sábado, 27 de fevereiro de 2021

Mãos de fada

 


Mãos de fada

Mazarine11
dezembro 3, 2010 

Tenho mãos pequenas, mas não tenho mãos de madame. Não sei usar luvas quando lavo a louça e a roupa, quando mexo na terra e nas plantas, não sei me proteger do que nem de quem eu gosto. Tenho calos nos dedos de tanto escrever, e minhas unhas só conhecem o cuidado dentro de casa, onde sou minha própria manicure. Mas acreditem, o meu toque é o mais suave, porque a delicadeza está no meu coração, não nas minhas mãos.

As mãos do Gibi são as mais bonitas que eu já vi num homem, as mais sagradas por salvarem tantas vidas, mas sofrerem um duro baque há alguns dias. Um corte feio, dez pontos, uma cicatriz muito grosseira, quase perdeu o dedo. Gibi anda reclamando que perdeu parte da sensibilidade da mão, e isso é grave, isso é mau, porque sentir é a coisa mais importante de um ser humano. Sentir dor é ruim, mas pior que isso é não sentir nada – e o que deu causa a isso não faz menção do mal que fez, porque também pouco sente.

Há remédio para tudo nessa vida, mas para insensibilidade e desamor, nem reza brava trata. E para um médico tão bom quanto ele, deve ser frustrante ficar tão impotente.

MAZARINE 111


quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Lygia Fagundes Telles / A caçada




Lygia Fagundes Telles
A caçada


A loja de antiguidades tinha o cheiro de uma arca de sacristia com seus anos embolorados e livros comidos de traça. Com as pontas dos dedos, o homem tocou numa pilha de quadros. Uma mariposa levantou vôo e foi chocar-se contra uma imagem de mãos decepadas.

— Bonita imagem —disse ele.

A velha tirou um grampo do coque, e limpou a unha do polegar. Tornou a enfiar o grampo no cabelo.

— É um São Francisco.

Ele então voltou-se lentamente para a tapeçaria que tomava toda a parede no fundo da loja. Aproximou-se mais. A velha aproximou-se também.

— Já vi que o senhor se interessa mesmo é por isso... Pena que esteja nesse estado.

O homem estendeu a mão até a tapeçaria, mas não chegou a tocá-la.

— Parece que hoje está mais nítida...

— Nítida? — repetiu a velha, pondo os óculos. Deslizou a mão pela superfície puída. — Nítida, como?

— As cores estão mais vivas. A senhora passou alguma coisa nela?

A velha encarou-o. E baixou o olhar para a imagem de mãos decepadas. O homem estava tão pálido e perplexo quanto a imagem.

— Não passei nada, imagine... Por que o senhor pergunta?

— Notei uma diferença.

— Não, não passei nada, essa tapeçaria não agüenta a mais leve escova, o senhor não vê? Acho que é a poeira que está sustentando o tecido acrescentou, tirando novamente o grampo da cabeça. Rodou-o entre os dedos com ar pensativo. Teve um muxoxo: — Foi um desconhecido que trouxe, precisava muito de dinheiro. Eu disse que o pano estava por demais estragado, que era difícil encontrar um comprador, mas ele insistiu tanto... Preguei aí na parede e aí ficou. Mas já faz anos isso. E o tal moço nunca mais me apareceu.

— Extraordinário...

A velha não sabia agora se o homem se referia à tapeçaria ou ao caso que acabara de lhe contar. Encolheu os ombros. Voltou a limpar as unhas com o grampo.

— Eu poderia vendê-la, mas quero ser franca, acho que não vale mesmo a pena. Na hora que se despregar, é capaz de cair em pedaços.

O homem acendeu um cigarro. Sua mão tremia. Em que tempo, meu Deus! em que tempo teria assistido a essa mesma cena. E onde?...

Era uma caçada. No primeiro plano, estava o caçador de arco retesado, apontando para uma touceira espessa. Num plano mais profundo, o segundo caçador espreitava por entre as árvores do bosque, mas esta era apenas uma vaga silhueta, cujo rosto se reduzira a um esmaecido contorno. Poderoso, absoluto era o primeiro caçador, a barba violenta como um bolo de serpentes, os músculos tensos, à espera de que a caça levantasse para desferir-lhe a seta.

O homem respirava com esforço. Vagou o olhar pela tapeçaria que tinha a cor esverdeada de um céu de tempestade. Envenenando o tom verde-musgo do tecido, destacavam-se manchas de um negro-violáceo e que pareciam escorrer da folhagem, deslizar pelas botas do caçador e espalhar-se no chão como um líquido maligno. A touceira na qual a caça estava escondida também tinha as mesmas manchas e que tanto podiam fazer parte do desenho como ser simples efeito do tempo devorando o pano.

— Parece que hoje tudo está mais próximo — disse o homem em voz baixa. — É como se... Mas não está diferente?

A velha firmou mais o olhar. Tirou os óculos e voltou a pô-los.

— Não vejo diferença nenhuma.

— Ontem não se podia ver se ele tinha ou não disparado a seta...

— Que seta? O senhor está vendo alguma seta?

— Aquele pontinho ali no arco... A velha suspirou.

— Mas esse não é um buraco de traça? Olha aí, a parede já está aparecendo, essas traças dão cabo de tudo — lamentou, disfarçando um bocejo. Afastou-se sem ruído, com suas chinelas de lã. Esboçou um gesto distraído: — Fique aí à vontade, vou fazer meu chá.

O homem deixou cair o cigarro. Amassou-o devagarinho na sola do sapato. Apertou os maxilares numa contração dolorosa. Conhecia esse bosque, esse caçador, esse céu — conhecia tudo tão bem, mas tão bem! Quase sentia nas narinas o perfume dos eucaliptos, quase sentia morder-lhe a pele o frio úmido da madrugada, ah, essa madrugada! Quando? Percorrera aquela mesma vereda aspirara aquele mesmo vapor que baixava denso do céu verde... Ou subia do chão? O caçador de barba encaracolada parecia sorrir perversamente embuçado. Teria sido esse caçador? Ou o companheiro lá adiante, o homem sem cara espiando por entre as árvores? Uma personagem de tapeçaria. Mas qual? Fixou a touceira onde a caça estava escondida. Só folhas, só silêncio e folhas empastadas na sombra. Mas, detrás das folhas, através das manchas pressentia o vulto arquejante da caça. Compadeceu-se daquele ser em pânico, à espera de uma oportunidade para prosseguir fugindo. Tão próxima a morte! O mais leve movimento que fizesse, e a seta... A velha não a distinguira, ninguém poderia percebê-la, reduzida como estava a um pontinho carcomido, mais pálido do que um grão de pó em suspensão no arco.

Enxugando o suor das mãos, o homem recuou alguns passos. Vinha-lhe agora uma certa paz, agora que sabia ter feito parte da caçada. Mas essa era uma paz sem vida, impregnada dos mesmos coágulos traiçoeiros da folhagem. Cerrou os olhos. E se tivesse sido o pintor que fez o quadro? Quase todas as antigas tapeçarias eram reproduções de quadros, pois não eram? Pintara o quadro original e por isso podia reproduzir, de olhos fechados, toda a cena nas suas minúcias: o contorno das árvores, o céu sombrio, o caçador de barba esgrouvinhada, só músculos e nervos apontando para a touceira... "Mas se detesto caçadas! Por que tenho que estar aí dentro?"

Apertou o lenço contra a boca. A náusea. Ah, se pudesse explicar toda essa familiaridade medonha, se pudesse ao menos... E se fosse um simples espectador casual, desses que olham e passam? Não era uma hipótese? Podia ainda ter visto o quadro no original, a caçada não passava de uma ficção. "Antes do aproveitamento da tapeçaria..." — murmurou, enxugando os vãos dos dedos no lenço.

Atirou a cabeça para trás como se o puxassem pelos cabelos, não, não ficara do lado de fora, mas lá dentro, encravado no cenário! E por que tudo parecia mais nítido do que na véspera, por que as cores estavam mais fortes apesar da penumbra? Por que o fascínio que se desprendia da paisagem vinha agora assim vigoroso, rejuvenescido?...

Saiu de cabeça baixa, as mãos cerradas no fundo dos bolsos. Parou meio ofegante na esquina. Sentiu o corpo moído, as pálpebras pesadas. E se fosse dormir? Mas sabia que não poderia dormir, desde já sentia a insônia a segui-lo na mesma marcação da sua sombra. Levantou a gola do paletó. Era real esse frio? Ou a lembrança do frio da tapeçaria? "Que loucura!... E não estou louco", concluiu num sorriso desamparado. Seria uma solução fácil. "Mas não estou louco.".

Vagou pelas ruas, entrou num cinema, saiu em seguida e quando deu acordo de si, estava diante da loja de antiguidades, o nariz achatado na vitrina, tentando vislumbrar a tapeçaria lá no fundo.

Quando chegou em casa, atirou-se de bruços na cama e ficou de olhos escancarados, fundidos na escuridão. A voz tremida da velha parecia vir de dentro do travesseiro, uma voz sem corpo, metida em chinelas de lã: "Que seta? Não estou vendo nenhuma seta..." Misturando-se à voz, veio vindo o murmurejo das traças em meio de risadinhas. O algodão abafava as risadas que se entrelaçaram numa rede esverdinhada, compacta, apertando-se num tecido com manchas que escorreram até o limite da tarja. Viu-se enredado nos fios e quis fugir, mas a tarja o aprisionou nos seus braços. No fundo, lá no fundo do fosso, podia distinguir as serpentes enleadas num nó verde-negro. Apalpou o queixo. "Sou o caçador?" Mas ao invés da barba encontrou a viscosidade do sangue.

Acordou com o próprio grito que se estendeu dentro da madrugada. Enxugou o rosto molhado de suor. Ah, aquele calor e aquele frio! Enrolou-se nos lençóis. E se fosse o artesão que trabalhou na tapeçaria? Podia revê-la, tão nítida, tão próxima que, se estendesse a mão, despertaria a, folhagem. Fechou os punhos. Haveria de destruí-la, não era verdade que além daquele trapo detestável havia alguma coisa mais, tudo não passava de um retângulo de pano sustentado pela poeira. Bastava soprá-la, soprá-la!

Encontrou a velha na porta da loja. Sorriu irônica:

— Hoje o senhor madrugou.

— A senhora deve estar estranhando, mas...

— Já não estranho mais nada, moço. Pode entrar, pode entrar, o senhor conhece o caminho...

"Conheço o caminho" — murmurou, seguindo lívido por entre os móveis. Parou. Dilatou as narinas. E aquele cheiro de folhagem e terra, de onde vinha aquele cheiro? E por que a loja foi ficando embaçada, lá longe? Imensa, real só a tapeçaria a se alastrar sorrateiramente pelo chão, pelo teto, engolindo tudo com suas manchas esverdinhadas. Quis retroceder, agarrou-se a um armário, cambaleou resistindo ainda e estendeu os braços até a coluna. Seus dedos afundaram por entre galhos e resvalaram pelo tronco de uma árvore, não era uma coluna, era uma árvore! Lançou em volta um olhar esgazeado: penetrara na tapeçaria, estava dentro do bosque, os pés pesados de lama, os cabelos empastados de orvalho. Em redor, tudo parado. Estático. No silêncio da madrugada, nem o piar de um pássaro, nem o farfalhar de uma folha. Inclinou-se arquejante. Era o caçador? Ou a caça? Não importava, não importava, sabia apenas que tinha que prosseguir correndo sem parar por entre as árvores, caçando ou sendo caçado. Ou sendo caçado?... Comprimiu as palmas das mãos contra a cara esbraseada, enxugou no punho da camisa o suor que lhe escorria pelo pescoço. Vertia sangue o lábio gretado.

Abriu a boca. E lembrou-se. Gritou e mergulhou numa touceira. Ouviu o assobio da seta varando a folhagem, a dor!

"Não..." - gemeu, de joelhos. Tentou ainda agarrar-se à tapeçaria. E rolou encolhido, as mãos apertando o coração.


Publicado no livro "Antes do baile verde", José Olympio Editora – Rio de Janeiro, 1979, foi incluído entre "Os cem melhores contos brasileiros do século", seleção de Ítalo Moriconi, Editora Objetiva – Rio de Janeiro, 2000, pág. 265.



terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Lygia Fagundes Telles / As formigas





Lygia Fagundes Telles

As formigas



Quando minha prima e eu descemos do táxi, já era quase noite. Ficamos imóveis diante do velho sobrado de janelas ovaladas, iguais a dois olhos tristes, um deles vazado por uma pedrada. Descansei a mala no chão e apertei o braço da prima.

–É sinistro.
Ela me impeliu na direção da porta. Tínhamos outra escolha? Nenhuma pensão nas redondezas oferecia um preço melhor a duas pobres estudantes com liberdade de usar o fogareiro no quarto, a dona nos avisara por telefone que podíamos fazer refeições ligeiras com a condição de não provocar incêndio. Subimos a escada velhíssima, cheirando a creolina.
–Pelo menos não vi sinal de barata –disse minha prima.
A dona era uma velha balofa, de peruca mais negra do que a asa da graúna. Vestia um desbotado pijama de seda japonesa e tinha as unhas aduncas recobertas por uma crosta de esmalte vermelho-escuro, descascado nas pontas encardidas. Acendeu um charutinho.
–É você que estuda medicina? – perguntou soprando a fumaça na minha direção.
–Estudo direito. Medicina é ela.
A mulher nos examinou com indiferença. Devia estar pensando em outra coisa quando soltou uma baforada tão densa que precisei desviar a cara. A saleta era escura, atulhada de móveis velhos, desparelhados. No sofá de palhinha furada no assento, duas almofadas que pareciam ter sido feitas com os restos de um antigo vestido, os bordados salpicados de vidrilho.
Vou mostrar o quarto, fica no sótão – disse ela em meio a um acesso de tosse. Fez um sinal para que a seguíssemos. – O inquilino antes de vocês também estudava medicina, tinha um caixotinho de ossos que esqueceu aqui, estava sempre mexendo neles.
Minha prima voltou-se:
–Um caixote de ossos?
A mulher não respondeu, concentrada no esforço de subir a estreita escada de caracol que ia dar no quarto. Acendeu a luz. O quarto não podia ser menor, com o teto em declive tão acentuado que nesse trecho teríamos que entrar de gatinhas. Duas camas, dois armários e uma cadeira de palhinha pintada de dourado. No ângulo onde o teto quase se encontrava com o assoalho, estava um caixotinho coberto com um pedaço de plástico. Minha prima largou a mala e, pondo-se de joelhos, puxou o caixotinho pela alça de corda. Levantou o plástico. Parecia fascinada.
–Mas que ossos tão miudinhos! São de criança?
–Ele disse que eram de adulto. De um anão.
–De um anão? é mesmo, a gente vê que já estão formados… Mas que maravilha, é raro a beça esqueleto de anão. E tão limpo, olha aí –admirou-se ela. Trouxe na ponta dos dedos um pequeno crânio de uma brancura de cal. – Tão perfeito, todos os dentinhos!
–Eu ia jogar tudo no lixo, mas se você se interessa pode ficar com ele. O banheiro é aqui ao lado, só vocês é que vão usar, tenho o meu lá embaixo. Banho quente extra. Telefone também. Café das sete às nove, deixo a mesa posta na cozinha com a garrafa térmica, fechem bem a garrafa recomendou coçando a cabeça. A peruca se deslocou ligeiramente. Soltou uma baforada final: – Não deixem a porta aberta senão meu gato foge.
Ficamos nos olhando e rindo enquanto ouvíamos o barulho dos seus chinelos de salto na escada. E a tosse encatarrada.
Esvaziei a mala, dependurei a blusa amarrotada num cabide que enfiei num vão da veneziana, prendi na parede, com durex, uma gravura de Grassman e sentei meu urso de pelúcia em cima do travesseiro. Fiquei vendo minha prima subir na cadeira, desatarraxar a lâmpada fraquíssima que pendia de um fio solitário no meio do teto e no lugar atarraxar uma lâmpada de duzentas velas que tirou da sacola. O quarto ficou mais alegre. Em compensação, agora a gente podia ver que a roupa de cama não era tão alva assim, alva era a pequena tíbia que ela tirou de dentro do caixotinho. Examinou- a. Tirou uma vértebra e olhou pelo buraco tão reduzido como o aro de um anel. Guardou-as com a delicadeza com que se amontoam ovos numa caixa.
–Um anão. Raríssimo, entende? E acho que não falta nenhum ossinho, vou trazer as ligaduras, quero ver se no fim da semana começo a montar ele.
Abrimos uma lata de sardinha que comemos com pão, minha prima tinha sempre alguma lata escondida, costumava estudar até de madrugada e depois fazia sua ceia. Quando acabou o pão, abriu um pacote de bolacha Maria.
–De onde vem esse cheiro? –perguntei farejando. Fui até o caixotinho, voltei, cheirei o assoalho. – Você não está sentindo um cheiro meio ardido?
–É de bolor. A casa inteira cheira assim –ela disse. E puxou o caixotinho para debaixo da cama.
No sonho, um anão louro de colete xadrez e cabelo repartido no meio entrou no quarto fumando charuto. Sentou-se na cama da minha prima, cruzou as perninhas e ali ficou muito sério, vendo-a dormir. Eu quis gritar, tem um anão no quarto! mas acordei antes. A luz estava acesa. Ajoelhada no chão, ainda vestida, minha prima olhava fixamente algum ponto do assoalho.
–Que é que você está fazendo aí? –perguntei.
–Essas formigas. Apareceram de repente, já enturmadas. Tão decididas, está vendo?
Levantei e dei com as formigas pequenas e ruivas que entravam em trilha espessa pela fresta debaixo da porta, atravessavam o quarto, subiam pela parede do caixotinho de ossos e desembocavam lá dentro, disciplinadas como um exército em marcha exemplar.
–São milhares, nunca vi tanta formiga assim. E não tem trilha de volta, só de ida – estranhei.
–Só de ida.
Contei-lhe meu pesadelo com o anão sentado em sua cama.
–Está debaixo dela – disse minha prima e puxou para fora o caixotinho. Levantou o plástico. – Preto de formiga. Me dá o vidro de álcool.
–Deve ter sobrado alguma coisa aí nesses ossos e elas descobriram, formiga descobre tudo. Se eu fosse você, levava isso lá pra fora.
–Mas os ossos estão completamente limpos, eu já disse. Não ficou nem um fiapo de cartilagem, limpíssimos. Queria saber o que essas bandidas vem fuçar aqui.
Respingou fartamente o álcool em todo o caixote. Em seguida, calçou os sapatos e como uma equilibrista andando no fio de arame, foi pisando firme, um pé diante do outro na trilha de formigas. Foi e voltou duas vezes. Apagou o cigarro. Puxou a cadeira. E ficou olhando dentro do caixotinho.
–Esquisito. Muito esquisito.
–O quê?
–Me lembro que botei o crânio em cima da pilha, me lembro que até calcei ele com as omoplatas para não rolar. E agora ele está aí no chão do caixote, com uma omoplata de cada lado. Por acaso você mexeu aqui?
–Deus me livre, tenho nojo de osso. Ainda mais de anão.
Ela cobriu o caixotinho com o plástico, empurrou-o com o pé e levou o fogareiro para a mesa, era a hora do seu chá. No chão, a trilha de formigas mortas era agora uma fita escura que encolheu. Uma formiguinha que escapou da matança passou perto do meu pé, já ia esmagá-la quando vi que levava as mãos a cabeça, como uma pessoa desesperada. Deixei-a sumir numa fresta do assoalho.
Voltei a sonhar aflitivamente mas dessa vez foi o antigo pesadelo em torno dos exames, o professor fazendo uma pergunta atrás da outra e eu muda diante do único ponto que não tinha estudado. Às seis horas o despertador disparou veementemente. Travei a campainha. Minha prima dormia com a cabeça coberta. No banheiro, olhei com atenção para as paredes, para o chão de cimento, a procura delas
Não vi nenhuma. Voltei pisando na ponta dos pés e então entreabri as folhas da veneziana. O cheiro suspeito da noite tinha desaparecido. Olhei para o chão: desaparecera também a trilha do exército massacrado. Espiei debaixo da cama e não vi o menor movimento de formigas no caixotinho coberto.
Quando cheguei por volta das sete da noite, minha prima já estava no quarto. Achei-a tão abatida que carreguei no sal da omelete, tinha a pressão baixa. Comemos num silêncio voraz. Então me lembrei:
–E as formigas?
–Até agora, nenhuma.
–Você varreu as mortas?
Ela ficou me olhando.
–Não varri nada, estava exausta. Não foi você que varreu?
–Eu?! Quando acordei, não tinha nem sinal de formiga nesse chão, estava certa que antes de deitar você juntou tudo… Mas então quem?!
Ela apertou os olhos estrábicos, ficava estrábica quando se preocupava.
–Muito esquisito mesmo. Esquisitíssimo.
Fui buscar o tablete de chocolate e perto da porta senti de novo o cheiro, mas seria bolor? Não me parecia um cheiro assim inocente, quis chamar a atenção da minha prima para esse aspecto mas estava tão deprimida que achei melhor ficar quieta. Espargi água-de-colônia flor de maçã por todo o quarto (e se ele cheirasse como um pomar?) e fui deitar cedo. Tive o segundo tipo de sonho que competia nas repetições com o sonho da prova oral: nele, eu marcava encontro com dois namorados ao mesmo tempo. E no mesmo lugar. Chegava o primeiro e minha aflição era levá-lo embora dali antes que chegasse o segundo. O segundo, desta vez, era o anão. Quando só restou o oco de silêncio e sombra, a voz da minha prima me fisgou e me trouxe para a superfície. Abri os olhos com esforço. Ela estava sentada na beira da minha cama, de pijama e completamente estrábica.
–Elas voltaram.
–Quem?
–As formigas. Só atacam de noite, antes da madrugada. Estão todas aí de novo.
A trilha da véspera, intensa, fechada, seguia o antigo percurso da porta até o caixotinho de ossos por onde subia na mesma formação até desformigar lá dentro. Sem caminho de volta.
–E os ossos?
Ela se enrolou no cobertor, estava tremendo.
Aí é que está o mistério. Aconteceu uma coisa, não entendo mais nada! Acordei pra fazer pipi, devia ser umas três horas. Na volta senti que no quarto tinha algo mais, está me entendendo? Olhei pro chão e vi a fila dura de formiga, você lembra? não tinha nenhuma quando chegamos. Fui ver o caixotinho, todas trançando lá dentro, lógico, mas não foi isso o que quase me fez cair pra trás, tem uma coisa mais grave: é que os ossos estão mesmo mudando de posição, eu já desconfiava mas agora estou certa, pouco a pouco eles estão… estão se organizando.
–Como, organizando?
Ela ficou pensativa. Comecei a tremer de frio, peguei uma ponta do seu cobertor. Cobri meu urso com o lençol.
–Você lembra, o crânio entre as omoplatas, não deixei ele assim. Agora é a coluna vertebral que já está quase formada, uma vértebra atrás da outra, cada ossinho tomando seu lugar, alguém do ramo está montando o esqueleto, mais um pouco e… Venha ver!
–Credo, não quero ver nada. Estão colando o anão, é isso?
Ficamos olhando a trilha rapidíssima, tão apertada que nela não caberia sequer um grão de poeira. Pulei-a com o maior cuidado quando fui esquentar o chá. Uma formiguinha desgarrada (a mesma daquela noite?) sacudia a cabeça entre as mãos. Comecei a rir e tanto que se o chão não estivesse ocupado, rolaria por ali de tanto rir. Dormimos juntas na minha cama. Ela dormia ainda quando saí para a primeira aula. No chão, nem sombra de formiga, mortas e vivas, desapareciam com a luz do dia.
Voltei tarde essa noite, um colega tinha se casado e teve festa. Vim animada, com vontade de cantar, passei da conta. Só na escada é que me lembrei: o anão. Minha prima arrastara a mesa para a porta e estudava com o bule fumegando no fogareiro.
–Hoje não vou dormir, quero ficar de vigia –ela avisou.
O assoalho ainda estava limpo. Me abracei ao urso.
–Estou com medo.
Ela foi buscar uma pílula para atenuar minha ressaca, me fez engolir a pílula com um gole de chá e ajudou a me despir.
–Fico vigiando, pode dormir sossegada. Por enquanto não apareceu nenhuma, não está na hora delas, é daqui a pouco que começa. Examinei com a lupa debaixo da porta, sabe que não consigo descobrir de onde brotam?
Tombei na cama, acho que nem respondi. No topo da escada o anão me agarrou pelos pulsos e rodopiou comigo até o quarto, acorda, acorda! Demorei para reconhecer minha prima que me segurava pelos cotovelos. Estava lívida. E vesga.
–Voltaram – ela disse.
Apertei entre as mãos a cabeça dolorida.
–Estão aí?
Ela falava num tom miúdo como se uma formiguinha falasse com sua voz.
–Acabei dormindo em cima da mesa, estava exausta. Quando acordei, a trilha já estava em plena. Então fui ver o caixotinho, aconteceu o que eu esperava…
–Que foi? Fala depressa, o que foi?
Ela firmou o olhar oblíquo no caixotinho debaixo da cama.
–Estão mesmo montando ele. E rapidamente, entende? O esqueleto está inteiro, só falta o fêmur. E os ossinhos da mão esquerda, fazem isso num instante. Vamos embora daqui.
–Você está falando sério?
–Vamos embora, já arrumei as malas.
A mesa estava limpa e vazios os armários escancarados.
–Mas sair assim, de madrugada? Podemos sair assim?
–Imediatamente, melhor não esperar que a bruxa acorde. Vamos, levanta.
–E para onde a gente vai?
–Não interessa, depois a gente vê. Vamos, vista isto, temos que sair antes que o anão fique pronto.
Olhei de longe a trilha: nunca elas me pareceram tão rápidas. Calcei os sapatos, descolei a gravura da parede, enfiei o urso no bolso da japona e fomos arrastando as malas pelas escadas, mais intenso o cheiro que vinha do quarto, deixamos a porta aberta. Foi o gato que miou comprido ou foi um grito?
No céu, as últimas estrelas já empalideciam. Quando encarei a casa, só a janela vazada nos via, o outro olho era penumbra.



segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

Três séries baseadas em livros

 

Margaret Atwood


Três séries baseadas em livros

Os melhores filmes e séries, talvez sejam os que são baseados em livros. Há muitos clássicos da literatura que foram para a tela ou para os palcos, tal como várias obras da literatura moderna ou contemporânea. Vou contar um pouco sobre três séries que vi recentemente:

  1. Outlander

Outlander (“Forasteira”, 1991), é baseada numa saga com o mesmo nome, da escritora americana Diana Gabaldon (1952). Já são oito livros. No Reino Unido, foi publicado como “Cross Stitch”, no Brasil, como “A viajante do tempo” e em Portugal, “Nas asas do tempo”. Tratam- se de romances históricos sobre a guerra entre a Escócia e a Inglaterra, mas com muitos outros elementos: romance, aventura e o fantástico.

A série, aviso, é tremendamente violenta. Nos primeiros capítulos a coisa é mais suave, mas com o desenrolar da história, as cenas ficam tremendas. Confesso que fechei os olhos em alguns momentos e em outros, até me revirou o estômago. Cenas fortes e duras. Você vai se afeiçoando aos personagens e vê- los sofrer vai ficando difícil. Apesar de não ser apta para pessoas muito sensíveis, é uma excelente história baseada em fatos reais.

A paixão entre a inglesa Claire Randall, viajante no tempo, e o escocês Jamie Fraser, é o tipo de romance incondicional que povoa a cabeça dos românticos sonhadores. Claire introduz o elemento místico, misterioso, inexplicável da história: ela é uma bruxa branca. E de forma inesperada, ela entra em uma espécie de portal que a transporta do ano 1945 ao 1743, quando havia uma rebelião na Escócia, pois os ingleses haviam destituído o rei e imposto a coroa inglesa.

Claire é casada, em 1945, com um homem que tem ancestrais escoceses em 1743. Essa é a parte que eu mais gosto, o círculo da vida, onde nada acontece por acaso, é causa e consequência. Mesmo Claire conhecendo a história passada, não consegue modificá- la para evitar tragédias, como se as coisas realmente fossem pré- determinadas.

O principal cenário são as highlanders escocesas, com seu modo de vida e costumes. Um povo duro, violento e com seus códigos de honra particulares. No quesito crueldade, os ingleses e franceses também não ficam atrás. A história contemporânea tem que viver na base do perdão e ter consciência do passado para não repetir os mesmos erros.

O elenco é espetacular, fotografia e caracterização, idem, impecáveis. Menção especial ao escocês protagonista Sam Heughan, que dá vontade de levar pra casa. Ele usa peruca, porque tem cabelos loiros e o personagem Jamie Fraser é ruivo de cabelos cacheados.

Inclusive o ator lançou um livro, com audiobook também, junto a outro ator da série, Graham McTavish, chamado “Clanlands”. Os dois saíram pelas highlands escocesas em uma van, mostrando as paisagens da série e costumes escoceses. Sabia que os kilts, as típicas saias escocesas com tecido xadrez, foram proibidos pelos ingleses durante 100 anos?

Recomendo a série, mas aviso que não é apta para gente sensível ou para crianças. Eu estou vendo na Netflix.

2. Anne com “E”, de Lucy Maud Montgomery

Quem viu esta série na Netflix?

Amybeth McNulty na pele da encantadora Anne Shirley

Baseada no livro “Anne of green Gables” (1908), da canadense Lucy Maud Montgomery (1847-1942), também é uma obra que virou uma série apta para todos os públicos. Aliás, virou série, filme, desenho animado, um grande sucesso. Anne Shirley é uma orfã de 11 anos, que vive numa fazenda com dois irmãos solteiros. Anne é encantadora, tagarela, sonhadora, bondosa, solidária e…incompreendida. A vida não é fácil e Anne tem que enfrentar muitos obstáculos, como o bullying na escola e o desprezo social, e também conviver com as tristes lembranças do orfanato.

Primeira edição de Anne with E, ela está sendo vendida por quase 35 mil dólares.

O que aconteceu com o livro foi curioso: apesar por de ter sido escrito no Canadá por uma canadense, só foi publicado 35 anos depois no país. A primeira edição foi americana, com muito sucesso. Parece mesmo que a prata da casa nunca é valorizada.

Uma história bonita e que te vai emocionar em muitos momentos. Recomendo!

3. The Handmaid’s Tale, de Margaret Atwood

Livro que deu origem à série

Esta história é assustadora. Assombra, porque apesar de ser ficção em um mundo distópico, fiquei com a sensação de algo muito real, que pode acontecer no futuro (não muito distante).

Um ataque terrorista simulado pelo próprio governo para enganar a população, acabou com a Constituição e a democracia. Esse governo culpou mulheres e homossexuais pelo caos social. Gays são executados e as mulheres, devido à baixa natalidade, são retiradas dos seus trabalhos e de suas vidas, para procriar, escravas sexuais. Tudo em nome de Deus. Em nome de Deus e da moral, foi gerada uma sociedade cuja barbárie prevalece, pior que na Idade Média.

As músicas do nosso tempo me fizeram pensar que esse mundo estranho, ditatorial, está bem próximo de nós: The Smiths, Bob Marley, Jay Reatard…

Não posso deixar de pensar em Bolsonaro e seus milhares de pensamentos irresponsáveis, indecentes, criminosos e anti- constitucionais. Jair Bolsonaro seria um líder perfeito para este cruel mundo distópico de Margaret Atwood. A coletânea de frases infelizes deste homem, já ultrapassou todos os limites do que é bom, saudável, decente, legal e normal. Relembrando o que disse para Preta Gil:

“EU NÃO VOU DISCUTIR PROMISCUIDADE COM QUEM QUER QUE SEJA. EU NÃO CORRO ESSE RISCO. MEUS FILHOS FORAM MUITO BEM EDUCADOS E NÃO VIVERAM EM UM AMBIENTE COMO, LAMENTAVELMENTE, É O SEU”. (VEJA)

Mas não, ele é líder eleito do Brasil. Tal como essa epidemia do COVID-19, Jair Bolsonaro me provoca espanto, estranheza e sensação de incredulidade, igual quando você tem um pesadelo ruim. Às vezes, penso que viajei para a Idade Média, uma total involução.

FALANDO EM LITERATURA


sábado, 13 de fevereiro de 2021

Clarice Lispector / Frase / Perder-se

Clarice Lispector

Clarice Lispector
PERDER-SE

Perder-se significa ir achando e nem saber o que fazer do que se for achando.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

Clarice Lispector / Uma história de tanto amor

Girl and Chicken
Jeffrey T. Larson
Clarice Lispector
Uma história de tanto amor


Era uma vez uma menina que observava tanto as galinhas que lhes conhecia a alma e os anseios íntimos. A galinha é ansiosa, enquanto o galo tem angústia quase humana: falta-lhe um amor verdadeiro naquele seu harém, e ainda mais tem que vigiar a noite toda para não perder a primeira das mais longíquas claridades e cantar o mais sonoro possível. É o seu dever e a sua arte. Voltando às galinhas, a menina possuía duas só dela. Uma se chamava Pedrina e a outra Petronilha.
Quando a menina achava que uma delas estava doente do fígado, ela cheirava embaixo das asas delas, com uma simplicidade de enfermeira, o que considerava ser o sintoma máximo de doenças, pois o cheiro de galinha viva não é de se brincar. Então pedia um remédio a uma tia. E a tia : "Você não tem coisa nenhuma no fígado". Então, com a intimidade que tinha com essa tia eleita, explicou-lhe para quem era o remédio. A menina achou de bom alvitre dá-lo tanto a Pedrina quanto a Petronilha para evitar contágios misteriosos. Era quase inútil dar o remédio porque Pedrina e Petronilha continuavam a passar o dia ciscando o chão e comendo porcarias que faziam mal ao fígado. E o cheiro debaixo das asas era aquela morrinha mesmo. Não lhe ocorreu dar um desodorante porque nas Minas Gerais onde o grupo vivia não eram usados assim como não se usavam roupas íntimas de nylon e sim de cambraia. A tia continuava a lhe dar o remédio, um líquido escuro que a menina desconfiava ser água com uns pingos de café - e vinha o inferno de tentar abrir o bico das galinhas para administrar-lhes o que as curaria de serem galinhas. A menina ainda não tinha entendido que os homens não podem ser curados de serem homens e as galinhas de serem galinhas: tanto o homem como a galinha têm misérias e grandeza (a da galinha é a de pôr um ovo branco de forma perfeita) inerentes à própria espécie. A menina morava no campo e não havia farmácia perto para ela consultar.
Outro inferno de dificuldade era quando a menina achava Pedrina e Petronilha magras debaixo das penas arrepiadas, apesar de comerem o dia inteiro. A menina não entendera que engordá-las seria apressar-lhes um destino na mesa. E recomeçava o trabalho mais difícil: o de abrir-lhes o bico. A menina tornou-se grande conhecedora intuitiva de galinhas naquele imenso quintal das Minas Gerais. E quando cresceu ficou surpresa ao saber que na gíria o termo galinha tinha outra acepção. Sem notar a seriedade cômica que a coisa toda tomava:
- Mas é o galo, que é um nervoso, é quem quer! Elas não fazem nada demais! e é tão rápido que mal se vê! O galo é quem fica procurando amar uma e não consegue!
Um dia a família resolveu levar a menina para passar o dia na casa de um parente, bem longe de casa. E quando voltou, já não existia aquela que em vida fora Petronilha. Sua tia informou:
- Nós comemos Petronilha.
A menina era uma criatura de grande capacidade de amar: uma galinha não corresponde ao amor que se lhe dá e no entanto a menina continuava a amá-la sem esperar reciprocidade. Quando soube o que acontecera com Petronilha passou a odiar todo o mundo da casa, menos sua mãe que não gostava de comer galinha e os empregados que comeram carne de vaca ou de boi. O seu pai, então, ela mal conseguiu olhar: era ele quem mais gostava de comer galinha. Sua mãe percebeu tudo e explicou-lhe:
- Quando a gente come bichos, os bichos ficam mais parecidos com a gente, estando assim dentro de nós. Daqui de casa só nós duas é que não temos Petronilha dentro de nós. É uma pena.
Pedrina, secretamente a preferida da menina, morreu de morte morrida mesmo, pois sempre fora um ente frágil. A menina, ao ver Pedrina tremendo num quintal ardente de sol, embrulhou-a num pano escuro e depois de bem embrulhadinha botou-a em cima daqueles grandes fogões de tijolos das fazendas das minas-gerais. Todos lhe avisaram que estava apressando a morte de Pedrina, mas a menina era obstinada e pôs mesmo Pedrina toda enrolada em cima dos tijolos quentes. Quando na manhã do dia seguinte Pedrina amanheceu dura de tão morta, a menina só então, entre lágrimas intermináveis, se convenceu de que apressara a morte do ser querido.
Um pouco maiorzinha, a menina teve uma galinha chamada Eponina.
O amor por Eponina: dessa vez era um amor mais realista e não romântico; era o amor de quem já sofreu por amor. E quando chegou a vez de Eponina ser comida, a menina não apenas soube como achou que era o destino fatal de quem nascia galinha. As galinhas pareciam ter uma pré-ciência do próprio destino e não aprendiam a amar os donos nem o galo. Uma galinha é sozinha no mundo.
Mas a menina não esquecera o que sua mãe dissera a respeito de comer bichos amados: comeu Eponina mais do que todo o resto da família, comeu sem fome, mas com um prazer quase físico porque sabia agora que assim Eponina se incorporaria nela e se tornaria mais sua do que em vida. Tinham feito Eponina ao molho pardo. De modo que a menina, num ritual pagão que lhe foi transmitido de corpo a corpo através dos séculos, comeu-lhe a carne e bebeu-lhe o sangue. Nessa refeição tinha ciúmes de quem também comia Eponina. A menina era um ser feito para amar até que se tornou moça e havia os homens.

Clarice Lispector

Felicidade clandestina