Mario Vargas Llosa Fernando Vicente |
Mario Vargas Llosa
Cidade imensa e triste
No final dos anos sessenta criei muito carinho pela Inglaterra; fui deixando de ser um socialista e me transformando pouco a pouco no que ainda tento ser, um liberal
16 MAR 2019
Vim a Londres pela primeira vez em 1967, para dar aulas no Queen Mary’s College. Levava uma hora de metrô de Earl’s Court para chegar à universidade e outra para voltar, de maneira que utilizava essas duas horas para preparar as aulas e corrigir os trabalhos dos alunos. Descobri que gostava de ensinar, que não o fazia mal, e que aprendia muito lendo, por exemplo, Sarmiento, cujo ensaio sobre o gaúcho Quiroga passou a ser desde então um de meus livros de cabeceira.
A Londres daqueles dias era muito diferente de Paris, onde morei nos sete anos anteriores. Na capital francesa se falava de marxismo e de revolução, de defender Cuba contra as ameaças do imperialismo, de acabar com a cultura burguesa e substituí-la por outra, universal, em que toda a sociedade se sentisse representada. Na Grã-Bretanha os jovens não se interessavam pelas ideias e pela política, a música passava a liderar a vida cultural, eram os anos dos Beatles e dos Rolling Stones, da maconha e das roupas extravagantes e chamativas, dos cabelos até os ombros e uma nova palavra, hippies, havia se incorporado ao vocabulário universal. Passei meus primeiros seis meses em Londres em um afastado e plácido distrito cheio de irlandeses, Cricklewood, e depois, sem querer e saber, aluguei uma casinha justamente no coração do universo hippie, Philbeach Gardens, em Earl’s Court. Eram bondosos e simpáticos, e lembro da surpreendente resposta de uma jovem a quem me ocorreu perguntar por que andava sempre descalça: “Para me libertar de minha família de uma vez!”.
Passava todas as tardes em que não tinha aulas na belíssima sala de leitura da British Library, que estava à época no Museu Britânico, escrevendo Conversa no Catedral e lendo Edmund Wilson, Orwell, Virginia Woolf. E, por fim, Faulkner e Joyce em inglês. Tinha muitos conhecidos, mas poucos amigos, entre eles Hugh Thomas e os Cabrera Infante, que foram por puro acaso morar a poucos metros de minha casa. No ano seguinte comecei a dar aulas no King’s College, que ficava muito mais perto de minha casa, onde tinha um pouco mais de trabalho, mas um salário melhor.
Naqueles anos criei muito carinho e admiração pela Inglaterra, e fui deixando de ser um socialista e me transformando pouco a pouco no que ainda tento ser, um liberal. Esse sentimento aumentou tempos depois pelas coisas extraordinárias feitas por Margaret Thatcher no Governo. Nessa época já lia muito Hayek, Popper, Isaiah Berlin, e, principalmente, Adam Smith. Fui a Kirkcaldy, onde ele escreveu A Riqueza das Nações, e de sua casa só restava um pedaço de muro e uma placa, e no museu local as únicas coisas dele eram um cachimbo e uma pena de escrever. Mas, em Edimburgo, por sua vez, pude depositar um ramo de flores na igreja em que está enterrado e passear pelo bairro onde os moradores o viam vagabundear em seus últimos anos, distraído, apartado do mundo que o cercava, com seus estranhos passos de dromedário, totalmente absorto em seus pensamentos.
Em minha antiga moradia londrina, no final dos anos sessenta, não tínhamos televisão, mas sim um rádio, e saíamos somente uma vez por semana, nas noites de sábado, ao cinema e ao teatro, porque a senhora da Baby Minders que vinha tomar conta das crianças nos custava os olhos da cara, mas, apesar dessas dificuldades, acho que éramos bem felizes e é possível que, se não fosse por Carmen Balcells, teríamos ficado para sempre em Londres. Meus dois filhos e minha futura filha seriam três ingleses. Mas tenho certeza de que sempre teria me oposto ao Brexit e que teria militado ativamente contra semelhante aberração.
Eu me dava muito bem com meu chefe no King’s College, o professor Jones, especialista no Século de Ouro. Naquele final de ano acadêmico ele me propôs que, no seguinte, eu fosse uma vez por semana substituir um professor de espanhol em Cambridge que saía de férias, e aceitei. E, nisso, sem se anunciar, como uma tempestade impressionante, Carmen Balcells bateu na porta de minha casa.
Ela me foi apresentada por Carlos Barral em Barcelona, me explicando que se ocuparia de vender ao estrangeiro meus direitos de autor. Logo depois, a própria Carmen me contou que havia desistido de trabalhar na Editora Seix Barral porque a missão de uma agente literária era representar os autores contra o editor, e não o contrário. Se eu queria que ela fosse minha agente? Claro. As coisas haviam ficado mais ou menos assim.
O que veio fazer em Londres? “Ver você”, me respondeu. “Quero que você abandone imediatamente a universidade e a Inglaterra. E que todos vocês venham morar em Barcelona. O King’s College consome muito do seu tempo. Garanto que você poderá viver de seus livros. Eu me encarrego”.
É provável que eu tenha dado uma gargalhada e perguntado se ela estava louca. Viver de meus direitos de autor era um absurdo, porque eu levava dois ou três anos para escrever um romance e se precisasse fazê-lo em seis meses para alimentar meus dois filhos escreveria livros ilegíveis. Ainda não havia descoberto que quando Carmen colocava algo na cabeça era preciso fazer o que ela queria ou matá-la. Não existiam opções intermediárias. Lembro que discutimos por horas e horas, que me contou que García Márquez já estava em Barcelona, vivendo de seus livros; que ela viajou ao México para convencê-lo. E que não sairia de minha casa até eu dizer sim.
Ela me cansou e me derrotou. E nessa mesma tarde fui ver o professor Jones para dizê-lo que ia para Barcelona e que, daí em diante, tentaria viver de meus direitos de autor. Era um homem bem-educado e não me disse que eu era um imbecil fazendo semelhante disparate, mas vi em seu olhar que pensou nisso.
Não me arrependo de maneira nenhuma de ter dado ouvidos a Carmen Balcells porque os cinco anos que passei em Barcelona, entre 1970 e 1974, foram maravilhosos. Lá nasceu minha filha Morgana no hospital Dexeus e, graças a Santiago Dexeus, a vi nascer. Essa cidade se transformou, principalmente por Carmen e Carlos Barral, na capital da literatura latino-americana por um bom tempo, e lá voltaram a se encontrar e a se misturar os escritores espanhóis e hispano-americanos, que se evitavam desde a Guerra Civil. Nós que passamos aqueles anos na grande cidade mediterrânea não nos esqueceremos nunca do entusiasmo com que sentíamos chegar o fim da ditadura e a sensação reconfortante que era saber que, na nova sociedade democrática, a cultura teria um papel fundamental. Que sonhos de ópio!
A Espanha ainda não prestou a Carmen Balcells a homenagem que merece. Ela sozinha decidiu que, com suas grandes editoras e sua velha tradição de alta cultura, Barcelona deveria reunir muitos escritores latino-americanos e, juntando-os novamente com os espanhóis, unir a cultura da língua em um só território cultural. Os editores, pouco a pouco, começando por Carlos Barral, fizeram o que ela queria. Como eu, ela fez com que muitos escritores se instalassem em Barcelona, onde, naqueles anos, começaram a chegar os jovens sul-americanos, como antes a Paris, porque era lá que fazia sentido fantasiar histórias, escrever poemas, pintar e compor.
Desde o Brexit, a Inglaterra se desfez na memória e me senti profundamente decepcionado. Nesses dias, entretanto, talvez por estar velho, me lembrei com saudade dos anos que passei aqui e mais uma vez contradigo aquele poeta brasileiro de quem Jorge Edwards gostava tanto, que chamou Londres de “cidade imensa e triste” e disse de si mesmo: “Foste para lá triste e voltaste mais triste”.
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