segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

A literatura mostrou o mal-estar francês, mas ninguém deu bola

Protesto dos coletes amarelos no Arco do Triunfo, em Paris.



A literatura mostrou o mal-estar francês, mas ninguém deu bola

Obras de Ernaux, Aubenas, Eribon, Louis, Houellebecq e o último prêmio Goncourt, Nicolas Mathieu, captaram os sintomas que levaram à revolta dos ‘coletes amarelos’


Os sinais estavam aí. Bastava ler algumas das obras literárias mais festejadas nos últimos anos na França. Nelas aparecem os sintomas do mal-estar que explodiu com a crise dos coletes amarelos.
O fechamento das fábricas, os salários baixos, as humilhações cotidianas. O isolamento das pequenas cidades afastadas da capital e a dependência em relação ao automóvel para trabalhar: para sobreviver. A educação e a cultura como sinais de identidade das classes sociais. As paisagens desoladas dos shoppings e as impessoais rotatórias nas periferias das cidades. Também a sedução do voto radical. Tudo estava aí, à vista de qualquer um, mas pouquíssimos prestaram atenção.
Há uma literatura dos coletes amarelos, o movimento que surgiu em novembro do ano passado como um protesto pelo preço do combustível e acabou causando a maior crise da presidência de Emmanuel Macron. O exemplo mais recente é o de Michel Houellebecq. Seu novo romance, Serotonina, publicado em janeiro, descreve a desmoralização de um mundo rural que se sente desprestigiado por Paris e Bruxelas. Os camponeses enfurecidos fecham uma estrada e enfrentam a polícia. Houellebecq escreveu o livro antes da crise dos coletes amarelos, mas parece que está descrevendo o desvio violento do movimento.
Por sua estética decadentista e por sua visão reacionária, Houellebecq é uma exceção. A posição poética e política do autor de Serotonina contrasta com a perspectiva de esquerda —e de extrema esquerda em alguns casos— de outros autores que retrataram a chamada França periférica.

A inspiração

Muitos desses autores —do filósofo Didier Eribon, responsável pelo ensaio memorialístico Retour à Reims, a Nicolas Mathieu, recém-premiado com o Goncourt em 2018 pelo brilhante Leurs enfants après eux— citam como inspiração e modelo Annie Ernaux, que em seus breves romances autobiográficos retrata essa outra França: a dos de baixo, a de sua família na Normandia rural e a da anódina periferia parisiense.
Se Macron e seus assessores tivessem lido esses livros com atenção, talvez se dessem conta de que algo aparentemente tão técnico como o preço do diesel e da gasolina é uma questão quase existencial para essa França. Talvez detectassem que poderia ser o detonador de uma revolta.
Quando Anthony, o protagonista de Leurs enfants après eux, afinal consegue um emprego, o narrador observa: “O problema é que o serviço não era na porta ao lado de sua casa, todo o pagamento ia embora em combustível, ou quase”. “Você recebia propostas de empregos exaustivos de meia jornada, físicos, na grande cidade a 40 quilômetros de casa. Pagar a gasolina para ir e voltar todos os dias teria custado 300 euros (1.280 reais) por mês”, lamenta Édouard Louis, discípulo de Eribon, em Qui a tué mon père (2018), um epílogo em forma de panfleto de Acabar com Eddy Bellegueule, a história de sua infância e adolescência em uma família desestruturada no norte da França.
A protagonista de Le quai de Ouistreham, o livro em que a jornalista Florence Aubenas conta suas experiências como faxineira na costa normanda durante a última crise econômica, topa várias vezes com um conselho parecido. “Você precisa de um carro”, diz sua chefe em um emprego como faxineira de uma balsa que cruza o Canal da Mancha. “Também lhe aconselho a formar um grupo para dividir o preço da gasolina, caso contrário perderá o salário em combustível”.

Relato dickensiano

O livro de Aubenas é um relato dickensiano do mundo das empresas de trabalho temporário, no mais baixo do escalão salarial. As peripécias da protagonista se desenvolvem nos campings, zonas industriais e povoados portuários onde trabalha. Além dos supermercados onde passa seus momentos de ócio: não-lugares que são um cenário habitual da literatura do mal-estar francês. Também para Annie Ernaux os supermercados são um dos espaços desse país feio e anódino, afastado do pitoresco dos cartões-postais turísticos. Em Journal du Dehors (1993), em que a autora anota com frieza cirúrgica acontecimentos externos que a cercam, aparecem várias cenas em que as caixas são humilhadas por clientes altivas.
Ainda que a França seja um dos países mais igualitários do mundo, as classes sociais são marcadas. E uma barreira entre elas é a educação, um dos eixos argumentais de Retour à Reims, de Eribon. “Os destinos sociais são marcados! Tudo se joga de antemão!”, escreve. Tomando por base sua própria experiência, afirma que a escola não serve como elevador meritocrático. Ele chegou à universidade, mas nunca atravessou as portas dos santuários da elite educacional como a Escola Normal Superior. “De fato”, escreve, “as classes desfavorecidas acreditam chegar ao local do qual antes estavam excluídas, mas, quando chegam, essas posições perderam o lugar e o valor que tinham em um estado anterior do sistema”.
Em Leurs enfants après eux, de Nicolas Mathieu, os adolescentes —um operário, uma burguesa e um pequeno traficante de drogas árabe— vivem presos no vale siderúrgico em que residem. Somente a burguesa escapa daquela espécie de Macondo pós-industrial onde se projetam os dramas e as ilusões da França do final do século XX. “Essa vida que se tecia quase apesar deles, dia após dia, nesse buraco perdido que todos quiseram abandonar, uma existência parecida à de seus pais, uma maldição lenta”, diz o livro. Não há escapatória e não é difícil imaginar Anthony, o protagonista adolescente em meados dos anos noventa, como um colete amarelo quarentão em 2019.

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