Representação de um grupo de hominídeos na Sima de los Huesos, no sítio arqueológico espanhol de Atapuerca. JAVIER TRUEBA MADRID SCIENTIFIC FILMS |
Os neandertais não acreditavam em deus
Paleontólogo sustenta que a espécie que cruzou com os cro-magnons era incapaz de imaginar histórias
Madri 29 MAI 2019 - 16:53 COT
Se os neandertais não tivessem se extinguido, eles seriam mais parecidos com o Spock de Jornada nas Estrelas do que com o capitão Kirk da nave Enterprise. Juan Luis Arsuaga, professor de Paleontologia da Universidade Complutense de Madri, cujo currículo resumido levou mais de um minuto para ser lido na terça-feira pelo apresentador da conferência "Neandertais e Cro-Magnons − Duas Espécies ou Duas Raças?", não tem dúvida: “Eles não tinham o pensamento mágico, que é essencial no pensamento humano”.
Há 40.000 anos, um grupo de cro-magnons e outro de neandertais se encontraram onde hoje é a França. Possivelmente não se atacaram, tentaram se entender e colaborar. Os cro-magnons, usando pequenos adornos e com as cabeças cobertas por gorros, procuraram se comunicar com a outra espécie humana que compartilhava com eles a Eurásia (da Península Ibérica “até todos os países com nomes terminados em ‘tão’”, brincou Arsuaga). Os neandertais, porém, não entendiam o significado daqueles enfeites pendurados nos corpos dos recém-chegados. Em seu cérebro não havia lugar para “a liturgia, a cerimônia, o protocolo, para entender que as coisas podem significar algo”. No entanto, ambos eram humanos.
Arsuaga insistiu que o mundo que nos rodeia “fala para os seres humanos”. “Fabricamos coisas com significado, porque isso nos diferencia das máquinas. Elas calculam, mas não podem imaginar”, destacou. “Somos a única espécie que tem pensamento mágico. Somos criadores de objetos que falam.”
Os seres humanos possuem entre 2% e 3% do DNA dos neandertais, já que tiveram relações sexuais (e portanto descendência) com os cro-magnons. Mas nem todos os homo sapiens atuais têm os mesmos genes neandertais. Apesar disso, com um grupo amplo de seres humanos atuais seria possível reconstruir a cadeia genética de nossos antepassados.
Há 800.000 ou 900.00 anos, os neandertais ainda não tinham surgido como espécie claramente definida. Em Atapuerca, na província espanhola de Burgos, foram encontrados os restos do que pode ser considerado um grupo de 30 pré-neandertais. Seus rostos já mostravam traços do que se tornariam mais tarde, mas seu cérebro era muito menor. No mesmo momento, na África, estava ocorrendo algo parecido com os pré-cro-magnons. Só 40.000 anos atrás é que estes últimos entraram na Eurásia e se depararam com a outra espécie. Mas a pergunta surge imediatamente. Os neandertais podem ser considerados humanos?
Nos anos 1940, o paleontologista Ernst Mayr, da Universidade de Harvard, traçou a primeira teoria sobre o que era uma espécie. Sua conclusão foi: “Um grupo isolado que não mantém relações com outros” — do urso polar ao lobo ibérico, passando pelos cro-magnons e pelos sapiens. No entanto, nós, humanos, nos diferenciamos dos demais animais por não evoluirmos como resultado do ambiente que nos rodeia, “a cultura é que impede nosso isolamento genético”. Ou seja, cro-magnons e neandertais nunca estiveram isolados. Algo assim como o fato de que não adaptamos nosso estômago para poder comer grama, como os ruminantes, em vez disso criamos a agricultura, e os casacos, a música, a literatura.
Arsuaga reconheceu que é difícil imaginar um ser humano (neandertal) incapaz de criar “mitos, crenças, contar histórias…”. “Eram uma espécie sem bandeiras, sem seres sobrenaturais. É complicado. Talvez ocorra o mesmo com os extraterrestres. Por que vão ter sentimentos como a vergonha, que é puramente humana?”.
Isso “é difícil de entender”, assinalou o ganhador do Prêmio Príncipe de Astúrias de Pesquisa Científica e Técnica de 1997, criador da Fundação Atapuerca, membro da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, da Real Academia de Doutores da Espanha, doutor honoris causa por várias universidades e membro do Museu do Homem de Paris. “Os neandertais não eram uma espécie de sapiens, eram mais tolos. Podem existir formas de vida distintas e todas fazerem parte da mesma espécie, como os diferentes tipos de morcegos ou golfinhos. Compreendendo isso, poderíamos entender a mente de um possível extraterrestre que, talvez, desconheça a vergonha dos outros”, afirmou.
Foi aí que um participante da conferência perguntou diretamente a Arsuaga: eles pertenciam ou não à espécie humana? “Deus é que teria de nos explicar isso”, concluiu o pesquisador, com 3% de genes neandertais. E os dois salões de conferências do Museu Arqueológico, completamente lotados, irromperam em um longo aplauso.
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