais para um país que naqueles anos 60 vivia sob a ditadura salazarista.

Mudou-se para Munique onde passou da pintura gestual para uma figuração discreta, quase geométrica, que viria a marcar a sua pintura até ao fim da vida. No final dos anos 60, abandona por uns tempos o suporte que ainda hoje o identifica, a tela, e investe num universo mais conceptual, criando cidades imaginárias e móveis, como se fossem brinquedos que os habitantes, qual crianças, reconstruíam e remontavam à sua maneira. O projeto Citymobil era uma utopia que foi muito bem aceite pela crítica, e pela Academia alemã, que reconheceu muito cedo o grande artista e pensador.

Na segunda metade dos anos 70 retoma a pintura e cria as séries mais emblemáticas que fazem parte do imaginário de Portugal, desde efígies de reis às personificações do grande fingidor Fernando Pessoa. Talvez o artista encontrasse no poeta uma tradução possível de si mesmo. Expor a sua obra é uma maneira de homenageá-lo pelo seu trabalho como artista e como pedagogo, no sentido mais literal do termo: preceptor, aquele que conduz às crianças à escola. Costa Pinheiro conduziu muitos alunos e alunas, e conduziu também, de forma discreta, pequenas-grandes revoluções artísticas que marcaram o seu tempo e que perduram na sua obra. Que é intemporal e que permanece.

Porque ele será sempre o artista e o autor das imagens que ilustravam livros do liceu e que tanta admiração provocava entre os alunos e que tanta admiração provoca entre aqueles, que como nós, temos o privilégio de (re)visitar as suas inesquecíveis figurações.

A exposição Costa Pinheiro: Figurações estará aberta ao público de 24 de novembro à 3 de fevereiro de 2017 na Galeria Trem (Faro, Portugal).


MEER





segunda-feira, 7 de agosto de 2023

O paraíso perdido / Da desumanização da arte à re humanização da vida

 

Retrato de Luis Buñuel
Salvador Dalí



O paraíso perdido

Da desumanização da arte à re humanização da vida

28 MAIO 2015, 

Introdução

Diante das descobertas da ciência que derrubam antigas crenças, da desagregação de conceitos, de uma sensação de desrealização que acompanha o surgimento das vanguardas, resiste o desejo de que a arte atue no mundo, se não para preencher o vazio deixado pela derrocada da idéia de unidade, pelo menos para retratá lo. E é isso que a chamada Geração de 27 irá fazer ao longo de um conjunto de obras. Tais obras foram consideradas surrealistas e apesar das diferenças que apresentam entre si, possuem semelhanças profundas que nos permite agrupá-las em torno de alguns pontos em comum. Há uma constante na poesia, escrita ou visual, de autores como Lorca, Aleixandre, Cernuda, Alberti e Luis Buñuel: a consciência do vazio e a desumanização do homem.

Ao longo do texto iremos apontar uma obsessão que é constante na obra de quatro poetas da geração de 27 – Cernuda, Aleixandre, Lorca e Alberti – e do realizador Luís Buñuel: o retrato do homem depois de ser expulso do Paraíso. Veremos que, se existe a nostalgia por um Paraíso ou se se visiona profeticamente este lugar, é porque algo mudou nas relações que o homem estabeleceu com o cosmos e consigo mesmo. Para os autores da primeira vaga do surrealismo espanhol, a sociedade alcançara o limite mesmo da amputação do humano. Mas isso não significa, necessariamente, que as teorias orteguianas da desumanização da arte possam ser aplicadas aqui; pelo contrário. Neste caso pode-se dizer que a humanização da arte é inversamente proporcional a degradação do homem.

De uma relação íntima com a natureza (o Paraíso) o homem passa a incompatibilizar com ela, alterando as leis fundamentais que regeram o princípio criador. Há o enfrentamento com a natureza. Como resultado desta subversão ao natural, através dos séculos vem sendo processada uma lenta degradação não somente a do ser pensante como também a da própria natureza. A natureza já não é o refúgio, como o foi perante uma visão neorromântica e neobarroca que subsistia ainda neste período. Escreveu Breton certa vez que “l’homme originellement en possession de certaines clés qui le gardaient en communion étroite avec la nature, les a perdues et, depuis lors, de plus en plus febrilement s’obstine a en essayer d’autres qui ne vont pas”[1].

Se o homem perdeu a chave que o ligava a natureza, Buñuel e seus companheiros de geração irão retratar este facto em sua obra e através dela tentar de novo reencontrar a porta que os levará ao Paraíso, ou ao momento exacto em que homem e natureza eram vasos comunicantes e em que ambos comungavam os mesmos ideais.

Da desumanização da arte à re-humanização do homem: o surrealismo espanhol

O clima vanguardista que se vivia em toda Europa também estava presente em Espanha. Entre os anos 20 e 30, apareceram os primeiros livros de uma nova geração poética. Garcia Lorca, em 1922, lança Libro de poemas, seguido por Gerardo Diego com Imagem, em 1923; Tiempo, de Emilio Prado, sai em 1925; também em 1925, Marinero en tierra, de Alberti; Las islas invitadas, de Manuel Altolaguirre em 1926 e em 1928 Ambito de Vicente Aleixandre e Cántico de Jorge Guillén. Estes autores deram corpo a chamada Geração de 27, também conhecidos como surrealistas espanhóis.

O conceito de Ortega y Gasset sobre desumanização da arte não irá resistir ao surrealismo espanhol. Nunca no século XX a poesia espanhola adquiriu um tão elevado grau de “humanização” - humanização no sentido mais pleno e cabal, já que não se limitou a perceber, recordar ou descrever, senão que pretendeu trabalhar melhor “dans le mystere de la matière et qui veut plus suggerer que décrire”[2]. Sugestões cósmicas e não morais através de uma fusão do homem com a natureza, objetivo único de um longo caminho apenas recordado na memória ancestral e coletiva ou individual, por isso mesmo, inesquecível, por mais que as sombras opostas à verdadeira ideia construam falsos paraísos.

Os poetas que irei analisar, Lorca, Cernuda, Alberti e Aleixandre, pela relação que se nos apresenta com a obra de Buñuel, longe de esquecerem o homem, ou a figura humana, reiteradamente invocam-no e reclamam-no. Permanece em suas obras o pensamento mítico, inseparável também do de toda a imaginação humana, em uma palavra: Paraíso, Paraíso Perdido e retorno até ele. Não significa porém que haja uma identidade ou uniformidade em suas obras. As experiências pessoais, bem como sua própria sensibilidade, traçaram distintos caminhos. Fica, porém, a mesma angústia (pelo homem) e a mesma fé (no homem).

Pode-se afirmar que o que mudou na estética dos finais dos anos 20 – e que se prolongará em alguns artistas da Geração de 27 até mais tarde – foi a consciência. Consciência do que é ser homem; consciência da relação do homem com a natureza e, principalmente, consciência de sua inconsciência. Esta lucidez joga nesta sinfonia estética como contraponto da já assinalada visão mítica. São ambos inseparáveis e complementares. Voltando até as suas origens o homem torna-se dono do seu passado num afã de construir, a partir de seu processo de construção, ou seja, voltar atrás em busca de um tempo perdido e remoto do qual descolou-se há muito tempo.

O Paraíso Perdido

Rafael Alberti invoca o Paraíso Perdido em um poema de Sobre los ángeles (1929), obra que causa algumas controvérsias quanto a sua classificação como surrealista, mas onde é possível encontrar elementos claramente ligados as idéias de Breton:

A través de los siglos,
por la nada del mundo,
yo, sin sueño, buscándote. (…)
żAdónde el Paraíso,
sombra, tú que has estado?
Pregunta con silencio.
Ciudades sin respuesta,
ríos sin habla, cumbres
sin ecos, mares mudos. (…)
Ya en el fin de la Tierra,
sobre el último filo,
resbalando los ojos,
muerta en mí la esperanza,
ese pórtico verde
busco en las negras simas.(…)
!Paraíso perdido!
Perdido por buscarte,
yo, sin luz para siempre.[3]

Apesar de não encontrarmos neste poema de Alberti a supressão da pontuação típica dos poemas surrealistas, detectamos, além do tema em si, o Paraíso Perdido, inumeráveis traços do imaginário surrealista. A saber, logo no primeiro verso, A través de los siglos, deparamo-nos com a indefinição e ao mesmo tempo uma ideia de continuidade temporal que é a marca do tempo surrealista. Além desta marca que atravessa todo o poema, há ainda imagens de degradação, incomunicabilidade, imobilidade, aves cegas, e as sombras que pairam sobre tudo, porque o poeta, impotente, já não alcança o paraíso.

O “Paraíso Perdido” de Alberti remete-nos, por exemplo, ao universo plástico de Max Ernst, em 2 Enfants sont menacés par un rossignol, considerada uma obra capital do artista alemão, datada do mesmo ano do primeiro manifesto do surrealismo. A utilização de uma técnica mista, em que o contraste dos elementos materiais são evidentes, é fundamental para compreender a própria obra: o quadro projeta-se para fora do espaço plástico, fazendo uma ponte entre o interior e exterior do quadro e do pintor, que esboça elementos presentes na mitologia surrealista, como as figuras sem olhos, indo em direções opostas, mas sem de fato sairem do lugar, causando a suspensão do movimento, é um não-movimento ou a impossibilidade da fuga. A ameaça é um pássaro, presença constante no bestiário surrealista. Um pássaro minúsculo que só poderia tornar-se ameaçador no espaço onírico-plástico evocado por Ernst.

Em Ernst, não só na obra citada mas em praticamente todo seu trabalho, as muralhas erguidas, as figuras sem olhos, o espaço vazio povoado por uma sombra suspensa que paira ameaçadora, sem sabermos de onde ela vem, remetem-nos a um objetivo: salvar a infância (o Paraíso Perdido) da ameaça maior da incerteza e do caos que vigiam, muito de perto, o mundo. A ideia de incomunicabilidade, presente em Ernst, eiva o poema de Alberti, e é reiterada através dos mares mudos; cantos petrificados; cumbres sin ecos.

As imagens de Lorca também estão presentes em Ernst, em Alberti, em Buñuel. Se tomarmos como exemplo “Oda al rey de Harlem”, do livro Poeta en Nueva York, encontramos imagens que são freqüentes na poesia visual de Buñuel:

Con una cuchara,
arrancaba los ojos a los cocodrilos
y golpeaba el trasero de los monos.
Con una cuchara.
Fuego de siempre dormía en los pedernales
y los escarabajos borrachos de anís
olvidaban el musgo de las aldeas. (…)

Con una cuchara… Os olhos do crocodilo eram arrancados, enquanto o olho é cortado por uma navalha em Un chien Andalou. O olho cortado e a lua atravessada pelas nuvens são imagens circulares que reiteram a ideia de uma rima plástica no filme de Buñuel. As formas circulares no filme não possuem apenas o significado imediato, mas revelam a própria construção centrípeta do filme: são círculos em movimento de fuga para dentro de si mesmos. O olho é emblemático em Buñuel – um corte que convida a todos a olhar para dentro. Em Lorca e Buñuel há uma mutilação – do olho. E há a lua, além de um convite para sair-se do cotidiano e enfrentar os demônios inconscientes.

Já para Luis Cernuda: “Solo encuentro apetecible un Éden donde mis ojos vean el mar transparente y la luz radiante de este mundo; donde los cuerpos sean jóvenes, oscuros y ligeros; donde el tiempo se deslice insensiblemente entre las hojas de las palmas y el lánguido aroma de las flores meridionales”. Mais adiante este paraíso é situado: Andaluzia, que para o poeta traduz-se em uma palavra – felicidade.

Como muito bem assinalou José Luis Cano[4], em Cernuda a visão do paraíso oscila entre uma visão edênica de sua terra enquanto paraíso humano e uma visão pagã intimamente helênica. Para Cernuda, a perda do paraíso situa-se num forçado exílio imposto por uma guerra. No momento em que alguém cortó la piedra en flor, sem que esta mesma flor pudesse dar seus frutos prometidos, corta-se toda a possibilidade de continuação da vida. Fica no entanto, como vimos, um lugar, real ou desejado. A luz segue iluminando:

(...) desbordando en la arena
desbordando en las nubes, desbordando en el tiempo,
que dormita sin voz entre las ramas.

Esta visão de um tempo suspenso tem uma importância transcendental: um tempo que transcorre sem transcorrer, antagônico à velocidade imposta pela sociedade moderna. O tempo suspenso de Cernuda remete-nos ao conceito de montagem invisível de Buñuel – a aparente ausência de movimento, não significa que este não esteja presente de uma maneira muito mais sutil, relacionando-se mais aos movimentos internos que aos acontecimentos externos.

Mais amplamente delimita-se o paraíso em Aleixandre e Alberti. A natureza não é, na obra de Aleixandre, uma caixa-de-ressonância, senão partícula de um todo (o cosmos) no qual se inclui o homem. E esta é precisamente a sua visão paradisíaca:

Entre las flores silvestres recogisteis cada mañana
el último, el pálido eco de la postrer estrella.
Bebisteis ese cristalino fulgor
que como una mano purísima
dice adiós a los hombres detrás de la fantástica presencia montañosa.[5]

Em Alberti encontramos a definição do paraíso em “Tres recuerdos del cielo”, poema de Sobre los ángeles:

No habían cumplido años ni la rosa ni el arcángel.
Todo, anterior al balido y al llanto.
Cuando la luz ignoraba todavía
si el mar nacería niño o niña.
Cuando el viento soñaba melenas que peinar
y claveles en fuego que encender y mejillas
y el agua unos labios parados donde beber.
Todo, anterior al cuerpo, al nombre y al tiempo.
Entonces, yo recuerdo que, una vez, en el cielo...[6]

Alberti definiu o paraíso como um estado mais que um lugar. Claro que o lugar – o céu – é designado; no entanto deverá ser entendido como espaço simbólico, como elemento de ascensão e não como topos. Pressentimos neste prólogo um estado pré-natal em que o sexo, o corpo, o nome, em síntese, a forma, todavia não fora criado. Espaço do sonho, tempo mítico que necessita de um histórico una vez (recordemos Cernuda: Hubo un tiempo...) suficientemente ambíguo para mediar uma eternidade e um presente. Mais uma vez aparece a luz presidindo a Criação.

Se em Cernuda, Aleixandre e Alberti encontramos claras visões do paraíso, Éden estabelecido como produto de uma memória, como aspiração e desejo da Edad del oro, em Lorca, como já vimos, este lugar constrói-se em oposição ao mundo degradado que envolve o homem. O Paraíso pode estar em Santiago de Cuba nunca em Nova Iorque. Assim existe uma visão profética mais que uma nostalgia do paraíso. Apesar de que em alguns casos, como o citado poema “Oda al rey de Harlem”, há uma memória ancestral do negro novaiorquino, que para o poeta, aspira a sua velha África. García Lorca forja o paraíso por antítese à New York, cidade que “encarna la forma extrema de la negación de lo especificamente humano, de la libertad y del amor”[7].

São muitas as dificuldades que se colocam ao homem em sua busca do Paraíso Perdido. O silêncio, a incomunicabilidade entre os seres, as barreiras e/ou petrificações que condicionam o movimento, os profundos abismos que magneticamente atraem impedindo a ascensão. Chegamos ao momento da solidão e da angústia que, se bem que manifestada com diferente intensidade nos distintos poetas estudados, encontra eco em todos eles:

ciudades sin respuesta,
ríos sin habla, cumbres
sin ecos, mares mudos.[8]

O tema do Paraíso Perdido (e da consciência da perda) é a tônica das visões poéticas de Alberti, Cernuda, Aleixandre e Lorca, uma obsessão culturalmente entranhada no homem e compartilhada vivamente por estes quatro poetas da geração de 27. Toda consciência obriga à ação e, a partir do momento em que se conhece a perda, passa-se a desejar o perdido e a tentar recuperá-lo.

O Paraiso de Luis Buñuel

Antes de realizar Un Chien Andalou, o filme, Buñuel escreveu um livro de poemas com o mesmo título. O título foi inspiração conjunta dele e de Salvador Dalí, sendo depois escolhido para seu primeiro filme. Além da inspiração para o título do seu primeiro filme, há mais coincidências na obra de Buñuel e de seus companheiros de geração. O cão andaluz não era apenas Lorca, mas era um elemento presente no imaginário comum dos três amigos (Lorca, Dalí e Buñuel), alimentado pelas imagens dos Cantos de Maldoror. Mas, se a imagem de um cão, presente emblematicamente na obra de Dalí, e presente/ausente no primeiro filme de Buñuel, reforça a idéia de ligação entre os que saíram de Espanha (Dalí e Buñuel), ligando-se mais diretamente ao surrealismo francês, e os que permaneceram, como Lorca, sem sequer assumirem-se como surrealistas, encontramos ainda outros elementos que comprovam a existência de um imaginário comum, no qual eles se moviam, e que não está necessariamente conectado com o imaginário francês.

A ideia do Paraíso Perdido não é pertença exclusiva dos surrealistas espanhóis. Podemos dizer, que de um modo geral, todas as vanguardas são utópicas – vivem em função de alcançar um determinado topos que está sempre além. O surrealismo, que sofre influências do romantismo, desloca o conceito de utopia, já que a idéia do romantismo surge, justamente, de um voltar-se para dentro de si mesmo, como se este fosse o único lugar possível de salvação. Conforme Giulio Carlo Argan, “O final da epopéia napoleônica trouxe profundas consequências para a arte. À queda do herói segue-se uma sensação de vazio, o desânimo dos jovens destituídos de seus sonhos de glória (pense-se em Stendhal).” O que faz com que o sentido da arte sofra uma modificação profunda: “Volta-se à ideia da arte como inspiração; mas a inspiração não é intuição do mundo, nem revelação ou profecia de verdades arcanas, e sim, um estado de recolhimento e reflexão”[9] (o sublinhado é meu).

Assim sendo temos que, o surrealismo constrói uma utopia do espírito – um lugar que precisa ser alcançado para a realização plena de sua arte. No surrealismo espanhol, este lugar está no passado: o Paraíso Perdido, a Edad del Oro, um circuito a ser percorrido pela memória para que ela consiga fazer-nos reencontrar o que foi perdido e que poderá ser recuperado através da arte. O Paraíso dos poetas a que nos referimos, como já foi dito antes, em alguns casos mais que em outros, está também intimamente ligado ao paraíso adâmico. No surrealismo francês a idéia de paraíso está mais próxima de um estado de alma que nos liga ao passado, ao princípio, à infância, do que mesmo ao paraíso revelado pelo Génesis[10].

Na obra de Buñuel, apesar de sua inserção no surrealismo francês, detectamos a presença do paraíso adâmico. Em La mort en ce jardin, a selva envolve a cidade e é através dela que os foragidos podem encontrar a salvação (e também a perdição). Freddy Buache diz:

Así, tanto Robinsonm (sic), confinado en una isla, como el grupo de La mort en ce jardin, caminando por una selva virgen (...), todas estas gentes se han visto impelidas hasta el límite de sí mismas, condenadas a abandonar cualquier disfraz intelectual o moral y a mostrarse sin fingimientos tal como son; es decir, como aquello que, consiguientemente, perfila la razón de ser de las máscaras y los disfraces en nuestra civilización, y en un modo particular la razón de ser de la Máscara de las máscaras: Dios.[11]

Mesmo com seu professado ateísmo, graças a Deus, a presença de elementos ligados à mitologia cristã eivam a obra de Buñuel. Elementos presentes já em L’Âge d’Or. Sabemos que aqui estes elementos aparecem, de um modo geral, em forma de paródia – como no caso de Viridiana, mas são obsessivos, expondo os traços de hispanidad que vão acompanhá-lo sempre. Em La mort en ce jardin, a presença da selva é emblemática. A volta ao paraíso é o caminho da salvação e também da perdição. Em vez de ser uma volta a Deus é um retorno ao homem. Como em Breton, l’homme propose et dispose. Conforme Kyrou, o papel da religião é o autêntico protagonista deste filme: “Se mire como se mire, este filme es un admirable grito de afirmación del hombre y una negación total, absoluta, de la mística religiosa”.[12]

Apesar de condenar vivamente a religião, Buñuel não deixa de encená-la. E mais que a religião, a sua condenação recai sobre a civilização – o homem perde-se a si mesmo quando é domesticado pelos processos civilizatórios. O retorno às origens é a saída possível para curar uma civilização doente, que além de promover processos de mascaramento, aprisiona os homens em atos e gestos que nada significam. Cai-se então no vazio. É importante observarmos que no surrealismo francês há um ataque a um determinado processo civilizatório que levou ao aburguesamento (e consequente embotamento) dos sentidos. Mas as imagens que povoam as obras francesas não possuem o sentido místico e religioso dos espanhóis. O cinema de Buñuel constrói-se então sobre um duplo eixo – fiel ao imaginário espanhol, não deixa de recorrer ao ideário dos franceses.

Quanto aos outros aspectos citados anteriormente: mutilação, as estátuas, e o bestiário que obceca os poetas do surrealismo espanhol, facilmente encontramos correspondentes na obra de Buñuel. A mutilação está presente desde seu primeiro ato: o olho cortado de Un chien andalou[13]. Como em Lorca onde, Con una cuchara, arrancaba los ojos a los cocodrilos, com uma navalha Buñuel corta um olho, tornando este gesto o emblema de toda a sua obra.

As estátuas que em Alberti significam não comunicação, paralisia, morte, estão presentes, por exemplo, em L’Âge d’Or. Buñuel, em sua "Autobiografía" diz:

“Mi infancia transcurrió en una atmósfera casi medieval (…). Creo necesario hacer notar aquí (dado que ello explica en parte la tendencia de la modesta obra que luego realizaría) que los dos sentimientos básicos de mi infancia, que perduraron hasta bien entrada la adolescencia, fueron los de un profundo erotismo, al principio sublimado en una gran fe religiosa, y una permanente conciencia de la muerte”.[14]

Erotismo e morte entrelaçados nas estátuas de L’Âge d’Or, revelando que, apesar da tentativa de imersão total no surrealismo francês, Buñuel permaneceu espanhol.

O surrealismo espanhol não gerou manifestos, chegou mesmo a refutar a ideia de um surrealismo, mas acabou por, efetivamente, ir até mais fundo no desvio proposto pelos franceses. Sánchez Vidal refere-se a Dalí e Buñuel, mas podemos estender esta afirmação para os poetas que deixaram um vasto legado imagético que atravessa todo o século.

A plástica surrealista espraia-se por todas as artes, sendo a mesma tanto na pintura quanto na literatura e no cinema. O cinema de Buñuel realiza plasticamente uma certa literatura, que não é só dos seus compatriotas, mas de sua própria poesia, escrita antes de tornar-se um realizador de cinema. E sua obra, como vimos, reflecte sobre a desumanização progressiva do homem ao afastar-se da natureza e ao ligar-se inexoravelmente a uma cultura castradora e maquínica. Como seus companheiros de geração Buñuel mostrou-nos a sua visão da queda do homem após a sua expulsão do Paraíso. Ortega y Gasset preconizara a desumanização da Arte. Buñuel e seus companheiros de geração buscaram, através da sua arte, a re-humanização da Vida.

Notas

[1] André Breton, Entretiens, Paris, Gallimard, 1952, p. 248.
[2] Gaston Bachelard, La terre et les reveries de la volonté, Galliamard, Paris, 1976, p. 8.
[3] Cito a partir da mencionada edição de Vittorio Bodini, pp. 80 e 82.
[4] José Luis Cano, La poesía de la generación del 27, Madrid, Gredos, 1970.
[5] Vicente Aleixandre, Poesías completas, Madrid, Aguilar, 1960, p. 74.
[6] Cito a partir da mencionada edição de Vittorio Bodini, p. 174.
[7] Emilia de Zuleta, Cinco poetas españoles, Madrid, 1971, p. 253.
[8] Cito a partir da mencionada edição de Vittorio Bodini, p.80.
[9] Giulio Carlo Argan, Arte moderna, p.28. [10] No prefácio ao livro de Breton e Soupault, Les champs magnétiques, Philippe Audoin, na p. 24, afirma: “Sans doute Breton ne pouvait-il que rejeter les présupposés spiritualistes de la théorie de Myers. Mais il reste – en ceci l’analyse de Starobinski est pleinement convaicante – que pour lui, l’inconscient apparaît moins comme un «réservoir de pulsions», un animal honteux enfoui dans les culs-de-basse-fosse de notre mémoire, que comme une sorte de dieu caché. Qu’on s’entende: pour Breton, nulle transcendance n’est concevable, ni même tolérable. A ses yeux, ce que certains tiennent pour le divin, n’est qu’une faculté humaine détournée et mystifiée par les soins des «dresseurs» et en ceci, il se situe pleinement dans la ligne de Rousseau. Il suffit que l’homme «propose et dispose»”.
[11] Freddy Buache apud Augustín Sánchez Vidal, Luis Buñuel - obra cinematografica, Madrid, Ediciones J. C., 1984, p.207.
[12] Ado Kyrou apud Augustín Sánchez Vidal, op. cit., p. 211.
[13] Em La arboleda perdida, livro de memórias de Rafael Alberti, este recorda: “En medio de estos días y de este campo de batalla, no literaria ya, sino veradera, apareció, como un cometa, Luis Buñuel. Venía de París, la cabeza rapada, el rostro aún más fuerte, más redondos y salidos los ojos. Llegaba para mostrar su primera película, hecha en colaboración con Salvador Dalí... El filme impresionó, desconcertando a muchos y estremeciendo a todos aquella imagen de la Luna, partida en dos por una nube, que conduce inmediatamente a la otra, tremenda, del ojo cortado por una navaja de afeitar. Cuando el público, sobrecogido, pidió luego a Buñuel unas palabras explicativas, recuerdo que éste, incorporándose un momento, dijo, más o menos, desde su palco: “Se trata solamente de un desesperado, un apasionado llamamiento al crimen.” (Apud Augustín Sánchez Vidal, Luis Buñuel, pp. 90-1).
[14] Buñuel apud Augustín Sánchez Vidal, “Buñuel and the flesh”, in C. Brian Morris (Ed.), The surrealist adventure in Spain, Ottawa, Dovehouse Editions, 1991, p.206.

MEER