Shakespeare Fernando Vicente |
Traduzir os 400 anos dos 154 sonetos de Shakespeare
Traduzir um grande autor é sempre um grande desafio. Traduzir Shakespeare é um dos grandes desafios para o tradutor brasileiro, […]
Traduzir um grande autor é sempre um grande desafio. Traduzir Shakespeare é um dos grandes desafios para o tradutor brasileiro, pelo peso e pelo prestígio que carrega a obra do Bardo de Avon. Os sonetos não são exatamente a obra mais conhecida de Shakespeare, mas representam, dentre seus textos, trabalho de características únicas. Ter em português, pela primeira vez, os 154 sonetos do Bardo é uma lacuna que se fecha.
A tradução dos 154 Sonetos (Ibis Libris, 2009), realizada por Thereza Christina Rocque da Motta, celebra os 400 anos da primeira edição, feita ainda em vida do autor inglês. Traz, além dos sonetos, um poema narrativo (A Lover’s Complaint), incluído igualmente na edição de 1609.
Traduzir um texto escrito há 400 anos não é exatamente uma tarefa simples. As referências culturais estão demasiado distantes, a língua do original se afasta em muitos pontos do inglês hoje corrente (o léxico é diferente, os pronomes e as flexões verbais são arcaicos), os efeitos estéticos foram cinzelados em um ambiente peculiar que não corresponde ao nosso. Dificuldades, portanto, não faltam. O risco de errar é grande.
A edição é bilíngüe, o que permite fazer comparação imediata com o texto original e identificar a estratégia tradutória de Thereza Motta. Do ponto de vista formal, a tradutora fez uma escolha bem definida: não aderiu ao formato do soneto shakespeariano (14 versos de 10 sílabas, com rimas aos pares). Optou por texto sem métrica nem rima, mas manteve a organização em versos. Em alguns casos, como no soneto 100 (Rise, resty Muse = Levanta, leve Musa), incorporou elementos formais. Mas, em termos globais, trata-se de tradução que, como se lê no prefácio de João José de Melo Franco, dispensa “aspectos formais que, em geral, nublam o entendimento e o acesso direto ao conteúdo dos poemas”.
A tradução, embora dispense aspectos formais, é “poética”, pois busca claramente o efeito estético, busca atingir a sensibilidade do leitor. Na procura do efeito estético, não se prende a sentidos literais. Não tem a pretensão de traduzir palavra por palavra, dispensa mesmo a tradução de certas palavras, talvez perseguindo poética concisão.
Tradução é risco. É preciso fazer escolhas, tomar decisões. Decisões que, observadas ao longo do texto com coerência, se transformarão na marca mesma da tradução. A versificação, respeitando os 14 versos de cada soneto, é uma das marcas da tradução de Thereza Motta. Como toda decisão, traz seus riscos, impõe seus limites (inclusive de extensão do texto). Poderia ter escolhido outro arranjo qualquer, e a tradução teria seguido rumo diferente, e as palavras teriam sido distintas, e os sentidos teriam sido outros.
Outra marca forte é o sexo do “destinatário” do primeiro conjunto de sonetos (1 a 126). Thereza Motta transgride, rompe tradições (como convém à boa tradição da tradução). Transforma o “Young Man” de Shakespeare, motivo de tanta especulação, de tanta maldade, em doce moça amada. Eis aí um ponto interessante dessa tradução, em franco desafio à exegese tradicional. No inglês (e, talvez, na tradução para outras línguas), o problema não se insinua, pois se pode ocultar o sexo, sem dificuldade, pela esquivez da marca de gênero. No português, a escolha logo se impõe.
Falta à edição comemorativa dos 400 anos dos 154 Sonetos uma apresentação da tradução, em que a tradutora nos desse, em primeira mão, testemunho de sua estratégia e de suas escolhas. Se o tradutor explicita sua estratégia, mesmo seus erros serão “traduzidos como verdade e tidos como autênticos”.
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