A Editora da Unicamp lança o primeiro título da nova série Clássicos da Literatura Chinesa. Trata-se da coletânea de memórias de Lu Xun, Flores matinais colhidas ao entardecer. Lu Xun é um ícone do modernismo chinês e pioneiro no uso do chinês vernacular, uma forma de chinês escrito que incorpora as variedades linguísticas de todo o país. Trata-se de uma oposição ao chinês clássico, cuja escrita é padronizada e adotada na China imperial até o início do século XX.
Para apresentar um pouco da obra, a Editora da Unicamp entrevistou a tradutora dos textos, Peggy Yu, mestre em linguística aplicada pela Unicamp, e um dos diretores do Instituto Confúcio, Bruno De Conti. A diretora da Editora, Edwiges Morato, também responde sobre a importância da parceria com o Instituto e sobre a coletânea deste clássico da prosa moderna chinesa.
Editora da Unicamp – Qual a ideia ao lançar a série Clássicos da Literatura Chinesa e qual a expectativa para a série?
Edwiges Morato: Com este belo volume de Flores matinais colhidas ao entardecer, de Lu Xun, um clássico da prosa moderna chinesa, a Editora da Unicamp abre uma parceria com o Instituto Confúcio sob a forma de um projeto editorial caracterizado como série, que tem também uma bela e delicada identidade visual. Esta parceria com a Editora da Unicamp é um dos braços culturais de um acordo de cooperação, celebrado em 2014, que abrange várias áreas do conhecimento – a tecnologia, a economia e a cultura.
A série Clássicos da Literatura Chinesa inicia-se com Flores matinais, obra à qual devem se seguir outras publicações, de diferentes autores e gêneros literários. O objetivo é fornecer ao mercado editorial brasileiro, em edição bilíngue, obras clássicas da literatura chinesa. A coletânea constitui-se como um importante instrumento didático para estudantes lusófonos de mandarim, bem como para chineses que estudam a língua portuguesa ou se interessam por ela. Vale também notar que os livros contam com prefácios críticos, que salientam e contextualizam aspectos importantes da história e da cultura da China.
A ideia é que, sendo uma coletânea bilíngue, possamos não apenas estimular a aproximação do Brasil com a língua e a cultura chinesas, como também pavimentar, pela linguagem literária, um caminho de interesse mútuo entre duas culturas. Isso é parte de uma interação envolvente entre dois povos, entre dois países. Estimular o contato qualificado entre distintas experiências humanas, entre distintas formas de vida, é uma das características da cultura do livro e uma das funções principais de uma editora universitária, como a Editora da Unicamp.
Editora da Unicamp: Como foi o processo de tradução de Lu Xun, que é um autor tão proeminente na literatura moderna chinesa? Como tradutora, o que sentiu ao trazer sua coletânea de memórias ao português pela primeira vez?
Peggy Yu: Para responder à pergunta, acredito que posso dividir o processo tradutório em três etapas: compreensão, tradução e apreciação. Hoje, refletindo sobre a trajetória de tradução, imediatamente vem à minha cabeça um ditado chinês com o qual me comparo: “um bezerro que não tem medo do tigre”. Ou seja, eu fui inocente e também destemida ao sugerir a publicação de Flores matinais colhidas ao entardecer e ao traduzir o livro. Recordo-me que a primeira tarefa que me propus a fazer foi ler os dez capítulos que compõem o livro de uma só vez, para me ambientar com o espírito de Lu Xun. Ele envolve sua maneira peculiar de dizer as coisas, seu estilo ímpar de abordar determinados assuntos e seu olhar crítico e cínico para observar o mundo. Com medo de não captar os sentidos implícitos dessa obra de Lu Xun, recorri a estudos bibliográficos. Essa etapa de compreensão me fez refletir sobre a condição do tradutor como bom leitor: aquele que disseca criticamente um texto e mergulha nas ideias abordadas, mais, talvez, do que o próprio autor. Claro, sempre mantive uma distância saudável, para não correr o risco de superinterpretar o texto.
Depois disso, entrei na tradução propriamente dita. Mas a fase anterior não deixou de ser uma tradução, porém, interlingual. Foi um grande desafio traduzir um autor expoente, considerado o “pai da literatura moderna chinesa”, que, naturalmente, porta um valor literário significativo. Confesso que o processo foi bastante desafiador e sofrido, no bom sentido. Sofrido (novamente, no bom sentido), pela dificuldade em transmitir a mensagem crítica de Lu Xun e seu estilo para a língua alvo, no caso, o português. A professora doutora Márcia Schmaltz, grande pesquisadora, tradutora e intérprete do chinês para o português, tem um texto chamado “Lu Xun e a anatomia de um povo”. Nele, falava que “normalizar” o estilo do autor para transpô-lo ao português é um desafio.
Como tradutora, senti que o desafio de decifrar as “intenções” do autor, somado às dificuldades encontradas na tradução, culminaram em responsabilidade. Eu não estava “só” traduzindo as memórias de uma pessoa, mas transmitindo, por meio da tradução, uma crítica social que pode levar o povo brasileiro a entender como a China se transformou no que ela é hoje. Assim, cada escolha e decisão que eu tomava carregava não só o conteúdo textual em si, mas uma pista para acessar uma China que estava entrando na modernidade. Por isso, senti muita responsabilidade!
No fim, o que eu chamei de “apreciação” foi minha leitura como leitora de língua portuguesa. Nessa etapa, li as traduções que fiz tentando sentir os efeitos das palavras – críticas, irônicas e cínicas – que senti ao ler o livro no idioma original. Foi um momento de ajustes da tradução, durante o qual me perguntava: “se você fosse brasileira, você entenderia?”; “captaria a ironia?” etc. Era como se eu ignorasse minha identidade chinesa e questionasse a tradução para poder melhorá-la! E, claro, não posso deixar de agradecer as preparadoras e revisoras que melhoraram muito a tradução!
Editora da Unicamp: Houve capítulos ou trechos cujas traduções foram mais desafiadoras? Quais e por quê?
Peggy Yu: Sim! Principalmente, quando a narrativa trouxe expressões culturalmente carregadas ou que fizeram alusões muito específicas à cultura chinesa. Esses desafios foram mais evidentes nos capítulos 4 e 5, respectivamente, “A procissão dos cinco deuses temerosos” e “Wuchang ou A-vida-é-impermanente”, porque, nesses capítulos, Lu Xun aborda cenários que são tipicamente chineses, com descrições culturalmente carregadas. No capítulo 4, por exemplo, o autor descreve, a partir do seu olhar quando era bem jovem, os deuses da procissão folclórica chinesa, que envolve deuses de rostos coloridos, o Rei Dragão, que fazia chover, os “monstros” do mar, a Virgem Mei, entre outras figuras. As imagens escritas são numerosas e vívidas.
Fiquei conjecturando, durante a tradução, se o povo brasileiro, acostumado com o catolicismo, que é monoteísta, entenderia o entusiasmo de Lu Xun criança diante da procissão dos deuses. E também, não posso deixar de comentar o fato de o pai do menino Lu Xun ter pedido ao filho para “memorizar” e “recitar” um texto clássico se quisesse ir à procissão. Acredito que não faça parte da educação brasileira pedir para crianças “decorarem” os textos clássicos (ou estou enganada?), e, por isso, durante o processo tradutório desse capítulo, tomei especial atenção para que a narrativa não ficasse “sem pé nem cabeça”.
O capítulo 5, também envolve seres fantásticos tipicamente chineses, como Rei dos Mortos, os rostos pintados, os Cabeça-de-boi, etc. Inicialmente, quis associar a imagem do protagonista, Wuchang – A-vida-é-impermanente –, à do Ceifador ou da Morte. Mas logo desisti, porque ia ser uma tradução domesticadora demais. Tanto no caso acima quanto no anterior, tive que decidir se transcreveria foneticamente o nome dessas criaturas fantasmagóricas ou se traduziria literalmente os termos. No fim, decidi fazer a tradução literal, para o texto em português não perder a fluência.
Outras dificuldades, além desses desafios advindos de diferenças culturais, eram os jogos de palavras e as ironias usados pelo autor. Há jogos de palavras no texto original que advém do fato de a língua chinesa ser tonal e apresentar termos homófonos com significados diferentes. Em casos assim, não consegui escapar da nota de rodapé, como com o termo “yangguizi”, no capítulo 7, “A doença do meu pai”.
Por fim, não posso deixar de falar sobre a dificuldade em traduzir trechos que eram respostas aos ataques que Lu Xun sofria na época de seus colegas literatos. Certa capacidade de intertextualidade foi necessária para primeiro compreender e identificar trechos que eram “respostas” e reescrevê-los de forma que não ficassem muito deslocados do contexto da narrativa. Lógico que em alguns casos, as notas de rodapé eram recorridas para explicar o contexto, um recurso que também existe na versão em chinês.
Editora da Unicamp: Lu Xun foi pioneiro no uso do chinês vernacular, forma escrita que traz as variedades da língua usadas em toda a China à sua literatura. Como você diria que isso influência o estilo narrativo desse autor?
Peggy Yu: Ainda que a linguagem utilizada por Lu Xun seja bastante próxima do chinês moderno, os recursos de linguagens literária e tradicional que usou deixam as narrativas um tanto obscuras em algumas passagens. Por isso, além de seu estilo cínico e irônico, os contos não eram fáceis de ser entendidos sem um olhar apurado e atento. Assim, precisei pesquisar e me apoiar em artigos que discorrem sobre essas narrativas, para não deixar escapar as mensagens nas entrelinhas.
Para transpor essa linguagem muito específica ao português, refleti muito sobre o tipo de registro a que eu deveria recorrer para compor as narrativas traduzidas. Pensei nos textos de Gil Vicente, que introduziu elementos populares na sua escrita. Mas era um português renascentista! O chinês pré-moderno de Lu Xun certamente não era obscuro assim (se é que estou fazendo uma comparação correta).
A reflexão me levou também a pensar no estilo de Machado de Assis, irônico e pessimista. Lembro-me de ter relido alguns contos machadianos para saber se esse tipo de registro cabia na minha tradução. A experiência foi ótima, porque de certa maneira, encontrei algum paralelismo nos estilos dos dois autores. No fim, como diria a professora Schmaltz, “normalizei” esse tipo de linguagem no português, tomando cuidado com a ordem de construção das orações, com o emprego das aspas e com a escolha das palavras – simples, mas não óbvias o suficiente, para que permanecesse certa ironia.
Editora da Unicamp: O livro Flores matinais colhidas ao entardecer é o primeiro da nova série Clássicos da Literatura Chinesa, fruto da parceria entre o Instituto Confúcio e a Editora da Unicamp. Qual o objetivo dessa parceria?
Bruno De Conti: Eu diria que a parceria cumpre três funções importantes. O objetivo principal é contribuir para a redução de uma lacuna na formação da maior parte da população brasileira, que diz respeito a um profundo desconhecimento sobre a cultura chinesa. Essa ideia de traduzir obras clássicas chinesas foi gestada durante uma das visitas de professores da Unicamp à China, organizadas anualmente pelo Instituto Confúcio com o apoio da Diretoria Executiva de Relações Internacionais (DERI) da Unicamp.
Em 2018, nossa comitiva contou com o então reitor da Unicamp, professor doutor Marcelo Knobel. Em meio às atividades que fizemos por lá, o professor Marcelo ficou chocado ao perceber que não conhecíamos nada sobre algumas referências culturais que são fundamentais para os chineses. Diante disso, ele sugeriu a mim e à professora doutora Márcia Abreu que nos acompanhava na comitiva e que, à ocasião, dirigia a Editora da Unicamp – que pensássemos sobre a possibilidade de realizar traduções de clássicos chineses para o português.
Foi a partir daí que as conversas tiveram início e, logo depois, o trabalho começou a ser desenvolvido, com um importante apoio dos funcionários da Editora da Unicamp e do Instituto Confúcio. Em 2021, a professora Edwiges Morato assumiu a direção da Editora e acolheu o projeto da melhor forma possível, não apenas o apoiando, mas institucionalizando essa parceria por meio da criação da série Clássicos da Literatura Chinesa, que temos agora o prazer de lançar. Ou seja, foi um projeto abraçado por muita gente que partilha da percepção de ser necessário conhecermos mais sobre a China e sua cultura no Brasil.
De fato, por razões históricas, mas também políticas e econômicas, sempre tivemos um olhar apurado sobre a produção cultural dos Estados Unidos e da Europa Ocidental, mas com uma negligência tremenda em relação ao restante do mundo. E essa negligência não é fruto do acaso, mas, construída. Pior do que uma mera miopia em relação às áreas mais distantes do globo, trata-se de uma subordinação acrítica à visão do Ocidente, que ao longo da história atribuiu a si mesmo o status de “mundo civilizado”, criador de cultura e de ciência, em oposição ao Oriente exótico – quando não bárbaro. Essa visão preconceituosa em relação ao Oriente em geral, soma-se, no caso da China, a um elemento que gerou (e gera) turbulências nesse contato intercultural: o fato de ser uma nação que passou por uma revolução socialista e que, até hoje, define-se como um país socialista. Isso, infelizmente, contribui para que, por uma postura maniqueísta – também característica do Ocidente – sejam reforçados os estereótipos em torno da China.
O resultado é um desconhecimento tremendo em relação à China e à cultura chinesa. Em todos os âmbitos. Não sabemos quase nada sobre música chinesa, cinema chinês, artes plásticas e literatura chinesa. Aprendi com meu amigo Antonio Florentino Neto, grande especialista da cultura e do pensamento tradicional chinês, que o mundo ocidental simplesmente rejeitou que o pensamento chinês pudesse ser enquadrado como filosófico. Vejam aonde chegam os preconceitos! Para contornar esse problema, criaram a categoria da “sinologia”, colocando lá o que não queriam rotular como uma filosofia chinesa.
Felizmente, há um movimento que procura enfrentar essa cegueira cultural, não apenas em relação à China, mas a países e povos do chamado “Sul global” – que inclui, e de forma muito importante, os nossos próprios povos nativos da América. Assim, nesse diálogo entre Reitoria, Editora da Unicamp e Instituto Confúcio, percebemos a pertinência de oferecer uma singela contribuição a esse processo, apresentando ao público brasileiro – ou lusófono – a tradução de obras clássicas da literatura chinesa. Então, o primeiro objetivo da série é esse: dar ao público brasileiro acesso a obras importantes da literatura chinesa. De forma associada, há um segundo objetivo, também muito importante. Sobretudo em função da ascensão da China como grande potência global econômica e política, cresce o interesse da população brasileira em estudar mandarim.
Aqui, no Instituto Confúcio da Unicamp, temos alunos de ensino médio (Cotuca e Cotil) e de graduação e pós-graduação dos mais distintos cursos (letras, economia, engenharias, medicina, etc.), além de professores estudando mandarim. E a série que estamos lançando publica livros bilíngues, com os textos originais, em mandarim, e suas versões em português. Trata-se, assim, de um instrumento didático extremamente útil para os alunos de mandarim da Unicamp e do Brasil todo.
Reciprocamente, o material poderá ser usado pelos estudantes de português lá na China. Na universidade parceira no Instituto Confúcio, a Beijing Jiaotong (BJTU), há cursos de português e algumas edições de cada livro que for lançado serão enviadas a eles. Temos também um contato próximo com a Universidade de Macau, já que, nessa ex-colônia portuguesa, cada vez menos as famílias têm usado o português no dia-a-dia, e, por isso há políticas públicas para o resgate do estudo do português, até mesmo para que a região seja usada como entreposto de comunicação das relações entre China e Brasil, além de todo o mundo lusófono. Dessa maneira, a série que estamos lançando será lida pelos interessados na literatura chinesa, mas será também um instrumento didático muito importante para alunos de mandarim ou português de diversas partes do globo.
Por fim, os livros que estamos publicando terão sempre um prefácio acadêmico, contextualizando a obra. Em Flores matinais colhidas ao entardecer, por exemplo, o Prefácio é de Fan Xing, da Universidade de Pequim, grande conhecedora das literaturas chinesa e brasileira. Em seu interessante texto, elaborado especialmente para nossa edição, ela apresenta Lu Xun ao público brasileiro por meio de referências a Graciliano Ramos. Assim, o terceiro objetivo da série é fornecer um rico material bibliográfico para pesquisas acadêmicas sobre literatura chinesa ou sobre os autores e as obras que estamos traduzindo.
Editora da Unicamp: Por que a coletânea de memórias de Lu Xun foi escolhida como a primeira obra a integrar a série?
Bruno De Conti: A escolha foi feita a partir de um diálogo entre a Editora da Unicamp, o Instituto Confúcio e a Peggy Yu, grande conhecedora da língua e da cultura chinesas, que fez o belo trabalho de tradução da obra. Nosso intuito era escolher um(a) autor(a) clássico(a) da literatura chinesa, mas pouco conhecido(a) no Brasil – justamente para dar ao público brasileiro a oportunidade de conhecê-lo(a). Há alguns anos, em uma visita de trabalho a Xangai – onde Lu Xun passou parte da vida –, li referências sobre o escritor, que indicavam-no como um dos autores de maior importância para a literatura chinesa moderna.
Não sou um especialista em literatura – longe disso! –, mas ler é um dos meus maiores prazeres. Assim, fiquei atônito por ainda não conhecer Lu Xun e, ao mesmo tempo, muito curioso para ler seus livros. Lá mesmo, comprei um deles, em inglês, e gostei muito, sobretudo do seu olhar crítico – e de uma divertida ironia – sobre a sociedade chinesa de seu tempo (as primeiras décadas do século XX). Quando estávamos discutindo sobre a obra a ser traduzida, sugeri, portanto, o Lu Xun. Aí, fizemos uma pesquisa para ver os títulos já traduzidos e foi a Peggy quem sugeriu Flores matinais colhidas ao entardecer, ainda sem tradução para português – nem aqui, nem em Portugal. Acolhemos de imediato a sugestão e ficamos todos muito felizes com o resultado.
Editora da Unicamp: Especialmente em tempos em que a diplomacia entre o Brasil e a China é comprometida pelos comentários irresponsáveis e grosseiros do ex-ministro Abraham Weintraub, de Eduardo Bolsonaro e do próprio presidente Bolsonaro, como a troca cultural entre nossos países pode reforçar a relação amistosa entre os povos chinês e brasileiro?
Bruno De Conti: Eu diria que essa troca cultural é absolutamente crucial para reduzir os efeitos negativos de atitudes tão deploráveis quanto as dessas figuras que, lamentavelmente, alcançaram uma posição de importância no cenário nacional – o que facilita que essas barbaridades ecoem. Há um conceito formulado pelo sociólogo italiano Pietro Basso que se aplica como uma luva ao que estamos hoje verificando no Brasil, que é o de “racismo de Estado”. Um racismo construído por cima e que, infelizmente, tem consequências pesadas para os chineses que vivem no Brasil e para as relações entre os dois países.
Em relação a esses sujeitos que você mencionou na pergunta, não vejo solução, pois suas declarações são fruto de ignorância, mas não só. São também fruto de má fé. De uma estratégia de governo. O atual governo tenta manter popularidade por meio de um conjunto de atitudes nefastas, dentre as quais, essa de difundir o racismo no país. Mas, em relação à grande maioria da população brasileira, tenho convicção de que um maior conhecimento da China e da cultura chinesa pode ajudar muito na redução dos mal-entendidos; na consolidação dessa relação amistosa à qual você faz referência.
Não tenho a menor dúvida de que o diálogo intercultural aproxima os povos. A globalização traz um conjunto de problemas para o mundo, sobretudo para os países periféricos, como o Brasil. Mas é inegável que há também aspectos positivos. E um dos principais é justamente a possibilidade que hoje temos – mais do que em qualquer outro momento da história – de conhecer outras culturas e de aprender com elas. Infelizmente, as relações de poder, que discuti há pouco, criam obstáculos a esse processo, mas é justamente contra esses obstáculos que devemos lutar.
A China tem uma cultura milenar. Como o Brasil, é um país continental e muito diverso dos pontos de vista étnico, religioso e, claro, cultural. Tem, portanto, expressões culturais e artísticas das mais variadas. E belíssimas! No contato com a cultura chinesa, é evidente que cada um de nós terá suas preferências, pode ser que alguns não gostem de uma coisa ou de outra, como acontece com as manifestações culturais de qualquer outro país. Mas é preciso conhecê-las. Não é possível que, em pleno século XXI e com todas as facilidades tecnológicas que nos rodeiam, que ainda sejamos reféns de um macarthismo da pior espécie; de um obscurantismo construído. É preciso lutar contra essa hierarquia das culturas.
Voltando agora à pergunta, vejo que o povo brasileiro tem muito interesse na cultura chinesa. E tenho convicção de que um conhecimento maior dessa cultura – conjugada, claro, com um conhecimento maior da cultura brasileira pelos chineses – fortalecerá a amizade entre os povos. Para não gerar nenhum mal-entendido, é preciso apenas destacar que essa relação amistosa entre brasileiros e chineses tende a ser a regra. As atitudes execráveis de membros do atual governo é que são a exceção. Mas, justamente, um conhecimento maior da cultura chinesa e do povo chinês por parte da população brasileira a tornará mais imune às tentativas do atual governo de criar essa cisma entre os povos.
JOURNAL DA UNICAMP