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El Monje
Sergio Menossi |
Auguste Villiers de L'isle Adam
A tortura da esperança
Há muitos anos, ao cair da tarde, dirigiam-se a
um cárcere subterrâneo o venerável Pedro Arbuez d'Espila, sexto prior dos
Dominicanos de Segóvia, e terceiro Grande Inquisidor de Espanha, seguido por um
fra redemptor e precedido por dois familiares do Santo Ofício, estes conduzindo
lanternas. Rangeu o ferrolho de uma porta maciça, e penetraram num mefítico
in-pace, onde a luz baça filtrada pelas frestas iluminou um edifício manchado
de sangue, um braseiro e um jarro. Sobre um monte de palha, coberto de grilhões
e com uma argola de ferro ao pescoço, está sentado um homem pálido, de idade
incerta, coberto de andrajos.
Não é outro o prisioneiro senão
o rabino Aser Abarbanel, judeu de Aragão, o qual, acusado de usura e desdém
impiedoso pelos pobres, tem sido diariamente submetido a torturas, há mais de
um ano. Todavia, "sua cegueira é tão densa quanto o seu orgulho", e
ele recusa-se a abjurar sua fé.
Orgulhoso de uma ascendência
que data de milhares de anos, orgulhoso de seus antepassados - porque todo
judeu digno desse nome sente vaidade de o ser - descende ele talmùdicamente de
Otoniel, e, consenqüentemente, de Ypsiboa, esposa do último juiz de Israel,
circunstância esta que lhe tem sustentado a coragem diante de incessante
tortura. Com lágrimas nos olhos, a pensar nesta resoluta alma que recusa a
salvação, o venerável Pedro Arbuez d'Espila, ao aproxima-se do fremente rabino,
diz-lhe ao que segue:
- Regozija-te, meu filho: estão
terminando aqui em baixo as tuas desventuras. Se em presença de tamanha
obstinação fui obrigado a permitir, com grande pesar, o uso de tanta
severidade, tem seus limites a minha tarefa de correção fraternal. És a
figueira, que passando tanto tempo sem frutificar, vem a mirrar, e só Deus lhe
pode julgar a alma. Quem sabe se a infinita Misericórdia te iluminará no teu
último instante! Esperemos que assim seja. Tem havido exemplos. Dorme, pois, em
paz esta noite. Serás incluído amanhã no auto de fé: isto é, serás exposto ao
quemadero, às chamas simbólicas do fogo eterno: elas ardem, como sabes, meu
filho, apenas à distância; e a morte custa a vir duas horas (muitas vezes
três), por causa das faixas úmidas com que protegemos a cabeça e o coração do
condenado. Serão ao todo quarenta e três, contigo. Incluído em último lugar,
terás tempo para invocar a Deus e oferecer-lhe este batismo de fogo que é o do
Espírito Santo. Confia na Luz, e descansa.
Com estas palavras, depois de
fazer sinal aos companheiros para que desencadeassem o prisioneiro, abraçou-o o
prior, com ternura. Foi depois a vez do fra redemptor, o qual, em tom
lamurioso, suplicou perdão ao judeu pelo que lhe fizera sofrer com o propósito
de o redimir; e enfim beijaram-no em silêncio os dois familiares. Terminada a
cerimônia, foi deixado o cativo, solitário e apalermado, imerso nas trevas.
Com os lábios ressecados e o
rosto gasto pelo sofrimento, a princípio o rabino Aser Abarbanel olhou com os
olhos vagos para a porta que se fechara. Fechada? Inconscientemente em seu
espírito aquela palavra acordou uma fantasia, a fantasia de ter visto por
alguns momentos, através da greta entre a porta e a parede, a luz das
lanternas. Uma idéia mórbida de esperança, devido à fraqueza de seu cérebro,
convulsionou-lhe todo o ser. Arrastou-se para perto da estranha aparência.
Depois, com cuidado e vagar, enfiou o dedo pela fenda, e puxou a porta.
Maravilhas! Por extraordinário acidente, o familiar que a fechara correra o
ferrolho pouco antes de chegar a porta ao orifício de pedra, de modo que o
ferrugento espigão não entrara no buraco, e a porta girou de novo nos gonzos.
0 rabino arriscou um olhar para
fora. Com a ajuda de uma espécie de escuridão luminosa distinguiu primeiro um
semicírculo de paredes, recortado de degraus em espiral; e a sua, frente, acima
de cinco ou seis degraus de pedra, um portal escuro, aberto para imenso
corredor, cujas primeiras escadas eram visíveis de baixo.
Esticando-se, trepou no
patamar. Sim, era realmente um corredor, mas de comprimento sem fim. Sombria
luz o iluminava: lâmpada suspensas do teto abobadado clareavam, a intervalos, a
obscuridade reinante; sua extremidade perdia-se na sombra. Nem uma só porta
parecia haver em toda a sua extensão! Apenas a um lado, à esquerda, seteiras
fortemente gradeadas, abertas na parede, deixavam entrar uma claridade que
devia ser a do crepúsculo, porque nas lajes do pavimento se estiravam résteas
de luz avermelhada. E que silêncio terrível! Não obstante, no extremo do
corredor deveria de haver uma porta de saída! A esperança vacilante do judeu
era tenaz, por que era a última.
Sem hesitar, avançou,
conservando-se junto à parede, e procurou confundir-se com a escuridão. Avançou
lentamente, arrastou-se com a respiração contida, e reprimia um grito de dor,
quando um ferimento mais recente lhe provocava dores por todo o corpo.
De súbito, ouviu aproximar-se o
ruído de pés calçados com sandálias. Tremeu violentamente. 0 terror empolgou-o,
escureceu-se-lhe a vista. Bem, estava tudo acabado não havia dúvida.
Espremeu-se dentro de um nicho, quase morto de pavor, e esperou.
Era um frade que passava.
Passou apressado, um instrumento de tortura, - um vulto medonho - e
desapareceu. A agonia do rabino parecia ter-lhe interrompido a própria vida, e
ali ficou ele, quase uma hora, incapaz de mover-se. Por temer o requinte da
tortura, se o recapturassem, pensou em voltar para o cárcere. Mas a velha
esperança sussurrou-lhe na alma o divino talvez, que nos conforta sempre, nos
mais dolorosos transes. Acontecera um milagre. Disso já não duvidava.
Inclinou-se pela probabilidade de fuga. Exausto de sofrimentos e fome, tremulo
de dores, prosseguiu. A sepulcral galeria parecia alongar-se misteriosamente,
enquanto ele, sempre caminhando, procurava nas trevas o lugar onde devia haver
a passagem para a liberdade.
Oh! Oh! Ouviu novos passos,
desta vez porém mais vagarosos e mais pesados. Apareceram as formas brancas e
pretas de dois inquisidores, que emergiam da obscuridade ao fundo. Vinham
conversando em voz baixa, e pareciam discutir assunto importante, porque
gesticulavam veementemente.
Ao vê-los o rabino Aser
Abarbanel fechou os olhos: batia-lhe tão desordenadamente o coração que ele
quase se sentia sufocar; seus andrajos estavam úmidos do suor da agonia;
conservou-se imóvel, calado à parede, a boca aberta, sob os raios luminosos do
lampião orando ao Deus de David.
Bem em frente a ele, pararam
sob a lanterna os dois inquisidores; sem dúvida em virtude do argumento,
naquele instante no seu clímax. Um. deles, enquanto ouvia o companheiro, fitou
os olhos no rabino. E ao peso daquele olhar, - cuja ausência de expressão: não
pode notar a princípio - já sentia de novo as tenazes candentes a lacerar-lhe
as carnes, e ele outra vez convertido em chaga viva; desfalecendo, oprimido,
com as pálpebras vibrantes, arrepiou-se ao sentir no corpo o contato do burel
esvoaçante do monge. Mas, - fato estranho, embora natural, o olhar do
inquisidor era, evidentemente, o de pessoa profundamente absorta na resposta
que daria, ainda mais alheado pelo que ouvia; seu olhar era fixo, e parecia
olhar para o judeu sem o ver.
Com efeito, passados alguns
minutos, os dois vultos escuros continuaram lentamente o seu caminho, sempre
conversando em voz baixa, na direção do lugar de onde viera o prisioneiro; ele
não fora visto!. No meio da horrível confusão dos pensamentos do rabino,
brotou-lhe do espírito esta idéia: "Estarei morto, de modo que eles não me
viram?" Horrível impressão assaltou-o na sua letargia: ao olhar para a
parede junto à qual colara o rosto, imaginou ver dois olhos ferozes que o
espreitavam! Voltou a cabeça num súbito frenesi de pavor, os cabelos revoltos a
cair-lhe por todos os lados. Mas, não! Não. Esfregou a argamassa com a mão: era
o reflexo dos olhos do inquisidor, ainda impressos nos seus, e deles projetados
na parede.
Adiante! Ele precisava
apressar-se para a meta que imaginava (absurdamente, não havia dúvida) ser a
sua libertação, para a escuridão da qual não distava agora mais de trinta
passos. Atirou-se de joelhos, com as mãos espalmadas arrastou-se penosamente, e
daí a pouco entrava no trecho escuro daquele horrível corredor.
De súbito sentiu o pobre
desgraçado, nas mãos que se arrastavam pelas lajes, uma lufada de ar frio,
vinda de baixo de pequena porta, aonde iam ter as duas paredes.
Céus! se aquela porta abrisse
para o exterior! Vibrou de esperança o mais ínfimo nervo daquele miserável
fugitivo. Examinou-a de alto a baixo, embora fossem limitadíssimas as suas
possibilidades de examinar-lhe o contorno na escuridão que o cercava. Passou a
mão sobre ela: não tinha ferrolho, nem fechadura! Uma aldrava! Ergueu-se a
aldrava, cedendo à pressão de seu polegar: a porta abriu-se silenciosamente à
frente dele.
- Aleluia! - murmurou o rabino,
num transporte de alegria, quando, de pé no patamar, contemplou a cena que
tinha diante dos olhos.
Abrira-se a porta para um
jardim, sob o qual se arqueava um céu estrelado; abrira-se para a primavera,
para a liberdade, para a vida ! Revelava os campos circunvizinhos, que se
alongavam na direção das serras, cujas sinuosas linhas azuladas se recortavam
no horizonte. Para lá ficava a liberdade! Oh! Fugir! Caminharia toda a noite
através dos limoeiros, cuja fragrância ele sentia. Estaria salvo quando
alcançasse as montanhas! Inalou o ar delicioso; reavivou-o a brisa,
expandiram-se-lhe os pulmões. Sentiu no coração dilatado o Veni foràs de
Lázaro. E para mais uma vez agradecer ao Senhor, que lhe concedera aquela
graça, estendeu os braços, elevando os olhos para o céu. Era o êxtase da
alegria!
Imaginou então que a sombra de
seus braços se aproximava dele... imaginou que aqueles braços o abraçavam... e
que era ternamente apertado ao peito de alguém. Um vulto alto detivera-se agora
bem atrás dele. Baixou o olhar... Ficou imóvel, a boca entreaberta, tonto, os olhos
parados, babando-se de pavor.
Horror! Estava nos braços do
próprio Grande Inquisidor, o venerável Pedro Arbulez d'Espila, que o
contemplava com os olhos lacrimosos, como um amorável pastor que tivesse
encontrado a ovelha tresmalhada.
0 padre de batina escura
abraçava o malfadado judeu de encontro ao coração, com tão fervente transporte
amoroso, que as pontas do hábito monacal quase lhe roçagavam o peito de
dominicano. E enquanto Aser Abarbanel, de olhos esbugalhados, agoniava-se
naquele abraço do asceta, com a compreensão vaga de que todas as fases daquela
noite fatal tinham sido apenas uma tortura pré-estabelecida, a tortura da
Esperança, o Grande Inquisidor, num tom de comovente reprovação, e com o olhar
consternado, murmurava-lhe ao ouvido, o hálito seco e ardente, pelos constantes
jejuns:
- Como, meu filho! Quando te
concedemos a graça de aproximar-te da salvação... querias deixar-nos?