sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

A filha de Woody Allen rompe o silêncio e acusa o pai de abusos sexuais


A filha de Woody Allen rompe o silêncio 

e acusa o pai de abusos sexuais

Dylan Farrow relata pela primeira vez, em uma carta dentro de um blog do jornal 'The New York Times', o abuso sofrido quando tinha sete anos



Woody Allen, no último mês de agosto em Paris. / THOMAS SAMSON (AFP)
Dylan Farrow, filha adotiva de Woody Allen, relata em uma carta publicada dentro de um blog do diário The New York Times os supostos abusos sexuais aos quais foi submetida por seu pai quando tinha sete anos. Esta é a primeira vez que ela, agora com 28 anos, falou publicamente sobre o caso, que veio a tona em 1993 depois da difícil separação entre o cineasta e a atriz Mia Farrow.
A carta de Dylan Farrow detalha um episódio concreto que aconteceu quando ela tinha sete anos e que se repetiria mais para frente. “Ele me disse para ficar de bruços e para brincar com o trem elétrico de meu irmão. Então, abusou de mim sexualmente”, lembra Farrow. “Falava comigo enquanto o fazia”, prossegue ela, com um relato singelo, mas ainda assim muito impactante. “Ele sussurrava que eu era uma boa criança e que este seria nosso segredo, me prometia que iríamos para Paris e que eu seria uma estrela do cinema (...) Até hoje, é muito difícil pra mim ver um trem de brinquedo”.
A carta de Farrow chega após as críticas feitas pelo seu irmão Ronan depois do tributo recebido por Allen na última entrega do Globo de Ouro. Na ocasião, o jovem questionou se alguém que cometia este tipo de abuso devia ser premiado. Dylan Farrow pergunta agora à atriz Cate Blanchett ou ao ator Alec Baldwin o que aconteceria se o abusado fosse um de seus filhos. “E se fosse você, Emma Stone? Ou você, Scarlett Johansson?”, questiona. “Diane Keaton, você me conheceu quando eu era uma criança. Esqueceu?”
Farrow diz que se considera afortunada porque depois de anos de abusos  –que lhe provocaram desordens alimentares e crises em que ela se machucava com cortes –hoje em dia é uma mulher felizmente casada, mas que durante muito tempo foi impossível deixar que algum homem a tocasse. “Eu me escondia para evitar, mas ele sempre me encontrava”, explica sobre os ataques de Allen. “Sempre pensei que isso era o que os pais faziam com suas filhas”, prossegue. “Até o incidente com o trem", confessa. “Então decidi que não podia guardar mais esse segredo”.
A jovem lamenta que seu silêncio tenha permitido que Allen pudesse ter abusado de outras crianças e relata como a sociedade lhe deu as costas em detrimento do homem famoso e respeitado, que colocou em dúvida a versão da mãe, que foi acusada de mentir para prejudicar o cineasta.
Woody Allen nunca foi formalmente acusado pelo caso, que encheu páginas e páginas dos tabloides. O diretor sempre negou as acusações. A carta é publicada dentro do blog do jornalista Nicholas Kristof, que costuma escrever e pesquisar sobre estes abusos e a tratar de pessoas. Kristof diz que Allen tem direito à presunção de inocência, mas que considera que a voz da jovem Farrow devia de ser ouvida depois do debate surgido devido ao Globo de Ouro.
O último filme do diretor de Manhattan , Blue Jasmine, concorre a três prêmios no Oscar, incluindo o de melhor roteiro original, obra de Allen. “Woody Allen é a prova viva da maneira como nossa sociedade falha com os sobreviventes de abusos e ataques sexuais”, afirma sua filha adotiva. Dylan Allen começa (e termina) sua carta perguntando aos leitores: "Qual é seu filme favorito de Woody Allen?”.


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Vargas Llosa / ‘Chiquitos’ e a música



‘Chiquitos’ e a música

O padre José de Arce e o irmão Antonio de Rivas pisaram pela primeira vez nestas selvas no final de 1691. Em vez de armas, traziam instrumentos musicais



Os primeiros jesuítas que chegaram a este longínquo recanto do leste boliviano viram que as moradias dos indígenas tinham portas tão pequenas que batizaram toda a comarca com o nome de Chiquitos (“pequeninos”).
O padre José de Arce e o irmão Antonio de Rivas pisaram pela primeira vez nestas selvas no final de 1691. Em vez de armas, traziam instrumentos musicais; suas experiências no Peru e no Paraguai haviam lhes ensinado que a linguagem das flautas, dos violinos e das cítaras facilitava a comunicação com os nativos do Novo Mundo. Mas aqueles primeiros missionários nunca puderam imaginar a maneira como os povos chiquitanos se apropriariam daqueles instrumentos e da música que acarretavam da Europa, incorporando-os e adaptando-os à sua própria cultura. Ao extremo de que, quatro séculos depois, pode-se dizer que a Chiquitânia (ou Chiquitania: acentua-se das duas maneiras) é uma das regiões mais melômanas do mundo, onde a música barroca continua tão viva e atual como no século XVIII, matizada e colorida de sabor local por comunidades cuja idiossincrasia concilia, de maneira admirável, o tradicional e o moderno, o artístico e o prático, o espanhol e a língua aborígine.
Isso foi para mim o mais surpreendente neste percurso de poucos dias pela vasta região que separa a cidade de Santa Cruz da fronteira brasileira: descobrir que, aqui, diferentemente de outros lugares da América onde floresciam importantes culturas aborígines, os 76 anos de evangelização – até 1767, quando da expulsão dos jesuítas – haviam deixado uma marca muito profunda, que continuava fecundando de maneira visível aquelas comunidades aos quais os antigos missionários ajudaram a se integrar, a se defender das incursões dos bandeirantes paulistas que vinham caçar escravos e a modernizar e enriquecer, com contribuições ocidentais, os seus costumes, suas crenças, sua arte e, sobretudo, sua música.
A partir de 1972 começou a restauração dos templos de Concepción, San Javier, San Ignacio, Santa Ana, Santiago e San José – são os que visitei, mas entendo que há outros –, com seus preciosos retábulos barrocos, seus galhardos campanários, suas talhas, afrescos e enormes colunas de madeira, seus órgãos e seus intrincados púlpitos. O trabalho realizado pelo arquiteto suíço Hans Roth, que dedicaria trinta anos da sua vida a essa tarefa, e seus colaboradores foi extraordinário. As igrejas, belas, simples e elegantes, não são museus, testemunhos de um passado separado para sempre do presente, e sim provas palpáveis de que, na Chiquitânia, aquela antiga história continua vivificando o presente.

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Philip Seymour Hoffman / O maioro de sua geração

Seymour Hoffman como Capote, papel que ganhou o Oscar.


Philip Seymour Hoffman, 

o maior de sua geração

Percurso pela filmografia de um dos melhores atores de sua geração

Um dos homens com mais talento que deu o cinema moderno


    A Philip Seymour Hoffman, como a tantos outros grandes, não gostava de lidar com a imprensa. Podia ser evasivo, rude ou simplesmente seco, mas abaixo de tudo isso se intuía um mal-estar unido à timidez. Seymour Hoffman, o maior ator de sua geração, era desses tipos que não precisava mais do que cinco minutos para montar um forte ao redor de sua personagem: esse Lester Bangs passado de voltas de Quase famosos, o déspota classista de O talentoso de Mr Ripley, o professor tímido de A última noite, o tipo desgastado e frágil de Magnólia ou o magnético líder de O Mestre. Não tinha nenhum parecido entre essas personagens, homens cortados por padrões diferentes que só se encontravam no rosto do ruivo com mais talento tem dado ao cinema moderno.
    Ele será lembrado pelo seu brilhantismo de atuação, mas também por esse particular leque gestual que dava brio a suas personagens: de mãos grandes e corpo curvado, em Nova York atuava de primeira quando seus colegas tinham dificuldades para se sentir cômodos como turistas. Muitos lembram ao tipo de Boogie nights, ao desgraçado deAntes de que o diabo saiba que você está morto ou ao atormentado protagonista de Felicidade, embora seus grandes triunfos comerciais fossem Twister ou Missão: Impossível III, demonstram a sua capacidade de camaleão (embora o substantivo seja pequeno), e sua vocação de eterno equilibrista.
    O ator parecia cansado nas últimas entrevistas que concedeu. Era difícil distinguir o que o fatigava e o que o cansava, mas o aspecto de Seymour Hoffman tinha se convertido em uma das fofocas favoritas em determinados círculos da profissão. Soube-se que em maio de 2013 ingressou em uma clínica para tentar deixar a heroína. Naturalmente, ninguém confirmou nem desmentiu nada. Ao intérprete o incomodava a fama, a ideia de ser uma personagem pública, tanto como as perguntas estúpidas ou as coletivas de imprensa, e jamais deu trela aos que pretendiam converter seu caso em colunas sociais. Sua morte, ao que parece por overdose, une o ator ao triste círculo de grandes artistas que sucumbiram ao lado mais escuro de si mesmos. Em 2014, ele deveria atuar em três filmes e em uma série de televisão, embora sua testamento cinematográfico (esmagador) fique para trás.
    Aos 46 anos, com três filhos pequenos, Seymour Hoffman deixa uma enorme lacuna na história do cinema e a incógnita de até onde chegaria com um pouco mais de paciência e algo de sorte. Aos cinéfilos ficam uma dúzia de obras monumentais e a lembrança de um homem preso a uma tela de cinema, o lugar onde viveu e no qual nunca será esquecido.



    quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

    António Lobo Antunes candidato ao Prémio Nobel da Literatura 2014


    António Lobo Antunes candidato ao Prémio Nobel da Literatura 2014
    Por André Meireles

    Tem António Lobo Antunes possibilidades de alcançar o Prémio Nobel de Literatura? Em  2014, em 2015, em 2016? Não consigo ler António Lobo Antunes - mas não conseguir ler seja quem for ou o que for, considero-o, por princípio, defeito meu - aparte as crónicas, de que gosto, e provavelmente os primeiros romances, que nunca tentei ler, pois comecei pelo meio da sua obra, se considerarmos Manual dos Inquisidores (1996) o meio, e depois de ter deixado Manual dos Inquisidores a meio, fui deixando as suas obras seguintes cada vez mais cedo, até desistir por completo quando cheguei ao Arquipélago da Insónia (2008). É verdade que os títulos ficaram cada vez mais bonitos; mas não menos verdade é serem emprestados. Do resto da obra, a que está antes e depois destas duas, apenas li os títulos. Nas críticas literárias - James Joyce, Virginia Woolf, Tchekov, Deus, e o Diabo - já todos foram convocados para se compararem a Lobo Antunes, e todos saíram derrotados do duelo de titãs, como não podia deixar de ser, pois nem sempre David vence Golias, que acertar-lhe sempre com a pedra no sítio exacto não é questão de pontaria, mas de acaso ou assistência divina - que frequentemente anda distraída noutros afazeres.

    É verdade que a Ladbrokes nunca se esquece de o meter na extensa lista, com certeza para piscar o olho ao dinheiro dos Portugueses, povo que é mais dado a futebol, fado, e fátima, que a Literatura, mas como estas três excelentes razões se resumem numa, fé, é o suficiente para irem apostar em António Lobo Antunes, o que em caso de o Prémio Nóbel da Literatura lhe ser atribuído, até é uma excelente aposta: por cada libra apostada recebem cem. Não é menos verdade que nos últimos anos António Lobo Antunes aparecia muito melhor colocado nesta corrida especulativa ao Nobel, isto é, cada libra apostada rendia menos em caso de ser o galardoado. Mas também não é menos verdade que quando mais apostas houver num suposto candidato, mais o valor oferecido tende a descer, e como os Portugueses andam sem dinheiro, talvez esta seja a razão porque, neste momento, nem na corrida especulativa ao Prémio Nobel da Literatura, António Lobo Antunes, se encontra bem colocado. Não esqueçam, porém, a história de David e Golias, de que falei ali atrás: não é a colocação que interessa, é a pontaria.


    terça-feira, 4 de fevereiro de 2014

    António Lobo Antunes / Ninguém escreve como eu. Nem eu mesmo

    António Lobo Antunes, por André Meireles

    António Lobo Antunes

    “Ninguém escreve como eu. Nem eu mesmo”

    O autor vivo mais importante da língua portuguesa publica na Espanha ‘Sôbolos Rios que Vão’

    É uma transcrição literária, terna e terrível como toda sua obra, da doença que há alguns anos o deixou à beira da morte




    António Lobo Antunes acende um cigarro na sala de sua casa de Lisboa, durante a entrevista. / FRANCISCO SECO
    Lá fora, a tarde em Lisboa é cinzenta e fria, com um feio aguaceiro que parece não se cansar nunca de ameaçar. Dentro, em sua casa de bairro pobre, como ele diz, António Lobo Antunes (Lisboa, 1942), rodeado de livros por todas as partes, de frases de escritores anotadas na parede, fuma sem parar, sorri com frequência, brinca, convida para uma grapa e coloca a cinza, invariavelmente, no maço vazio do Marlboro light. Percebe-se que está contente. Há dois anos, o escritor português, candidato ao Nobel e autor de um punhado de obras-primas pelas quais qualquer romancista mataria —Fado Alexandrino, Esplendor de Portugal, A Ordem Natural das Coisas, Manual dos Inquisidores, Os Cus de Judas...— recebeu este correspondente na pequena mesa do canto onde se senta para trabalhar dia após dia, com o ânimo no chão pelo fato de que, segundo ele, provavelmente não iria terminar mais nenhum livro. Desde então escreveu dois romances ou, como diz com seu sorriso irônico, “duas coisas”. Daí o sorriso de quem não se concebe senão escrevendo. Na Espanha está sendo publicado agora Sôbolos Rios que Vão (No Brasil, publicado pela editora D.Quixote em 2010), em que narra sua passagem pelo hospital em 2007, para ser operado de um câncer que superou. A experiência, isso sim, está descrita da maneira alucinada, intensa e poética deste escritor dono de um universo próprio. Por isso, além de enfermeiras, médicos, aparelhos, comprimidos e um paciente chamado Lobo Antunes à mercê do destino e do tique-taque do relógio da morte, o protagonista soberano é a infância.
    Pergunta. Então o senhor acabou superando a crise criativa.
    Resposta. É que os começos dos livros são terríveis. Recomeçar, recomeçar... às vezes me entretenho a escrever ao modo de Scott Fitzgerald ou Gómez de la Serna ou copio páginas de outros para aprender. Copio, que sei eu, de Balzac. Assim aprendo.
    P. Mas ainda precisa aprender? Ainda não está seguro com sua escrita?

    Talvez um livro não seja mais do que uma eficaz, solitária e longa palavra”
    R. Veja: eu depois dos cânceres já não minto. Eu sei que ninguém escreve como eu. Nem eu mesmo. O desafio é chegar a cada dia mais longe, a cada dia fazer melhor, chegar mais perto. Observe o teatro de Tchekhov: espanta que em poucas frases aparentemente simples, como “tenho frio” ou “finalmente cheguei”, possa transmitir gama tão grande de sentimentos. Tudo à base de trabalho: tenho fotocópias de seus manuscritos, e estão cheiíssimos de correções.
    P. Neste Sôbolos Rios que Vão aparece, a par com a doença e a sombra da morte, a infância. Por que?
    R. Minha intenção era… Bom, não tinha nenhuma intenção, só que não me apetecia falar da morte. Me apetecia falar da vida. Eu não sou crítico nem teórico da literatura, assim, pois, não posso responder bem a essa pergunta. Mas talvez seja por isso. Para mim a infância é a saúde, a vida, a alegria, a esperança... Mas não sei explicá-lo bem. Simplesmente tinha que ser assim. Quando escreves, tens a sensação de que é inevitável que seja assim.
    P. Fala como se os livros já estivessem escritos antes de escrevê-los...


    O autor, com o manuscrito do livro que está terminando. / FRANCISCO SECO
    R. Sim, como estátuas enterradas no jardim que há que desenterrar, e depois limpar e limpar. Talvez um livro seja uma eficaz, solitária e longa palavra
    P. E o senhor? Saiu diferente do hospital?
    R. Continuei sendo o mesmo. Mas há coisas de que de repente comecei a gostar muitíssimo. O sol, por exemplo, um dia de sol, um dia bonito, o fato mesmo de estar aqui, os dois a falar. Estar vivo é um privilégio, um acaso e um privilégio. Embora, sabe o que mais me impressionou do hospital?
    P. O quê?

    O espetáculo da covardia é horrível, te reduz a um ser miserável”
    R. A imensa dignidade das pessoas, dos enfermeiros da unidade de oncologia. Todos eram príncipes. Era um hospital do Estado, por isso havia gente pobre, a se portar com uma dignidade de aristocratas, com coragem, nunca ouvi uma queixa, não ouvi ninguém a rogar ou pedir “salve-me”. As pessoas aguentavam caladas, a sorrir, saudando-te, desejando melhoras, muitas delas com metástase por todas as partes. Sabias que iriam morrer, e morriam sem se queixar, sem medo. Eu vi gente a se borrar) de medo na guerra. E o espetáculo da covardia é horrível. Vi assim um tenente: todos os oficiais lhe davam pontapés e o insultavam, e o tipo não fazia outra coisa a não ser chorar. A covardia, fisicamente é feia. Te reduz a um ser miserável, despojado de toda a dignidade de homem.
    P. O senhor esteve 15 meses na guerra colonial. O que significaram?
    R. Não sei lhe dizer. Talvez o senhor e eu, todos, nasçamos com uma ideia que não nos abandona nunca. Eu não tenho certezas, nem respostas. Só escrevo livros. Eu gostaria que mudassem o mundo, mas não vão mudar nada. Embora talvez sejam uma companhia, um prazer para algumas pessoas. Eu sou apenas um sujeito que escreve livros e espero morrer com a mesma inocência. No fim das contas, somos muito inocentes. Vem um médico, te diz que tu vais te curar, que vais melhorar, e tu acreditas...
    P. Neste livro diz que sua mãe curava tudo com uma aspirina.
    R. Quem me dera estivesse minha mãe com sua aspirina….
    P. Não pensou alguma vez que se acabou, já não escrevo mais?
    R. Mas, como vou pensar isso? Se há tanto por escrever... De qualquer forma, isto ficará em algum momento interrompido. Definitivamente interrompido.
    P. Em Portugal é muito conhecido também por suas crônicas em revistas e jornais...
    R. Isso só faço porque pagam bem. As pessoas gostam porque são como piscinas para crianças. É impossível afogar-se. Os livros, por sua vez, são feitos para que se afoguem. Comecei a fazer essas crômicas com meu amigo José Cardoso Pires, de quem sinto muita saudade.
    P. Sempre fala muito de seus amigos.
    R. A amizade é como o amor: instantânea e absoluta. Conheces alguém e te transformas em seu amigo de infância, mesmo que já tenhas 40 anos. Para mim é o sentimento mais importante.
    P. Mais que o amor?
    R. E que é o amor? O senhor sabe?
    P. Bom, eu sou apenas o que faz as perguntas.
    R. Que conveniente isso. Por que não trocamos?



    segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

    A importância de se chamar Paul Smith


    A importância de se chamar Paul Smith


    O estilista que melhor redefiniu a alfaiataria britânica abre as portas de seu mundo em uma exposição em Londres e percorre os momentos de sua vida: desde a origem humilde até o atual milionário ‘simples’


    Paul Smith, no caos de seu ateliê, um gabinete com curiosidades, onde se amontoam suas peculiares coleções (de coelhos, câmeras 'vintage', velocímetros, robôs...). /JAMES MOONEY / JAMES MOONEY
    Uma figura comprida se eleva entre moldes e operários. Com o cabelo emaranhado, óculos de tartaruga e um sorriso franco, Paul Smith (Nottingham, 1946) distribui instruções para a montagem final da exposição que até 22 de junho lhe dedica oDesign Museum de Londres. O sotaque ligeiramente cockney, que carrega desde os tempos de garoto humilde da província, não consegue disfarçar que estamos diante do homem que deu uma guinada de estilo no guarda-roupa masculino.
    Hoje vende 3,5 milhões de peças de vestuário por ano e fatura 420 milhões de euros. Mas o importante neste exato momento não são os números, mas que cada detalhe de seu mundo fique refletido em um espaço museológico muito restrito para sua longa trajetória. Pouco importa. “Isto não pretende ser uma retrospectiva, mas um convite a se contagiar de criatividade”, diz, efervescente.
    Ele mesmo pega o teu casaco, o coloca em um local protegido e age como guia improvisado. Fala bem de perto, toca o interlocutor todo o tempo e ri abertamente. “Aqui é onde tudo começou.” O pequeno espaço que recebe o visitante recria sua primeira loja em Nottingham. Ele a abriu em 1970, aos 24 anos. Ocupava só 12 metros quadrados. “O gerente era o meu cachorro, Homer.” A foto de um folheto –do jovem Smith dançando com um galgo afegão– comprova. “Meu objetivo é que os jovens, sobretudo, venham e vejam que se pode fazer as coisas com modéstia. Hoje, muitos querem que tudo vá muito depressa: pedem dinheiro emprestado, se vendem a grupos empresariais... Pensam que isto se baseia em fazer muitos contatos e se deixar ver, e não dedicam o tempo necessário a aprender como se constroem as coisas.”
    O próprio Paul Smith, aficcionado por fotografia, tira as fotos de suas campanhas. Aqui, uma de 2013.
    Diz que o simples sempre é mais eficaz do que o artificial. Até o título de sua mostra, Hello, my name is Paul Smith, referenda sua filosofia. Uma pequena piada sobre o duelo imaginário que trava com outro Paul, Klee, a quem a Tate dedica uma retrospectiva a cerca de cem metros dali, nos leva até outra de suas insígnias. O pintor expressionista escreveu: “Descobri o compromisso com a cor em uma viagem a Túnis”. Smith, que se declara alérgico “à arrogância que rodeia muitos artistas”, reconhece, porém, que deve isso a Pauline Denyer, sua mulher e cúmplice há 46 anos. Ela rompeu sua casca. “Era desenhista por formação e um pouco mais velha que eu (seis anos). Tinha estudado História da Arte e pintava. Dotou minhas ideias de sofisticação. Foi quem me ensinou a mesclar as cores de modo eficaz.”
    Hoje, embora ela tenha deixado de atuar como partenaire na sombra em meados dos 80 para se dedicar à pintura, “continua sendo minha mentora”.
    Ele passava pelo criativo. Queria ser ciclista profissional. Abandonou os estudos aos 15 anos, e seu pai, vendedor domiciliar, o colocou como atendente na loja de roupas de um amigo “onde imperava o funcional, o conceito ‘moda’ não existia. Saí da escola numa sexta-feira e já estava trabalhando na segunda. Não tive um só dia livre em minha vida”, gargalha. Em seus momentos livres voava pelas ruas da cidade em bicicleta. Até que seu sonho se desfez. Espatifou-se, com 17 anos, contra um carro. Ainda hoje desponta em seu nariz a cicatriz, orgulhosa. Quebrou também vários ossos. Ficou seis meses no hospital. Ali fez amizade com outros internos que estavam envolvidos na cena artística local. Aos 18 se ofereceu para colaborar com uma amiga em uma butique. Aos 21 conheceu Pauline em um pub. Aos poucos ela foi viver com ele e levou os dois filhos de um casamento anterior (não tiveram filhos próprios). Quando montaram a loja, só abriam às sextas e sábados. No resto do tempo trabalhavam no que aparecia.
    "Eu sou meu melhor anúncio... e sou grátis", diz o estilista
    O estilista recorda que houve momentos em que tudo parecia caminhar para o desastre total. “Quando fomos a Paris vender pela primeira vez a coleção, improvisamos um showroom por quatro dias no quarto de um hotel modesto. E não apareceu ninguém até a última tarde. Pelo menos, o único comprador que apareceu se transformou em um de nossos clientes mais fiéis.” Como lembrança, a exposição recria também esse quarto de hotel, entre um espaço com projeções em tela plana intitulado Inside Paul’s head, que pretende representar seu processo criativo de associação de ideias, e outro que imita seu estúdio londrino.
    Começou com trajes masculinos de tweed tradicional em cores que fugiam da norma. Seu objetivo: fazer “roupa sem classes”. Ele também descreveu seu estilo como “um choque entre Saville Row e Mister Bean”. Possivelmente, essa alergia a intelectualizar e analisar demais o sentido de suas criações – uma síndrome mais difundida do que deveria na moda – seja um dos pilares de seu sucesso. Foi o primeiro a esgrimir, já na arrancada dos 80, o classic with a twist que afasta o bem-vestir do elitismo. A jaqueta azul que usa hoje, que oculta um vistoso forro adamascado, as calças ligeiramente justas que realçam ainda mais seu um metro e noventa, e os sapatos marrons, de amarrar, combinando com um cinto de fivela servem de tradução literal. “Eu sou meu melhor anúncio... E sou grátis”, ri.
    Por mais que se negue a contratar estrelas para suas campanhas ou sentá-las nas primeiras fileiras de seus desfiles, fez alguns bons amigos famosos: Eric Clapton, Daniel Day-Lewis, Colin Firth, Jamie Oliver, Gary Oldman. Até o próprio David Bowie é cliente. Dos que pagam. Também ganhou fãs fieis entre as mulheres (apesar de não ter feito roupa para mulheres até 1994). Patti Smith, a primeira. Conheceram-se em um voo de Barcelona a Paris em 1978: ela o presenteou com uma bolsa bordada com as siglas que os dois compartilham e um boneco dentro. E com frequência toma café com o escritor Hanif Kureishi. “Por mais que me custe, por minha dislexia, tive que ler todos os seus livros, senão me dá bronca.”
    Paul Smith abriu sua primeira loja em 1970, com 24 anos, em sua Nottingham natal. Tinha apenas 12 metros quadrados.
    Vestiram seus trajes tanto Tony Blair como David Cameron. Talvez o dia em que se converteu oficialmente em um emblema nacional tenha sido aquele em que os príncipes Charles e Diana tiraram suas fotos oficiais de noivado em camisas azuis de Paul Smith. Anos depois, em 2000, a própria rainha Elizabeth lembraria disso, quando o nomeou cavaleiro. “Ela me disse: ‘Em boa hora por suas conquistas como exportador’”.
    Seu peculiar sentido de humor foi reforçado ao se instalar em Londres em 1979. Diante da capitalização do punk, oferecia alternativas aos clones de Bryan Ferry e ofertava inesperados objetos contemporâneos (de calculadoras Braun até os primeiros aspiradores de pó Dyson) para completar a experiência de construir um estilo próprio. Hoje fez de suas mais de 350 lojas próprias distribuídas pelo mundo autênticos bazares. Somente no Japão tem 265, É seu principal mercado. Continua cultivando-o desde que viajou para lá em meados dos 80. Apesar de ter vendido 40% de sua empresa ao grupo japonês Itochu (ele mantém os outros 60%), permanece independente. “São sócios passivos, não interferem no processo criativo nem em nada”, esclarece.
    E explica um de seus segredos para não ter dependido de ninguém mais do que de si mesmo: “Reinvestir os rendimentos na própria empresa. Tenho algumas outras obras de arte, uma preciosa casa na Itália (perto de Lucca, na Toscana), outra em Londres, móveis fantásticos... Mas nunca precisei de um jato privado ou um chofer à minha disposição. Às vezes vou trabalhar de bicicleta e dirijo um Mini”. Esses esforços para sepultar o milionário caprichoso se contradizem se recordamos que, quando começou a juntar sua fortuna atuando como consultor para outras empresas, teve vários veículos Porsche 911. “Isso foi meramente funcional”, refuta. “Nessa época ainda vivia em Nottingham e tinha de vir três vezes por semana a Londres. Tive um acidente com meu utilitário e um amigo me ofereceu um Porsche nessa mesma tarde. E eu me viciei. Precisava de um veículo rápido porque, do contrário, essas viagens se tornavam eternas, sabe?”.
    Hoje, sua simplicidade se resume a uma rotina que começa às 5 da manhã. Mergulha na piscina do Royal Automobile Club (ou na do Park Hyatt, se estiver em Tóquio, para onde viaja, no mínimo, duas vezes por ano). Às 6 está no escritório (“com as mulheres da limpeza”) e escuta música a todo volume até as 8 (na manhã de nosso encontro, os Talking Heads, “em vinil”), envolvido em seu caos particular. Ele mesmo recria um dos cantos da exposição, para onde deslocou parte de sua coleção de objetos que inundam seu ateliê, desde o primeiro iMac, presente de Jonathan Ive (vice-presidente executivo de design da Apple), que nunca chegou a ligar porque não usa computadores, até suas câmeras de fotos vintage. Entre elas está sua particular Rosebud, a Rolleiflex que seu pai, fotógrafo amador, comprou em 1958. Com ela captou o filho Smith aos 10 anos voando em uma fotomontagem sobre uma almofada. Não podia imaginar então que essa viagem mágica duraria toda a vida.

















    domingo, 2 de fevereiro de 2014

    José Emilio Pacheco / Crítica da poesia

    Perception
    Alex Berdysheff
    José Emilio Pacheco

    CRÍTICA DA POESIA

    Eis aqui a chuva idêntica e sua irritada maleza.
    O sal, o mar desfeito…
    Apaga-se o anterior, escreve-se depois:
    Este convexo mar, seus migratórios
    e enraizados costumes,
    já serviu alguma vez para fazer mil poemas.

    (A cadela infecta, a sarnosa poesia,
    risível variedade da neurose,
    preço que alguns pagam
    por não saber viver.
    A doce, eterna, luminosa poesia.)

    Talvez não seja tempo agora:
    nossa época
    nos deixou falando sozinhos.




    sábado, 1 de fevereiro de 2014

    José Emilio Pacheco / Na república dos lobos

    Valetina Cruz
    José Emilio Pacheco
    NA REPÚBLICA DOS LOBOS

    Na República dos Lobos
    nos ensinaram a uivar.

    Mas ninguém sabe
    se nosso uivo é ameaça, queixa,
    um tipo de música incompreensível
    para quem não seja lobo;
    um desafio, uma oração, um discurso

    ou um monólogo solipsista.