Anthony Hopkins Foto de James Mollison |
A desconhecida vida de Anthony Hopkins, o vencedor do Oscar 2021 que aprendeu a ser feliz aos 75
Artista britânico, gigante da interpretação e literalmente um lorde, se tornou neste domingo o mais idoso a receber prêmio na categoria principal. Foi o corolário perfeito para uma carreira cheia de marcos, fracassos e de uma vida pessoal atormentada
Juan Sanguino
25 abril 2021
Quando em dezembro passado Anthony Hopkins (Port Talbot, País de Gales, 1937) comemorou em um vídeo do Twitter os seus 45 anos sem beber álcool, a revelação surpreendeu os seus seguidores. Sua imagem pública é a de um ator de máximo prestígio no teatro e no cinema, gentil cavalheiro do Império Britânico e, de uns anos para cá, o velhinho favorito da internet. A verdade é que Hopkins, que aos 83 anos bateu o recorde de idade como vencedor da categoria de melhor ator do Oscar por Meu pai, narrou em várias ocasiões a sua luta contra o alcoolismo, a depressão e os ataques de ira. E o remorso por ter abandonado uma filha recém-nascida. E seu ódio a Shakespeare e a tudo que é britânico. Senhoras e senhores, com vocês: o outro Anthony Hopkins.
“Lembro o primeiro dia de aula com aquele cheiro de leite estragado, canudinhos e casacos úmidos. Sentei lá, totalmente petrificado, e aquele sentimento permaneceu comigo durante toda a minha infância e adolescência”, contou à revista Playboy, sobre suas primeiras lembranças em Port Talbot, a localidade siderúrgica do sul de Gales onde cresceu. Os professores, os colegas e seus pais lhe repetiam que era tonto demais para qualquer trabalho. Nunca teve nenhum amigo e passava as tardes desenhando ou tocando piano. Às vezes não ia nem à própria festa de aniversário. “Eu me sentia o mais idiota da classe, talvez tivesse problemas de aprendizagem, mas o fato é que eu não conseguia entender nada. Minha infância foi inútil e inteiramente confusa. Todo mundo me ridicularizava”, revelou ao The New York Times.
Em 1968, deixou a primeira mulher, com quem tinha um bebê de quatro meses, porque percebeu que era “egoísta demais” para criar uma família. A um jornalista do The Guardian, há três anos, afirmou vir “de uma geração na qual os homens eram homens. E a parte negativa disso é que não nos damos bem com receber amor ou dá-lo. Não entendemos”. Apesar de uma tentativa de aproximação nos anos noventa, Hopkins nunca teve relação com sua filha, e hoje não sabe nem sequer se tem netos.
Durante os anos setenta, ganhou certa fama de “ator temperamental”. Sofria ataques de ira durante as filmagens, chegava a sair no braço com os diretores, ou sumia sem dar explicações. Anos depois, ele mesmo admitiria que, como não queria beber durante a jornada de trabalho, sua agressividade aflorava porque sempre estava de ressaca. Em 29 de dezembro de 1975, amanheceu num motel de Phoenix sem ter a menor ideia de como tinha chegado lá. Nunca mais voltou a beber. “Admiti que tinha medo, o que me deu uma liberdade maravilhosa. Eu me sentia inseguro, paranoico, aterrorizado. Temia não servir para nada, que não me encaixava em nenhum lugar”, confessou à The New Yorker no mês passado.
Tentou apaziguar seu caráter mediante a sobriedade, mas seus demônios continuavam por trás dele. Às vezes, entrava no seu carro e dirigia durante semanas; outras vezes passava dias sem dirigir a palavra a ninguém. Em 1981, quando já tinha ganhado dois Emmys, seu pai morreu. Nas últimas horas dele, Anthony aproveitou para lhe dizer que o amava (era a primeira vez que dizia isso a alguém na vida), mas só se atreveu a beijá-lo depois de morto. “Ao recolher seus pertences, encontrei um mapa dos Estados Unidos. Sempre quis ir lá. Morreu sem ir”, lamentaria Hopkins. O médico lhe informou que o coração do homem tinha se inchado por causa de anos e anos de esforço. “Quando penso em como meus pais se escravizaram a vida toda numa padaria para ganhar uma miséria... para mim foi tudo fácil demais. Tenho vergonha de ser ator. Deveria estar fazendo outra coisa. Atuar é uma arte de terceira. Pagam-nos muito e dão muita trela para nós. Gosto da atenção e do dinheiro, mas me sinto como um vigarista”, lamentou-se no The Guardian.
Apesar do sucesso de Magic, O Homem elefante e Rebelião em alto-mar, sua carreira em Hollywood não decolava, e teve que voltar a Londres. “Essa parte de minha vida acabou, é um capítulo encerrado. Suponho que terei que me conformar em ser um ator respeitável no teatro e fazer trabalhos respeitáveis na BBC durante o resto da minha vida”, declarou na época. Uma tarde foi ao cinema ver Mississippi em chamas e sentiu inveja, raiva e frustração por não ter uma carreira como a de Gene Hackman. Dias depois, seu agente norte-americano ligou para ele: Hackman tinha recusado o papel de Hannibal Lecter, e ele era a segunda opção.
Bastaram a Hopkins 17 minutos em O silêncio dos inocentes para entrar para a história do cinema. Aquele triunfo lhe trouxe um Oscar, um título de sir e a percepção coletiva de ser o que o grande público chama de “um senhor ator”. Mas seu maior triunfo foi pessoal. “Queria curar minha ferida interna, queria vingança. Queria dançar sobre as tumbas de todos os que me fizeram infeliz. Queria ser rico e famoso. E consegui”, gabava-se na época na Vanity Fair.
Durante os anos noventa, Hopkins era o ator mais prestigioso do mundo. Interpretou personagens históricos que, a priori, não seriam seus (Nixon, Picasso), contribuiu com distinção para o “cinema de porcelana” (Retorno a Howard’s End, Terra das sombras, Vestígios do dia), e sua definição do trabalho do ator entrou para o folclore de Hollywood: “Seja pontual, aprenda os diálogos e tenha certeza de que seu agente recebeu o cheque”. O público assumiu que Hopkins era um senhor sensível e retraído como os personagens que interpretava, mas ele corrigia essa percepção: “Posso ser um tirano. Sem escrúpulos. Eu quero o que quero. Sou muito, muito egoísta. Algo me atormenta, não sei o que é, mas me provoca muita inquietação”, confessava em 1996. “Fui num psicólogo e acabei chorando na primeira sessão. Senti tanta vergonha. Ensinaram para mim que os homens não choram”. Não voltou mais à terapia.
Em 1993 Hopkins teve uma aventura com uma ex-namorada de Sylvester Stallone que conheceu nos Alcoólicos Anônimos, e sua esposa se mudou para Londres. “Jenni não entende. Adoro estar em Los Angeles. É a terra do Mickey Mouse! Tem tanto dinheiro. Mais de que você poderia sonhar. Ela acha que parece uma cidade de brinquedo, com um entusiasmo e efusão excessivos. Pois a mim é isso que me maravilha”, contava o ator. Seu novo status como estrela, ao menos, lhe permitia conseguir o que queria sem precisar gritar nem encarar ninguém. “Agora basta pedir amavelmente ao produtor”, sugeria.
Durante as entrevistas promocionais de No Limite, um thriller coprotagonizado por Alec Baldwin e um urso, quando era perguntado sobre o arco do seu personagem, Hopkins respondia: “Não tenho a mínima ideia do que você está falando”. Quando lhe perguntavam o que o atraíra a determinado projeto, costumava responder: “O dinheiro”. Era como queria desmontar a imagem que o público criou dele. O lorde britânico com boas maneiras de repente enfrentava seus compatriotas (“Se amam tanto esse lugar sujo, chuvoso e cheio de merda de cachorro nas calçadas, que fiquem. São um bando de fracos, chorões, chatos, invejosos que só são felizes se estiverem desgraçados. Estão obcecados com que o sucesso não me suba à cabeça, e raivosos porque eu consegui fugir de lá. Que se fodam”).
As eventuais concessões comerciais (A máscara do Zorro, ou uma cena em Missão impossível 2, pelas quais ganhou 26 e 13 milhões de reais, respectivamente) começaram a ser a norma com franquias como O lobisomem, Thor e Transformers. Filmes em cujos roteiros Hopkins anotava a sigla NRA (de “no acting required”, ou “sem necessidade de interpretação”). Durante a rodagem de Transformers, Mark Wahlberg o incentivou a abrir uma conta no Twitter, uma rede social na qual hoje Hopkins parece se divertir mais do que nenhum outro usuário. Seus vídeos cotidianos, a meio caminho entre a crônica de costumes e o dadaísmo, causam tamanha sensação que ele abriu também um canal no TikTok. Lá Hopkins publicou vídeos dançando músicas de Drake, do Fleetwood Mac com seu gato e de Elvis Crespo com sua mulher, a colombiana Stella Arroyave. Ela o convenceu a compartilhar suas composições musicais e seus quadros com o mundo. As críticas dos especialistas, além disso, foram positivas.
Perto de completar 70 anos, começou a sonhar todas as noites com Gales e decidiu visitar sua terra mais frequentemente. Naquela época também dirigiu um filme, Slipstream – Um sonho dentro de um sonho, que satirizava Hollywood. Hopkins confessou que, depois de chegar ao topo, descobriu apenas que “não tinha nada lá em cima”. “Pelo amor de Deus, eu deveria estar em Port Talbot. Ou morto, ou trabalhando na padaria do meu pai”, refletia. O maior alívio em sua maturidade foi um diagnóstico de Asperger leve, uma condição no espectro funcional do autismo que afeta as interações sociais. Essa descoberta, explica, o ajudou a entender melhor a si mesmo e a explicar por que passou a vida toda querendo estar sozinho.
O ator afirma que nunca foi tão feliz como depois de completar 75 anos. Tanto que até arrumou um amigo, que ainda por cima é ator: Ian McKellen, com quem trabalhou no filme O fiel camareiro, da BBC, em 2015. A experiência o estimulou a voltar a Shakespeare, também com a BBC, em Rei Lear. E durante a filmagem finalmente compreendeu por que tanta gente gosta de Shakespeare. Ultimamente sonha com elefantes, como os que viu quando criança com seu avô no clássico de aventuras Elephant boy, de 1937. “Também penso muito em um dia que passei com meu pai na praia”, contou à Interview. “Eu estava chorando porque um doce que ele tinha comprado para mim havia caído na areia. Penso naquele menino medroso, que estava destinado a crescer e virar um idiota na escola. Atrapalhado, solitário, raivoso. E quero dizer a ele: ‘Não se preocupe, garoto, a gente se virou bem’.”Esta reportagem foi atualizada para refletir o resultado do Oscar.