segunda-feira, 1 de setembro de 2025

Hulda von Levetzow / As irmãs de Juca e Chico

 


Hulda von Levetzow

As irmãs de Juca e Chico


Era um livrinho cruel, dos tempos em que criança nem precisava ser feliz

BIA BRAUNE

Não resta dúvida. Já adulta, abrir "Anna Karenina" e me deparar com "todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira" foi um baque. Uma iluminação.

No entanto, Tolstói, a quem eu pretendo enganar? "Vejam só que lindo perfil tem nossa tia Abigail" será, para sempre, minha primeira e mais perturbadora epifania literária. Ainda mais como foi: numa edição ricamente ilustrada, tendo a imagem de uma mulher horrorosa com uma lagosta pinçada em seu narigão.

Longe de mim posar de leitora "enfant terrible", lacradora de infantis "proibidões". Ando, inclusive, às voltas com um projeto para pirralhos contemporâneos, nos moldes do que é tido como lúdico, educativo e de bom tom. A questão é que, para além de Harry Potter e sua turma, a referência que habita as estantes virtuais da minha memória ainda é "Sinhaninha e Maricota - As Irmãs de Juca e Chico".

Escrito em 1896 pela austríaca Hulda von Levetzow, foi um livro que não resistiu ao tempo. Muito pela incorreção de seu conteúdo, é claro, mas sobretudo pelo tanto que foi lido e relido pelos meus parentes, chegando às minhas mãos de fedelha temporã já em fim de carreira, numa edição de 1956 cuja lombada era pura fita gomada.

Num recorte em voga na época, quando a pedagogia moderna e a psicologia infantil ainda engatinhavam, copiava o estilo do autor Wilhelm Busch, cujos infernais Max e Moritz haviam sido traduzidos como "Juca" e "Chico" por Olavo Bilac. Só que contava, em versos tão fofos quanto cruéis, a história de duas ardilosas irmãs que eram o capiroto, mas de anáguas.

Da tal lagosta malocada num buquê de flores para titia a um totó de madame que saiu voando pelos ares, feito o padre paranaense dos balões, Sinhaninha e Maricota não poupavam ninguém de suas traquinagens. Final feliz, edificante? Não tiveram.

Assim como Juca e Chico, transformados em comida de pato, as garotas Von Levetzow terminam engolidas por uma baleia. Afinal, o importante era expor perversidades mirins e praticar a punição exemplar, assombrando os pequenos com a certeza datada de que, bem, criança nem sequer precisava ser feliz. Manter-se viva era o grande prêmio e olhe lá, engole esse choro.

Moral da história: à moda de Tolstói, talvez meu fascínio por finais trágicos e pela desdita daquelas irmãs se deva ao fato de que eu não passe de uma ex-criança triste, muito à minha maneira. Contudo, se algum leitor encontrar "Sinhaninha e Maricota" num sebo por aí, mesmo que caindo aos pedaços, por favor: cartas para a redação. Eu ficaria muito, muito feliz.


Bia Braune

Jornalista e roteirista, é autora do livro "Almanaque da TV". Escreve para a Rede Globo


FSP 08.07.2025

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