Ernest Hemingway
Pamplona era outra festa
Completam-se 90 anos da publicação do romance em que Hemingway colocou a Festa de San Firmino, na Espanha, no imaginário coletivo
Rodrigo Fresán
2 JUL 2016 - 17:17 COT
Noventa anos depois de sua publicação, o romance O Sol Também Se Levanta continua sendo um grande livro cujo tempo passou (seus hoje lugares comuns foram, é preciso ter claro, descobertos nele e por ele), mas para o qual o tempo não passou. Somente o seu primeiro capítulo ensina mais do que uma oficina inteira de escrita criativa. O mesmo não aconteceu –e não acontece com ninguém—com o seu autor.
O romance de Hemingway é um dos melhores guias de turismo de aventura jamais escritos. Dá saltos ao longo de 1925 entre a França e a Espanha, pondo Pamplona e o ritual das Festas de San Firmino no mapa do imaginário coletivo. Também é um dos textos-chave do que seria conhecido (Gertrude Stein dixit desde a epígrafe) como a Geração Perdida recuperando o tempo extraviado na Guerra Mundial. Certamente, o melhor romance publicado na vida por Hemingway e antecedente existencial-sentimental de On The Road – Pé na Estrada, de Jack Kerouac, e de tanto totem de inicialização posterior. E, last but not least, em boa parte o livro é o culpado inicial que autoriza estrangeiros a agirem de um modo descarado nas praias, discotecas, sacadas e piscinas de hotel.
Em perspectiva, O Sol Também Se Levanta é também a pedra fundamental do automitômano parque temático Papa Hemingwayland que, de tanto visitá-lo, converteu seu arquiteto em um viciado na própria lenda na qual o personagem se torna caricatura e pastiche de si mesmo.
Mas, antes de tudo isso, no Quartier Latin, o jovem contista e correspondente estrangeiro, quase desconhecido, mas em todos os lugares certos, se sentou para escrever este perfeito retrato de seu tempo e dos seus. Tudo orbitando ao redor da paixão já impossível de consumar entre a personagem da aristocrata boemia Lady Brett-Ashley (diretamente inspirada em Lady Duff Twysden) e Jake Barnes (chamado de Hem em uma primeira versão, mas com uma ferida de guerra mais grave e “incapacitante” que a de seu criador). São acompanhados pelo judeu errante chamado no romance de Robert Cohn (o também escritor e hoje quase esquecido Harold Loeb, anfitrião generoso de recém-chegados à café society parisiense, companheiro de tênis de Hemingway e rival em quase todo o resto, incluindo as atenções da volátil e promíscua Lady, pela qual chegaram aos socos), o igualmente instável e etílico prometido da Lady em questão, Mike Campbell (alter ego do arruinado Pat Guthrie), e uma manada de aristocratas decadentes e expatriados britânicos e norte-americanos e algum toureiro (por acaso o único centro moral do assunto), reescrito com base nos matadores Pedro Romero e Cayetano Ordóñez, e muitos touros.
A virtude do muito bem escrito e estruturado livro de Blume é que faz muitas coisas e faz todas bem. Funciona como estudo crítico, como panorama histórico, como biografia de uma personalidade patológica que já traçava friamente o plano de inevitável celebridade descartando a primeira esposa e aliando-se e traindo segundo conviesse, como making of editorial do que se tornou um muito risqué e instantâneo best-seller (proliferam nele lampejos de antissemitismo e homossexualidade), e como um vibrante livro de um admirador. Blume consegue o primário efeito secundário desejado em poucas páginas: a necessidade inadiável de voltar a ler O Sol Também Se Levanta.
Esta semana —invocando mais sua vida que sua obra— milhares de pessoas reais correrão pelas ruas de Pamplona tentando fazer com que nenhum touro Miura as transforme em personagens de selfies e tuiítes muito mas muito pior escritos e focados que o perfeito e não superado O Sol Também Se Levanta
Eu me pergunto quantos deles o terão lido.
Rodrigo Fresán é autor entre outras obras de La Parte Inventada.
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