sábado, 22 de dezembro de 2018

Vargas Llosa / Partidario de nada

Fernando Vicente




Mario Vargas Llosa

Partidário do nada

A prosa de Jorge Edwards, escritor e diplomata chileno, está carregada de uma fina ironia que dá um encanto especial a tudo o que conta eu seu livro de memórias, por onde desfilam personagens fascinantes como Rubem Braga ou Carlos Fuentes


22 DEZ 2018 - 18:00 COT

“Partidário do nada”, declara-se Jorge Edwards no segundo volume de suas memórias, que ele acaba de publicar (Esclavos de la Consigna, editora Lumen). A frase é muito bonita, mas não é verdadeira, porque ele tem suas ideias políticas e literárias bastante claras e as defende com integridade. Mas sempre houve nele uma objetividade e um comedimento que se refletem muito exatamente nesse estilo sereno, demorado, claro e inteligente com o qual escreve suas esplêndidas crônicas e memórias.
Nos anos narrados neste livro, os de sua juventude literária até o instante em que Salvador Allende, recém-eleito presidente do Chile, o envia a Cuba como adido de negócios para reabrir a embaixada que havia estado fechada desde o rompimento das relações entre os dois países, durante o regime de Eduardo Frei Montalva, os sectarismos políticos eram tão apaixonados na América Latina que alguém tão pouco estridente, tão bem educado e tão respeitoso das formas poderia parecer inexistente. A boa prosa de Edwards está carregada de uma fina ironia que confere um encanto especial a tudo o que ele conta no livro.
Ovelha negra de uma antiga família chilena por causa das suas amizades esquerdistas, e esquerdista ele mesmo quando adolescente e em sua primeira etapa de maturidade, os primeiros capítulos de Esclavos de la Consigna(“escravos da palavra de ordem”) se referem sobretudo aos seus primeiros passos no domínio da literatura, como esta vocação foi se impondo sobre todo o resto —seus estudos de Direito, o ano de pós-graduação em Princeton que o marcou com força, seu ingresso na diplomacia, o entusiasmo com que leu Unamuno e a outros escritores da Geração de 98, seus primeiros livros de contos—, e à boêmia pertinaz, feita de hábitos noturnos, álcool e travessuras com as chilenas, talvez as primeiras a alcançarem uma margem de liberdade e independência que o resto das mulheres latino-americanas ainda desconhecia.
Jorge Edwards





Um personagem central na vida de Jorge Edwards foi Pablo Neruda; ficaram amigos desde que ele era muito jovem, e essa amizade permitiu a Jorge conhecer um Neruda muito mais íntimo, a quem descreve nestas páginas com admiração e carinho pela grandeza de sua poesia, mas que também mostra como alguém dominado por dúvidas e angústias políticas secretas que às vezes o devoravam (“Enganei-me” confessou nos anos finais). Também relata os esforços que fez para evitar que Jorge escrevesse Persona Non Grata, seu testemunho crítico sobre a Revolução Cubana, que seria lido em todo mundo e que lhe traria —como anteviu o poeta— uma tempestade de críticas de uma ferocidade sem precedentes por parte de uma esquerda deslumbrada com a suposta “revolução com festa” de Cuba. Aqui conta como o próprio Julio Cortázar, recém-convertido à Revolução naqueles anos, confessou que, apesar de serem amigos, preferia não voltar a vê-lo por ter escrito aquela memória.
Conheci Jorge nesses anos, recém-chegado a Paris como terceiro-secretário da embaixada do Chile. Ficamos muito amigos, nos fazíamos visitas literárias nos fins de semana e trocávamos livros. Era então mais para o tímido, mas, depois de dois whiskies, saltava sobre uma mesa e, muito sério, interpretava uma endiabrada “dança hindu” que consistia em mover ao mesmo tempo a cabeça, as mãos e os pés. Tenho certeza de que cumpria suas funções diplomáticas de maneira cabal, mas a literatura foi sempre sua primeira prioridade; já desde então costumava se levantar ao alvorecer para escrever —sempre à mão, em folhas brancas e com canetas de tinta azul—, e assim li eu seu primeiro romance, El Peso de la Noche, que está sempre vivo em minha memória, tanto como nossas discussões sobre se Dostoiévski ou Tolstói era o melhor escritor (eu defendia Tolstói).
Pelo livro desfilam uma série de personagens fascinantes, como o brasileiro Rubem Braga, Carlos Fuentes, “com sua cara de prócer da Revolução Mexicana”, e Enrique Bello, um sibarita que me confessou uma noite que estava feliz por ter conseguido materializar um sonho epônimo; perguntei-lhe qual era e me respondeu, muito sério: “Dar à carne bovina um tratamento que a faça parecer carne de caça”. Talvez o mais terno deles seja o apelidado de Queque Sanhueza, intelectual e erudito bibliógrafo que parecia extraviado neste mundo (salvo dentro de uma biblioteca), pequeno ele mesmo e apaixonado por mulheres muito altas e musculosas, que se acidentou ao montar numa bicicleta na ilha grega de Leros e morreu em Santiago, sem ter entendido uma palavra daquela terra, mesmo depois de ter lido milhares de livros. Seu diálogo com o pope [sacerdote da igreja ortodoxa grega] que descobre ao seu lado, depois do acidente naquela ilhota grega, é memorável.
E a fugaz aparição de Pepe Bianco, o eterno secretário de redação da revista SUR, em Buenos Aires, que “aspirava a ser pobre, já que agora era menos que pobre, miserável”. Que eu me recorde, Pepe Bianco só publicou um par de livros —em todo caso, são os únicos que li dele—, mas era um desses intelectuais argentinos que tinham lido a melhor literatura do mundo em cinco idiomas e opinava sobre ela com um gosto literário delicioso e infalível. García Márquez não aparece em pessoa, mas sim Cem Anos de Solidão, cuja “fantasia excessiva”, diz Edwards, “o aborreceu”. (Sobre isto poderíamos ter também uma dessas discussões apaixonadas da nossa juventude.) E é perversa a aparição do poeta e escritor sueco – ainda por cima hispanista – Artur Lundqvist, “que parecia convencido de um curioso axioma político e literário: o escritor partidário de Fidel Castro e do castrismo era necessariamente bom escritor, e vice-versa”. Também é inesquecível a imagem, durante o Congresso Cultural de Havana, do pintor Roberto Matta e outros surrealistas dando pontapés no traseiro do veterano David Alfaro Siqueiros e gritando “por Trotski!” a cada chute.
Uma dimensão muito especial neste livro é o testemunho político. É surpreendente saber que, se alguém anteviu a catástrofe que poderia sobrevir com a eleição de Salvador Allende e as reformas que a Unidade Popular prometia, esse alguém foi Neruda. Perguntaram-lhe se votaria em Allende e, pesaroso, ele disse: “Não tenho outro remédio”. Mas Matilde Neruda votou em Radomiro Tomic. E aqui aparece o poeta, angustiado com os pesadelos com o que poderia ocorrer no Chile —ou seja, o flagelo radical de Pinochet— ante a perspectiva de que o radicalismo da Unidade Popular desestabilizasse a solidez democrática de seu país. Estas instituições estavam muito arraigadas, de fato. Só no Chile democrático de então poderia um diplomata, como fazia Edwards, ir comigo à embaixada de Cuba em Paris a cada 26 de Julho para celebrar a Revolução de um país com o qual seu governo estava em um questionamento inflamado (tanto que haviam rompido relações). E, apesar do esquerdismo de Edwards de então, o ministro das Relações Exteriores de Frei Montalva, o democrata-cristão Gabriel Valdés, ligava para ele consultando-o sobre escritores e a política cultural do Governo. Bons costumes que, felizmente, logo depois do pesadelo da ditadura militar voltaram ao Chile e que este livro recria com delicadeza e humor.

terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Clarice Lispector, a escritora inqualificável no estilo e na forma


Clarice Lispector


Clarice Lispector, a escritora inqualificável no estilo e na forma

Dona de uma personalidade enigmática e de uma linguagem poética e inovadora, autora foi reconhecida como uma das mais importantes literatas do século XX e forjou para si uma lenda que segue atual


ALBERTO LOPEZ
10 DEZ 2018

“Não escrevo para agradar ninguém”, repetiu Clarice Lispector inúmeras vezes, sempre que alguém se queixava de não entender o que ela queria dizer em suas obras. Jamais se importou com o que pensariam, especialmente depois que um jornal de Pernambuco rejeitou os contos que, ainda menina, enviava à seção de ficção infantil da publicação. Porque, enquanto as outras crianças enviavam textos narrativos, os seus continham apenas “sensações”.
Sempre teve certeza de que se dedicaria a escrever, e de fato atuou não só como escritora, mas também como jornalista, escrevendo artigos de opinião, de cozinha e de moda. Lispector desejava ser considerada uma mulher normal, e aparentemente era, como mãe de dois filhos, esposa e cidadã de classe média. Entretanto, destacava-se em tudo, porque não era normal em nada do que fazia, e sim uma artista genial, impossível de enquadrar, reconhecida em seus círculos íntimos e nos ambientes literários do Brasil, mas quase nada no exterior, apesar de ter viajado muito durante seu pouco mais de meio século de vida.
Clarice Lispector é considerada, junto com Guimarães Rosa, a grande escritora brasileira da segunda metade do século XX, graças ao seu estilo, entre a poesia e a prosa. Uma marca que enchia os detalhes cotidianos de espiritualidade e que se caracterizava por utilizar a primeira pessoa na narrativa. Não se parecia com ninguém, e sua visão não recorda nenhum movimento, embora pertença à terceira fase do modernismo brasileiro, da chamada Geração de 45.
Chaya Pinkhasovna Lispector foi o nome que recebeu ao nascer, em 10 de dezembro de 1920, na localidade ucraniana de Chetchelnik. De origem judaica, foi a terceira filha de Pinkhas e Mania. Seu nascimento motivou uma pausa no caminho de fuga da família numa época de fome, caos e perseguição racial. Seu avô foi assassinado, sua mãe foi estuprada, e seu pai foi exilado, sem dinheiro, para o outro lado do mundo.
No ano seguinte ao nascimento de Clarice, toda a família fugiu dos pogroms antissemitas, primeiro para a Moldávia e Romênia, e mais tarde, em 1922, para Maceió, onde alguns parentes já estavam. Ao chegar ao Brasil, todos adotaram nomes portugueses: Pinkhas se tornou Pedro, Mania virou Marieta, e Chaya recebeu seu novo nome de Clarice.
A mãe dela, que tinha sido estuprada durante a Primeira Guerra Mundial e contraíra sífilis, morreu 10 anos depois. Havia no Leste Europeu a crença popular de que uma gravidez poderia curar uma mulher afetada por essa doença venérea, mas não foi o caso. Clarice nasceu desse afã de salvá-la, e desde muito pequena soube da sua origem, daí o sentimento de culpa ter marcado também sua vida e sua criatividade como escritora.
No Brasil, seu pai, um homem inteligente e liberal, sobrevivia vendendo roupas e mal conseguia sustentar a família. Mas ele estava decidido a mostrar ao mundo quem eram suas filhas. Quando Clarice tinha cinco anos, a família se mudou para o Recife, e aos 10 foi para o Rio. Graças a esse empenho do chefe da família, Clarice continuou sua educação até muito além do que era habitual mesmo para as meninas economicamente mais favorecidas, entrando num dos redutos da elite, a Faculdade de Direito da Universidade do Brasil. Ali, na escola de leis, não havia judeus, e só três mulheres.
Mas seus estudos de Direito deixaram poucas marcas na futura escritora, porque seu sonho ela perseguia nas redações dos jornais da então capital brasileira, onde sua beleza e seu brilhantismo já deslumbravam, com seus traços asiáticos, as maçãs do rosto salientes e os olhos um pouco rasgados. Era, além disso, uma jovem culta, que conhecia e lia com assiduidade os autores nacionais e estrangeiros de maior relevância, como Machado de AssisRachel de QueirozEça de QueirozJorge Amado e Fiodor Dostoievski.
Em 25 de maio de 1940 publicou sua primeira história conhecida, O Triunfo. Três meses depois, seu pai morreu, com apenas 55 anos, de modo que antes dos 20 anos Clarice já era órfã. Aos 21 anos publicou Perto do Coração Selvagem, obra que escrevera aos 19 e que lhe valeu o prêmio Graça Aranha de melhor romance.
Em 1943, Clarice Lispector se casou com um homem católico, algo raro naquele momento no Brasil. Tratava-se do diplomata Maury Gurgel Valente, que ela conheceu enquanto estudava Direito. No final daquele ano, o casal começou a viajar, por isso em pouco tempo ela não só tinha deixado a sua família, a sua comunidade étnica e seu país, mas também sua profissão, o jornalismo, no qual tinha uma reputação em alta.
Durante 15 anos, até que se separaram, em 1959, Clarice levou uma vida tediosa de esposa perfeita, mas sempre saudosa do Brasil. Sua primeira viagem foi a Nápoles em 1944, durante a Segunda Guerra Mundial, como voluntária em hospitais para ajudar pracinhas brasileiros feridos. Em 1946 publicou seu segundo romance, O Lustre, e nos cinco anos seguintes a escritora viajou inumeráveis vezes da Inglaterra a Paris, até que, finalmente, a família se instalou em Berna, onde nasceu seu filho, Pedro.
Clarice nunca encontrou seu lugar fora do Brasil e era propensa à depressão, mas na verdade foi graças a seu marido que conseguiu escrever, já que sua origem imigrante a tornou menos permeável às ideias da sociedade brasileira, e seu casamento foi um passo à frente em termos econômicos, porque nunca foi rica, mas tampouco teve que trabalhar em nada além de escrever. Era esposa e mãe, mas tinha ajuda em tempo integral para se dedicar a escrever, e podia fazê-lo num cômodo só para si.
Os temas tradicionais e cotidianos que tinham a ver com as mulheres, a maternidade, o cuidado com casa e os filhos – tudo isso já havia sido escrito antes, mas ninguém escrevera como ela. Talvez essa necessidade de ir além tenha significado para Clarice um novo idioma, com uma gramática estranha, que talvez possa ser atribuída à influência do misticismo judaico que seu pai lhe ensinou. Mas outra parte de sua estranheza no estilo e na forma podem decorrer da sua necessidade de inventar e transmitir sensações além dos fatos. Quem lê suas histórias do começo ao fim se vê afetado por uma busca linguística incessante e uma instabilidade gramatical que impedem uma leitura muito veloz e que às até dificulta uma compreensão imediata.
Em 1949 Clarice Lispector publica A Cidade Sitiada. Começa a escrever contos, e em 1952 publica Alguns Contos. Viaja com seu marido aos Estados Unidos, onde nasce seu segundo filho, Paulo, em 1953. Um ano depois, em 1954, saiu a primeira tradução de um livro dela, Perto do Coração Selvagem, em francês, com capa de Henri Matisse.
Em 1959, separou-se do marido diplomata e retornou ao Rio de Janeiro, onde retomou a atividade jornalística para conseguir o dinheiro necessário para viver de maneira independente. Um ano depois publicou Laços de Família, um livro de contos aplaudido pela crítica, e um ano mais tarde o romance A Maçã no Escuro, depois levado ao teatro. Em 1963 publicou aquela que é considerada sua maior obra, A Paixão Segundo G.H., escrita em poucos meses.
A Paixão Segundo G.H. relata a vivência de uma mulher que um dia encontra uma barata no armário do quarto da empregada. A protagonista não pode evitar ficar paralisada pela contemplação desse inseto, que está preso na porta e que, apesar da repulsa que lhe causa, ela continua olhando obsessivamente, até fazer dessa experiência o estopim de uma renovação vital.
No final da década de 60, Clarice publicou no Jornal do Brasil alguns artigos mais pessoais nos quais se retratava de maneira íntima e que fizeram dela um nome popular, a tal ponto que seu cão Ulisses, que aparecia nesses relatos, se tornou uma lenda na cidade, como um dos poucos elos com a realidade brasileira, já que ela praticamente não falava de temas locais ou nacionais.
Mas a escritora continuou sendo um enigma inexpugnável, que respondia com monossílabos à imprensa ou não se apresentava nas entrevistas, o que também aumentou sua lenda de artista e quase de mito. Como se sua ansiedade e tendência à depressão fossem pouco, um fato intensificou essa parte de sua personalidade. Em 1966, a escritora dormiu com um cigarro aceso, e seu quarto ficou destruído. Ela sofreu queimaduras em grande parte de seu corpo e passou vários meses internada. Sua mão direita, muito afetada, quase teve que ser amputada e jamais recuperou a mobilidade anterior. O acidente afetou seu estado de ânimo, e as cicatrizes e marcas no corpo lhe causaram contínuas depressões.
Entretanto, Clarice já tinha um reconhecimento global por sua trajetória, razão pela qual entre o final dos anos 60 e começo dos 70 ela se dedicou a publicar livros infantis e algumas traduções de obras estrangeiras, que reuniu com palestras e conferências em várias universidades do Brasil. Seu último livro, A Hora da Estrela, é um volume que escreveu no verso de cheques e em maços de cigarro. Tem menos de 100 páginas e fala de uma moça que, assim como ela anos antes, migra do Nordeste para o Rio.
Clarice Lispector morreu na capital fluminense em 9 de dezembro de 1977, na véspera de completar 57 anos, vítima de um câncer. Sua despedida no hospital, a uma enfermeira, foi: “Morre meu personagem!”, talvez a melhor definição de sua literatura. Foi enterrada dois dias depois no cemitério do Caju, pelo rito judaico ortodoxo, envolta em linho branco. Sua lápide, simples, leva seu nome hebraico: Chaya Bat Pinkhas, que significa “Chaya, filha de Pinkhas”.
Seu estranho nome estrangeiro, que sempre tinha sido um tema de especulação constante durante sua vida, virou lenda após sua morte. Os críticos haviam sugerido que até poderia ser um pseudônimo, enquanto outros se perguntaram em mais de uma ocasião se era um homem. No fundo, tudo reflete a inquietação de que ela era algo diferente do que parecia e do que era conhecido até então.
Nas 85 histórias que escreveu, Clarice Lispector sempre evocou, em primeiro lugar, a própria escritora, ela mesma. Desde sua primeira história, publicada aos 19 anos, até a última, encontrada depois de sua morte, há uma vida de experimentação através de diferentes estilos e experiências que nem todos entendem: até mesmo alguns brasileiros cultos se viram desconcertados pelo ardor que inspira, sem serem capazes de compreender o que escreve.
Mas a arte de Clarice Lispector convida sempre a querer conhecer a mulher, e através de suas histórias se pode rastrear sua vida artística, da promessa da adolescência e da maturidade assegurada, até chegar à proximidade inexorável da morte.



sábado, 8 de dezembro de 2018

Vargas Llosa / O doutor Chirinos


O doutor Chirinos

Os discursos do psiquiatra em Sangue no divã parecem-se aos do comandante Chávez, virando uma chuva de injurias contra a corrupta democracia e prometendo o paraíso a seus crentes


Mario Vargas Llosa
8 DEZ 2018 - 18:00 COT

Por seu prontuário, seu narcisismo, seus delírios e seus crimes, parece um homem inventado, mas o doutor Edmundo Chirinos existiu, e os espanhóis que vão ao teatro acabam de comprová-lo vendo em cena o espetáculo Sangre en el Diván, dirigido e protagonizado pelo diretor e ator venezuelano Héctor Manrique.
Nesse monólogo de uma hora e meia que mantém o público sobressaltado e meio afogado pelas gargalhadas, o próprio doutor Chirinos nos conta sua odisseia: foi psiquiatra, reitor da Universidade Central da Venezuela, membro de sua Assembleia Constituinte, candidato à presidência lançado pelo Partido Comunista, e teve entre seus pacientes nada menos que três presidentes da República: Jaime Lusinchi, Rafael Caldera e o comandante Hugo Chávez. Homem influente e poderoso, por seu consultório passaram milhares de pacientes, dos quais abusou com frequência e inclusive assassinou, como a estudante Roxana Vargas, um crime pelo qual passou seus últimos anos de vida na prisão.
O mais extraordinário do espetáculo talvez não seja a esplêndida recriação que Héctor Manrique faz de tal personagem, vestindo-se e desvestindo-se, cantando, dançando e delirando sem trégua, exibindo sua egolatria e excesso até extremos disparatados, mas sim que tudo aquilo que o doutor Chirinos diz no palco ele disse de verdade a uma jornalista, Ibéyise Pacheco, que gravou e depois publicou o material em um livro que leva o mesmo título da peça teatral, adaptada e dirigida pelo próprio Héctor Manrique.
Conheci Héctor há muitos anos, em Caracas, porque dirigiu uma peça minha, Al Pie del Támesis – uma bela montagem, diga-se de passagem –, que depois levou à Colômbia. O comandante Chávez estava só começando a obra de demolição de uma Venezuela cuja vida cultural ainda fosforescia por sua diversidade e riqueza. Não só o teatro como também a dança, a pintura, a música e a literatura. Mas o país vivia um perigoso deslumbramento com o militar golpista, cujo levante contra o Governo legítimo de Carlos Andrés Pérez havia sido reprimido por um Exército leal às leis e à Constituição. Como é sabido, o comandante sedicioso, em vez de ser julgado, foi indultado pelo presidente Rafael Caldera e se tornou em pouco tempo um líder popular que arrasou nas eleições.
Custava-me entender isso. Como um país que tinha sofrido ditaduras tão ferozes no passado e que tinha lutado com tanta fidalguia contra o regime espúrio de um Marcos Pérez Jiménez podia cair rendido à demagogia de um novo caudilhozinho truculento, inculto e mal falado? Com uma exceção, entretanto: os intelectuais. Eles foram muito mais lúcidos que seus compatriotas. Com poucas exceções – praticamente caberiam numa só mão –, mantiveram-se na oposição ou pelo menos guardando uma distância prudente, sem participar do deslumbramento coletivo, da absurda crença, tantas vezes desmentida pela história, de que um homem fortepoderia resolver todos os problemas sem as tramas burocráticas da inepta democracia.
Venezuela daqueles anos, com suas grandes exposições, seus festivais internacionais de música e de teatro, com suas editoras flamejantes, seus museus e seus encontros e congressos que atraíam a Caracas os pensadores, escritores e artistas mais celebrados no mundo, agora está morta e enterrada. E levará muitos anos e enormes esforços para ser ressuscitada.
Os discursos que o delitivo doutor Edmundo Chirinos regurgita perante o público em Sangre en el Diván se parecem muito com os do comandante Chávez, lançando uma chuva de impropérios contra a morosa e corrupta democracia e prometendo o paraíso imediato a seus crentes. Os venezuelanos que acreditaram nele se deram tão mal quanto os iludidos pacientes do psiquiatra que terminavam deixando seu sangue no divã. Muitos deles agora comem só o que encontram no lixo.
A peça que Héctor Manrique interpreta não foi proibida na Venezuela – pelo contrário, acumula quatro anos em cartaz e muitas dezenas de milhares de espectadores –, talvez porque os censores sejam menos perceptivos do que seu triste ofício exigiria, e, também porque, à primeira vista, Sangre en el Divánpoderia parecer um caso à parte, o de um indivíduo fora do comum, a tão famosa exceção à regra, a “mosca branca”.
Entretanto, não é assim. Muito do que depois viria a ocorrer na Venezuela é mostrado, de forma resumida sobre o palco, na sinistra odisseia do doutor Edmundo Chirinos, no seu poder acumulado a partir da fraude e sua loquacidade doentia. Renunciar à razão pode dar frutos extraordinários nos campos da poesia, a ficção e a arte, como sustentaram o surrealismo e outros movimentos de vanguarda. Mas entregar-se à injustiça, ao puramente emotivo e passional, é muito perigoso na vida social e política, um caminho seguro para a ruína econômica, a ditadura, enfim, para todos esses desastres que levaram um dos países mais ricos do mundo a se tornar um dos mais pobres e a ver milhões de seus habitantes se lançarem ao exílio, mesmo que seja andando, para não morrer de fome.
De nada disso falamos com Héctor Manrique quando desci aos camarins do teatro para lhe dar um abraço e parabenizá-lo. Perguntei-lhe se é verdade que não há uma palavra em seu monólogo que o doutor Chirinos não tenha dito de verdade, e me confirmou que é assim, e me apresentou ainda a Ibéyise Pacheco, que foi quem o entrevistou durante muitas horas na cela da prisão onde estava confinado pelo assassinato de uma paciente. Eu gostaria de ter recordado com Héctor aqueles lindos anos em que a literatura e o teatro nos pareciam as coisas mais importantes do mundo, e também toda a Venezuela parecia acreditar nisso, a julgar pelas revistas culturais que saíam a cada semana e pela quantidade de novos escritores, artistas e companhias de teatro e de concertos que surgiam e disputavam as noites de Caracas. Aquilo ocorria não só na capital, mas também no interior do país, onde apareciam novas universidades e novos artistas. A Venezuela inteira parecia tomada então por uma avidez frenética de cultura e criatividade. E de lembrar grandes amigos que já não estão mais aqui, como Salvador Garmendia e Adriano González León, o autor de País Portátil, um magnífico romance, que, dizem-me, caiu subitamente morto no bar onde sempre tomava a saideira, e daquele grupo revoltoso de jovens, El Techo de la Ballena, que semeou Caracas de escândalos anarquistas.
A única coisa boa das ditaduras é que, embora provoquem desastres, sempre morrem. Com o passar do tempo, sua lembrança vai se empobrecendo e, às vezes, os povos que as padecem chegam a se esquecer que as padeceram. Mas duvido que ocorra tão cedo com a que transformou a Venezuela num país que não é nem sombra daquele que conheci em meados dos anos sessenta. Tomara que o horror que viveu todos estes anos, transformada praticamente em um dos sanguinários delírios do doutor Edmundo Chirinos, a poupe de no futuro voltar a renunciar à razão e à sensatez, que na política são a única garantia de não perder a liberdade.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

‘O Método Kominsky’ / Falar do envelhecimento sem perder o humor




‘O Método Kominsky’: falar do envelhecimento sem perder o humor

Michael Douglas e Alan Arkin protagonizam a nova comédia de Chuck Lorre

ROCÍO AYUSO
Los Angeles 6 DEZ 2018 - 13:54 COT

Chuck Lorre aconselha os escritores iniciantes a lembrarem da velha frase: "cuidado com o que você quer, porque pode se tornar realidade". É um aviso porque, se Lorre tivesse visto o seu desejo cumprido, não teriam existido The Big Bang Theory, Two and a Half Men, Momnem O Método Kominsky. “Digo isto porque cheguei a esta cidade com uma Stratocaster, e não com uma máquina de escrever", confessa o produtor e roteirista a EL PAÍS, referindo-se à guitarra que este músico frustrado trouxe debaixo do braço. O atual Lorre não poderia estar mais feliz. "Não consegui o que queria. Consegui algo melhor." Algo que se resume a uma carreira em que acumula oito indicações para o Emmy e em que foi o responsável por algumas das comédias de maior audiência nos últimos anos.
Ele também se recorda dos motivos que o levaram a escrever: precisava de um emprego que pagasse o seguro saúde de sua família. "E o Sindicato dos Escritores oferece a melhor cobertura médica", diz. As voltas que a vida dá, e sem deixar de rir dela, é disso que Lorre, 66 anos, quer falar em O Método Kominsky, cuja primeira temporada está disponível na Netflix.

Lorre fala com este jornal nos estúdios da Warner, onde filmou os oito episódios da nova série, a segunda que criou para a Netflix depois de Disjointed. Garante que esta é a mais pessoal entre as que escreveu. "Sinceramente, eu queria falar sobre o que estou vivendo, o que é envelhecer, o que acontece com seu corpo, o que acontece com sua mente, como você vai se degenerando", diz. Na verdade, não é necessariamente sobre sua vida, mas sobre seu entorno. Embora os protagonistas sejam um ator transformado em professor de arte dramática (Michael Douglas) e seu agente (Alan Arkin), O Método Kominsky não é uma ficção sobre como envelhecer em Hollywood. "Falar sobre os problemas de próstata parece muito mais interessante do que falar sobre Hollywood", ri o criador e produtor.
Doenças, mortes, filhos, sonhos, ansiedades, problemas econômicos... Nenhum dos temas parece de cara dar motivo para uma comédia. Mas Lorre sabe levar isso com humor e espera que os espectadores também o façam. "Reconhecer como nossos corpos estão indo para a merda me faz rir", acrescenta. Mas ele não busca a gargalhada. Agradece pela filmagem ter sido feita sem plateia, ao contrário de seriados tradicionais, e, além disso, gostou de poder rodar ao ar livre para complementar os sets construídos nos estúdios da Warner. Não se trata de humor grosseiro ou de uma série sobre o que está por vir para os protagonistas. "É uma carta de amor à amizade", resume.

Para esta aventura não seria possível encontrar melhores cúmplices que Douglas e Arkin. Ambos aceitaram assim que leram o roteiro, primeiro Michael, depois Alan. E com a sua presença o sim da Netflix veio depressa. O mesmo aconteceu com as inúmeras aparições de outros amigos que atuam na série: Danny DeVito, Ann Margret, Jay Leno, Patti Labelle ...