Margaret Atwood David Levine |
Margaret Atwood: “As utopias voltarão porque precisamos imaginar como salvar o mundo”
A escritora canadense, autora da trilogia ‘MaddAddam’ e ‘O conto de Aia’, reflete sobre as reações que vêm após as conquistas sociais e sobre seu talento para a biologia
Ela diz que cresceu no norte do Canadá, onde as mulheres nunca foram concebidas como um enfeite. “Quando eu precisava de um pouco de lenha, saía e cortava com meu próprio machado”, conta. Hoje, revela que possui uma motosserra. Não se pode entender sua literatura, afirma Margaret Atwood (Ottawa, 81 anos), sem essa igualitária ― e ao mesmo tempo alienante ― visão do mundo. Porque ela olhava ao redor e não era isso que via. A obra de um escritor, dizia Ray Bradbury, é feita daquilo que ele teme quando apaga a luz de noite. E o que Atwood teme é o que acontece quando alguém assume o comando e decide que as coisas serão melhores se forem feitas à sua maneira.
Digamos que alguém decide que o planeta estará melhor sem o ser humano e provoca uma pandemia que acaba com 99% da população mundial, como acontece em sua obra recentemente resgatada Oryx e Crake (Rocco), ponto de partida de uma trilogia que neste outono boreal será finalmente concluída em espanhol.
Sente-se uma visionária? “Oh, não, não acredito que esta pandemia tenha sido intencional. Mas nunca se sabe, a vida sempre nos dá surpresas”, responde, com humor.
Atwood está em sua casa em Toronto. Lembrou-se milagrosamente da videochamada quando arrancava ervas daninhas no jardim. Está agora em um quarto repleto de livros e marcos emoldurando o que parecem ser pequenos quadros e fotografias. Ajeita o cabelo branco rebelde e lembra que “talvez não tenha dado a atenção que devia [a essas obras] porque era uma adolescente, e as adolescentes só pensam no que vão fazer na noite de sábado. Mas é certo que meus pais eram cientistas, biólogos, e que se reuniam em casa com amigos e falavam de como tudo acabaria mal se continuássemos assim, mas também de descobertas de todo tipo”. “Oh, e eu deveria ter sido bióloga. Meu irmão nunca me perdoará. Eu era melhor em biologia do que em inglês. Tinha um monte de erros de ortografia. Ele também queria ser escritor, mas acabou sendo biólogo. Lê meus livros como um professor leria uma prova. Tenho que ser rigorosíssima!”, diz.
Isso ajuda a explicar por que a trilogia MaddAddam, iniciada por Oryx e Crake, tenha antecipado, por exemplo, os coelhos fluorescentes inventados em 2013 e que aparecem uma década antes no romance, que retrata de forma certeira a velocidade do mundo de hoje e a exploração sem escrúpulos do meio ambiente ― a ponto de animais serem criados para que simplesmente contenham órgãos humanos sobressalentes. Isto sem falar de um retorno a uma espécie de Idade Média, uma desigualdade social que transforma os proprietários de grandes corporações em senhores feudais, cujos complexos são rodeados de vilarejos onde os camponeses desse futuro vivem em más condições até que esse futuro também se acaba. “Crake acredita que o mundo está melhor sem nós e nos substitui pelos crakers, seres que nem sequer precisam da agricultura porque comem folhas, que não sentem inveja, mas que não podem evitar querer saber de onde vêm”, conta.
Aqui está um dos eixos da narrativa de Atwood: a criação do mito. Suas primeiras coleções de poemas, diz, foram dedicadas a “reexaminar mitos e contos de fadas”, algo que continua fazendo ― O Conto da Aia (Rocco) não deixa de ser a criação de um mito, um passado inconcebível do ponto de vista de uma sala de conferências do futuro ― e que MaddAddam completa no terceiro volume, chamado justamente de MaddAddam, inédito em espanhol e português, expondo de que forma é constituída a verdade histórica após mostrar a realidade nos dois títulos anteriores, Oryx e Crake e The Year of The Flood. “A única razão pela qual vou ao futuro para contar minhas histórias é que não quero ter que ir embora do planeta Terra, e é no futuro que posso controlar todo o relato, sempre que seja coerente e plausível”, afirma. Na adolescência, ela lia as distopias de George Orwell e Aldous Huxley e se perguntava por que não havia mulheres escrevendo-as.
“Claro que toda distopia fala do presente. Orwell falava de 1948 e Huxley falava dele mesmo chegando a Hollywood nos anos trinta, após passar pela Grande Depressão e ao se deparar com o sexo livre e as comidas exóticas. No século XIX foram escritas milhares de utopias. É lógico. Houve tantas melhorias materiais, tantas invenções, que só podiam imaginar um mundo melhor. O XX foi um século de distopias porque foi um século de guerras e totalitarismos. Ficou claro que essa ideia da sociedade perfeita implicava um massacre. Você tinha que matar todos os que discordassem de você para instaurar sua utopia. Toda distopia contém uma utopia e vice-versa”, explica. E, apesar de tudo, acredita que neste século XXI “as utopias voltarão”. Por quê? “Teremos que descobrir como nos organizar para que o planeta permaneça habitável. As utopias voltarão porque precisamos imaginar como salvar o mundo”, responde.
Os romancistas não são pensadores, ressalta, embora possam encenar o mundo, “como um diretor de cinema”. Desenhar um mapa. “É preciso ter cuidado, sempre que falamos do futuro, porque sempre podem acabar acreditando na história. O que aconteceu com a utopia de Vril, o poder da raça futura?, do romancista inglês Edward Bulwer-Lytton? Até Hitler acreditou nela ― e mandou uma equipe de exploradores à Noruega para procurar a caverna da qual Bulwer-Lytton falava, onde se escondia uma perfeita sociedade do futuro”, afirma. O mesmo ocorreu com O Conta da Aia. “Alguns começaram a se perguntar como implementar essa loucura. Por isso, é preciso ser cuidadoso. E considerar que o que para você é uma distopia pode ser uma utopia para outras pessoas”, acrescenta. E não esquecer. Como não foi esquecido nos anos cinquenta, “quando foi feito um esforço unitário, que incluiu princesas da Disney, para levar a mulher de volta ao lar, pois não pertencia àquele lugar”, diz.
Existe nesta quarta onda do feminismo mais esperança que nas anteriores? “Tudo está em processo. Quando você empurra, sente a resistência do outro. A eleição de Obama foi um impulso; a de Trump, uma reação contrária. Sempre que há uma mudança de paradigma, há quem deseje que as coisas voltem a ser como antes. Você sempre pode esperar conseguir melhorias, e, se houver uma reação contrária, aguentar até onde havia chegado, manter o terreno e inclusive voltar a pressionar para conseguir o que tinha, como ocorreu nos anos cinquenta”, responde. Hoje em dia, em qualquer caso, diz ela, “não se trata somente da igualdade de gênero. Trata-se também da desigualdade na riqueza, que atingiu proporções inéditas desde o antigo regime francês, desde Henrique VIII e, claro, da mudança climática, algo que teremos que resolver se quisermos continuar sendo uma espécie deste planeta.”
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