25 anos depois, alguém mente sobre a cruzada de pernas de ‘Instinto Selvagem’
O diretor do filme, Paul Verhoeven, e Sharon Stone acusam um ao outro de mentir sobre os meandros da cena
Juan Sanguino
20 mar 2017
Lá se vão 25 anos, e alguns ainda não se recuperaram. A cruzada (ou, tecnicamente, descruzada) de pernas que fez o mundo prender a respiração não envelheceu nada. A suspeita de assassinato Catherine Trammell (interpretada por uma Sharon Stone de 34 anos) se submete a um interrogatório, mas é ela que acaba submetendo os policiais. O rato e o gato nunca estiveram tanto no cio. É Catherine a única que tem prazer com a situação.
Ela e milhões de espectadores: Instinto Selvagem (Paul Verhoeven, 1992) ficou em quarto lugar entre os longas de maior bilheteria naquele ano (estreou em março de 1992 nos EUA) e o de maior sucesso na história da Espanha por um tempo (estreou em agosto de 1992). O sexo (e a vontade de tê-lo) corrompe cada plano até quase derreter o celuloide de um filme que se transformou num clássico instantâneo. E tudo porque muitos adolescentes (e alguns pais) queimaram o vídeo rebobinando e pausando a cena em questão. Vinte e cinco anos depois, ainda existe um mistério, mais interessante e menos mortal, sem resolver. O diretor tinha o consentimento da atriz para retratá-la com aquele ângulo para a posteridade?
“Ele [o diretor] me disse que não daria para ver nada. Então tirei a calcinha e a coloquei no bolso da camisa”, diz Sharon Stone.
O detetive viciado em risco (e em muito mais) Nick Curran, interpretado por Michael Douglas, sabe que Catherine Trammell não usa calcinha. Observou-a enquanto se vestia na cena anterior e comprovou que, para Trammell, roupa interior é coisa de perdedoras. O público também sabe e assiste ao interrogatório de boca aberta. Ela se atreverá a descruzar as pernas para aturdir os machos da manada? Claro que sim. Catherine Trammell não chegou aonde chegou sendo tímida.
Existem duas versões sobre como ocorreu a famosa cena. Segundo o diretor do filme, Paul Verhoeven, Stone sabia perfeitamente o que estava fazendo e se mostrou encantada com a situação perversa. Segundo a atriz, o diretor a usou. “Quando gravamos, seria uma insinuação”, afirma Stone, “mas [Verhoeven] me disse: ‘Se der para ver o branco da sua roupa interior, preciso que a tire’. Ele me disse que não daria para ver nada. Então tirei a calcinha e a coloquei no bolso da camisa.”
Até aqui, ambas as versões da história coincidem. O conflito surge quando, terminada a gravação, os dois analisaram o plano em questão. “Naquela época, não existia alta definição”, prossegue a atriz. “Então, quando olhei no monitor, realmente não dava para ver nada.” Tudo mudou quando Stone, sua equipe e o mundo inteiro viram o filme numa tela de cinema de vários metros quadrados.
“Fiquei em estado de choque”, diz a atriz. “No final do filme eu me levantei, me aproximei de Paul Verhoeven e lhe dei uma bofetada.” Ela reconhece que o plano é adequado para o longa e para a personagem. E que, se tivesse sido a diretora, teria mantido na montagem final. “Mas teria tido a cortesia de mostrá-lo à intérprete”, afirma.
“Fiquei em estado de choque”, diz a atriz. “No final do filme, me levantei, me aproximei de Paul Verhoeven e lhe dei uma bofetada.”
Alguém mente, e segundo Paul Verhoeven não é ele. O diretor holandês conta que Stone tentou de todo jeito eliminar o plano entre suas pernas. Verhoeven lhe respondeu que já era tarde. “Sharon mente”, diz ele a ICON. “Qualquer atriz sabe o que será visto se você lhe pedir que tire a roupa interior e apontar a câmera nessa direção. Ela inclusive me deu a sua [calcinha] de presente. Quando Sharon viu o resultado da cena no monitor, não teve nenhum problema. Acho que isso tem a ver com o fato de que o diretor de fotografia [Jan De Bont, que depois dirigiria Velocidade Máxima e Tornado] e eu somos holandeses, de modo que atuamos com total normalidade ante a nudez. E Sharon se deixou levar por essa atitude relaxada. Mas, quando viu a cena rodeada por outras pessoas [americanas], incluindo seu agente, ficou louca. Todos lhe disseram que a cena acabaria com a sua carreira, então Sharon veio e me pediu que a cortasse. Eu disse que não. ‘Você aceitou, e te mostrei o resultado’, eu lhe disse, e ela me respondeu. ‘Vai se ferrar’. Mas Sharon não vai contar isso para você, com certeza não.”
A lenda em torno da gravação de Instinto Selvagem daria para outro thriller, e com bastantes cenas eróticas também, pois o roteirista Joe Eszterhas contou que tinha dormido com Sharon Stone para comemorar o sucesso do filme. Várias associações LGBT tentaram boicotar a rodagem devido à imagem negativa que o filme dava às mulheres bissexuais, e Michael Douglas se negou durante meses a contratar Stone por considerá-la “uma atriz de segunda”.
Mas o diretor sempre acreditou nela. Quando as atrizes de primeira grandeza (Julia Roberts, Michelle Pfeiffer) liam o roteiro, perguntavam se rodaria as cenas de sexo e violência tal como estavam escritas. “Não”, respondia Verhoeven. “Serão ainda mais fortes.” Sharon não tinha essas inibições, e acabava de posar nua para a Playboy na tentativa de reativar sua carreira. E claro que reativou. Vinte e cinco anos depois, Instinto Selvagem continua sendo o único filme que te dá vontade de fumar um cigarro ao acabar.
O roteirista, Joe Eszterhas, que não escreveu a cena do interrogatório porque foi ideia de Verhoeven, lamenta esse legado. “Quando você tem [no currículo] um dos planos eróticos mais famosos do mundo do cinema, eclipsa o filme, que é um tenso e psicológico filme negro moderno”, diz. A sequência foi objeto de culto, tanto entre sessões clandestinas quando os pais estavam fora de casa como entre paródias. Na última destas, o comediante James Corden tenta seduzir um já idoso Michael Douglas, conseguindo um efeito diferente do de Catherine Trammell.
Resta um mistério no ar, talvez o mais complexo de todos. Quem é Sharon Stone? Uma predadora sexual disposta a tudo? Ou uma vítima ingênua de um velho tarado? Provavelmente as duas coisas, e ao mesmo tempo nenhuma. Sharon Stone é o que tem que ser. Catherine Trammell transformou em mito a atriz que lhe deu rosto, corpo e púbis, mas a acabou condenando. Rita Hayworth lamentava que os homens iam para a cama com Gilda (sua personagem mais icônica), mas acordavam decepcionados com ela.
Stone sofreu uma sentença similar: passar à história, mas à custa de que ninguém se lembre dela como atriz, e sim como Catherine Trammell. Uma mulher encurralada que iniciou a moda das personagens femininas perversas que não se desculpavam por curtir o sexo. Demi Moore fez uma carreira inteira graças a essa moda. Nos loucos anos noventa, a revolução cultural foi feita sem roupa interior, e Sharon Stone teve a audácia de ser a primeira a tirar a sua.
“Sharon Stone mente”, diz Paul Verhoeven a ICON. “Quando ela viu o resultado da cena no monitor, não teve nenhum problema.”
“Ninguém mais poderia ter feito esse trabalho”, reconhece Verhoeven. E completa: “Ela pode ser muito cruel e muito encantadora, e é capaz de mudar o olhar de um estado para outro num segundo. Sharon Stone é assim. Ela é Catherine Trammell, mas sem picador de gelo.
Tudo indica que esse mistério, transformado em mito da cultura pop, jamais será resolvido. Naquela sala só estavam Stone, Verhoeven e De Bont, porque a atriz pediu que gravassem a cena no final do dia e diante de ninguém mais. O relaxamento que conseguiu graças a essa intimidade voltou-se contra ela, mas também a transformou no mito erótico oficial dos anos noventa: toda uma geração de adolescentes viraram homens de repente após ver Instinto Selvagem.
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