Svetlana Alexievich |
Svetlana Alexievich
“Quando o povo falou, todos ficamos com medo”
A jornalista e escritora Svetlana Alexievich recebe o EL PAÍS, em sua casa em Minsk “Quando o povo falou, todos ficamos com medo”, diz a escritora bielorrussa
PILAR BONET
Minsk 10 OUT 2015 - 17:02 COT
“Que catástrofe!”, exclama Svetlana Alexievich, ao abrir a porta de seu apartamento com vista para um lago em Minsk. Desta vez a prêmio Nobel de Literatura 2015 não se refere às catástrofes retratadas em sua obra, como a Segunda Guerra Mundial ou a experiência bélica soviética no Afeganistão, passando pelo acidente de Chernobil ou o desmoronamento da URSS. Ao meio-dia desta sexta-feira estamos diante de uma “catástrofe em tom menor”, entendendo por tal o barulho em que vive a escritora desde que lhe concederam o prêmio, na quinta-feira à uma da tarde.
“Espero que exista um depois da catástrofe”, digo tentando conduzi-la a sua obra. “Sim, mas esta etapa será muito longa e ninguém sabe como vai acabar”, afirma enquanto entramos na pequena cozinha decorada com quadros e cerâmicas, que não parece ter mudado desde que a visitei em 2001, às vésperas das eleições presidenciais na Bielorrússia. Hoje, quatorze anos depois, novas eleições, a mesma cozinha e o mesmo presidente.
A Rússia preocupa a Nobel. “Veja o que está acontecendo com o povo russo. Dá para esperar qualquer coisa”, responde à pergunta sobre suas inquietações. “Há cinco ou seis anos, quando falava do nacionalismo russo, ninguém acreditava em mim”, diz. No entanto, particulariza: “Existem várias Rússias”.
“O povo estava enganado”
Alexievich começa a preparar um café. “O terceiro mandato de Putin nos tirou do romantismo dos anos 1990”, afirma. “Mudaram o país, enganaram o povo e é fácil para eles conduzi-lo como quiserem”, sentencia. “Refiro-me ao militarismo antiocidental”, acrescenta. “Quando fui à Rússia procurar material para meu último livro, vi que o povo estava enganado, que era agressivo, que isso acabaria mal, mas ninguém esperava que víssemos a era soviética voltar e se apoderar do país que tentava começar uma vida nova”.
“Antes a finalidade era preservar o império, mas não sei quais são a lógica e os motivos do que acontece agora”, diz, referindo-se à política externa russa. A inquietação de Alexievich se deve à rapidez com que se pôde dar marcha-à-ré nessa máquina”. “Nos anos 1990 pedíamos liberdade e as pessoas se calavam. Não estavam preparadas para a mudança. Chegou a violência, a degradação moral e, quando Putin de repente apertou o botão mais primitivo, o povo começou a falar e, quando falou, todos ficamos com medo”, afirma.
No transcurso da entrevista chega um diplomata alemão com fotógrafa e tradutora. “Entrem por favor, mas fechem a porta, que estou resfriada”, avisa a Nobel. “Perdoem-me, estou em roupa caseira”, desculpa-se. “Em nome da Embaixada alemã…”. “Recebeu o telegrama do ministro [Frank Walter] Steinmeier?”. Sim, recebeu. “Li que vai escrever um novo livro”, diz o diplomata. Os telefones não param de tocar. Os alemães tiram a câmera: Registram a entrega de um buquê de flores à Nobel. “Não dormi bem”, desculpa-se Alexievich, mas osflashs já estão iluminando o vestíbulo que leva a seu escritório e à cozinha.
Svetlana Alexievich, que viaja a Berlim neste fim de semana, promete ao diplomata uma conversa tranquila quando retornar a Minsk, para redigir o discurso da cerimônia de 10 de dezembro em Estocolmo e para “o pequeno segredo” de fazer uma roupa para o evento.
“Gute reise” [boa viagem]. O diplomata desaparece e retornamos à cozinha. Alexievich é consciente da responsabilidade de seu discurso em Estocolmo. Afirma que é contra as revoluções, que é preciso encontrar um caminho sem sangue e que os bielorrussos têm uma tradição de tolerância.
O problema da língua
Toca a campainha. Um amigo vem buscar os cestos de flores que vão tomando o apartamento da Nobel. O ministro de Relações Exteriores da Suécia, Carl Bildt, recém-chegado de seu país, adverte, está esperando por ela. Falamos do “mundo russo”, do “outro mundo russo”, do “bom”, daquele que seus admiradores propõem que ela lidere. Conversa sobre a língua bielorrussa, que segundo Alexievich está em um gueto. “Havia um liceu bielorrusso, um só, mas Lukashenko o suprimiu e só se formaram umas poucas dúzias de pessoas”, afirma referindo-se a uma prestigiosa escola fundada em Minsk para a educação na cultura da Bielorrússia.
Os debates de Alexievich com os setores nacionalistas bielorrussos se acalmaram. “Antes parecia que resolvendo o problema da língua seriam resolvidos todos outros, mas enquanto discutíamos sobre a língua, Lukashenko chegou ao poder. Sempre opinei que a democracia deveria preceder a construção do Estado nacional, do contrário, outros chegariam ao poder, e foi o que aconteceu”. Para Alexievich, suas obras não podem ser qualificadas de pessimistas, mas “pode-se dizer que temos uma cultura de dor e tragédia, uma experiência de vida trágica e que as vítimas e os algozes estão misturados”.
A estudiosa da “alma humana” configurada na época socialista prognostica que as sequelas dessa época durarão “pelo menos dez anos”. Suas viagens por seu ex-país (a Rússia e os países da antiga URSS) convenceram-na de que “não há nenhum fundamento para o romantismo”.
O café fica sobre a mesa da cozinha. “Que pena. É um café muito bom”, diz. A Nobel troca rapidamente de pulôver e sai ao encontro do ministro sueco.
UMA VIDA POLIFÔNICA
Academia sueca. Svetlana Alexievich, 67 anos, ganhou o Prêmio Nobel de Literatura 2015 por “seus escritos polifônicos, um monumento ao sofrimento e à coragem em nosso tempo”.
Jornalista e escritora, Alexievich retratou em língua russa a realidade e o drama de grande parte da população da antiga URSS, assim como dos sofrimentos de Chernobil, a guerra do Afeganistão e os conflitos atuais. É muito crítica ao Governo bielorrusso.
Nasceu na Ucrânia, filha de um militar soviético de origem bielorrussa. Quando seu pai se aposentou do Exército, a família se estabeleceu na Bielorrússia. Ali estudou jornalismo, na Universidade de Minsk e trabalhou em diversos meios de comunicação.
Ficou conhecida com A Guerra Não Tem Rosto de Mulher (1983), sobre os testemunhos das mulheres soviéticas que sobreviveram à Segunda Guerra Mundial. Entre suas obras estãoVozes de Chernobil e O Fim do Homo Sovieticus. Alexievich não tem livros editados no Brasil.
EL PAÍS
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