sábado, 6 de julho de 2013

Artur Xexéo / Sobre o Rio

Lectora
Ipanema, Rio de Janeiro, 2013
Foto de Triunfo Arciniegas

Artur Xexéo
SOBRE O RIO

A coluna de quarta-feira passada ainda estava quentinha quando chegou o primeiro e-mail me pichando. “Por que tanta má vontade com a cidade? Será que os problemas relacionados só acontecem aqui?”, cobrava Sheila Soares. Quase ao mesmo tempo, entrou na caixa de e-mails a segunda crítica. “Você cobra demais, suas críticas são severas, ácidas, são críticas destrutivas e não construtivas, parece que você não gosta da cidade”, analisou Rodolfo Diogo Dias. 
Os comentários dos leitores foram provocados pela crônica que criticava o hábito carioca que, diante das mazelas da cidade, só se preocupar com os estragos feitos à imagem da cidade no exterior. Tenho obrigação de revelar que a grande maioria dos e-mails gerados pela coluna foram favoráveis. Veio de gente que compartilhava a mesma opinião. Mas as duas opiniões contrárias me abalaram. Má vontade com o Rio? Crítica destrutiva? Há mais de 20 anos, escrevo, pelo menos duas vezes por semana, uma crônica no jornal. Sempre acreditei que fazia uma coluna carioca, de amor ao Rio. Quase sempre, temo ser bairrista. Quase sempre, tenho medo de ser carioca demais. O que mudou? O que aconteceu que fez com que, mesmo que apenas dois leitores, o que escrevo seja interpretado como desamor à cidade? 
Até agora, tinha dúvidas, mas hoje tenho certeza: o que mais fez mal ao Rio nos últimos tempos foi ter recebido a honraria de sediar as próximas Copa do Mundo e Olimpíadas. Desde que isso foi anunciado, um oba-oba cercou a cidade que, de uma hora para outra, tornou-se o lugar perfeito, a destino-desejo dos turistas do mundo inteiro, a cidade-fetiche do planeta. 
Até há pouco, o Rio parecia ter um único problema: a violência. A gente acreditava que, no dia em que houvesse mais segurança por aqui, as delícias da cidade poderiam ser aproveitadas. As UPPs, criadas com o olho das autoridades nos grandes eventos que se aproximam, não resolveram a questão. Mas é evidente que trouxeram para todos os habitantes do Rio uma sensação de mais segurança. Foi aí que se descobriu ou que se percebeu que as delícias que a gente não aproveitava não eram tão evidentes. O Rio está mais seguro. Mas continua sujo, com serviços abaixo da crítica, com transportes ineficientes, com preços absurdamente caros. A gente só não se dava conta porque a violência encobria tudo. 
Vou destacar só um dos muitos pontos negativos que o Rio agora deixa à mostra: o trânsito. Sou de um tempo em que engarrafamentos, congestionamentos, tráfego intenso não faziam parte das conversas cariocas. Isso era coisa de paulista. Hoje, qual é o dia em que você não se pega queixando-se ou ouvindo queixas do tráfego? Uma cidade de distâncias curtas cada vez aproveita menos essa vantagem e torna complicado o que poderia ser simples. 
Continuo amando o Rio e torço para que sua imagem seja boa. Mas não vou entrar para o cordão do oba-oba que quer transformá-la, sem merecimento, na melhor cidade do mundo. Não é. Está longe de ser. E não há indícios de que esteja sendo feito algo para que ela um dia receba este título


A IMAGEM

O Rio se olha no espelho e não gosta do que vê. Ali, no meio da testa, entre os olhos, estão as rugas de um estádio de futebol novinho, orgulho das autoridades 
que o chamam de “legado do Pan”, que precisa ser interditado por falta de segurança. Uma aplicação de Botox disfarça. Agora, é o pneuzinho na barriga formado pelo BRT, única novidade no transporte público nos últimos anos, vendido como solução para o futuro, que provoca uma morte atrás da outra na Avenida das Américas. Uma lipoaspiração dá um jeito. E as marcas de expressão que surgiram em torno dos lábios, consequência da fragilidade do Elevado do Joá que parece estar se desmontando? Um preenchimento labial resolve por enquanto. Pronto, o Rio já pode sair de casa sem provocar comentários maldosos dos vizinhos. 
Mas, de repente, a cidade sofre um baque que não há cirurgia plástica que resolva. Um casal de turistas é atacado — ele é agredido, ela é estuprada — pelo motorista e por dois amigos seus numa van que os transportaria de Copacabana para a Lapa, percurso corriqueiro de turistas no Rio. E agora? O que os vizinhos vão dizer? A imagem da cidade está manchada, justo no momento em que ela se apronta para receber grandes eventos. 
O Rio é vaidoso, todo mundo sabe. Mesmo assim, é difícil compreender porque, numa situação como esta, preocupa-se tanto com sua imagem. Alguém imagina que a Jornada Mundial da Juventude, a Copa do Mundo, os Jogos Olímpicos serão suspensos porque uma turista foi estuprada no que supostamente era um transporte público carioca? É claro que não. Mas e os turistas? Será que eles não vão evitar vir ao Rio por causa disso? Tomara que sim. Se for para serem estuprados em meio ao caótico transporte público da cidade, é melhor que não venham mesmo. 
Imagens não fazem uma cidade. O Rio insiste em não acreditar nisso. Basta que um episódio de "Os Simpsons" brinque com algumas de suas mazelas para o programa de TV se transformar num incidente diplomático. Há oito anos, o seriado americano “Dexter” destrói a imagem de Miami. Se alguém levar a série a sério, vai acreditar que Miami possui a maior concentração de serial killers por metro quadrado de todo o planeta. Mesmo assim. a turistada, principalmente a brasileira, continua invadindo a cidade. 
O caso da van que abalou a população no último fim de semana é exemplar. Três tarados pegaram emprestado uma vã ilegal e circularam pela cidade em busca de uma vítima. No meio do caminho, antes de encontrarem seu alvo, pegaram outros passageiros. Quando, enfim, o casal de turistas embarcou, despejaram os passageiros extras e atacaram a dupla de turistas. 
Algumas perguntas: como é que uma van ilegal circula impunemente pela cidade? Pelo que se soube depois, não foi a primeira vez. Por que os passageiros que foram obrigados a desembarcar não procuraram a polícia para contar o que estava acontecendo? Por que a polícia não fez nada quando recebeu a queixa de um caso anterior semelhante?

As vans são poderosas no Rio. Não há governador neste estado que consiga administrar em paz sem fazer um tipo de acordo qualquer com seus proprietários. Ela é o exemplo mais evidente da falência de nosso transporte público. Vans ilegais circulam com a mesma desenvoltura das vans que o governo legalizou. É impossível botar um policial dentro de cada van para impedir crimes no interior do veículo. O Rio resolveu impedir a circulação de motoristas embriagados e criou a blitz da Lei Seca. Está dando certo, não está? Será que é muito difícil criar blitz para as vans? Não precisa ser uma ação que se espalhe pela cidade. Mas, se houver blitz-surpresa em ruas de circulação de turistas, já não seria um adianto? Afinal, as vítimas do fim de semana passado não embarcaram num ponto obscuro da cidade, mas na Avenida Atlântica, em Copacabana. Não deveria ser fácil circular como uma van ilegal numa das ruas mais movimentadas do Rio. 
Não é um exercício de imaginação supor que os passageiros que estavam na mesma van dos turistas não procuraram uma delegacia porque “a polícia não vai fazer nada mesmo”. Eles já deveriam estar aborrecidos por ter seu percurso interrompido. Ainda iriam se preocupar em passar a noite numa delegacia, driblando a burocracia e o desinteresse de policiais para fazer uma denúncia? Taí uma imagem com que o Rio deveria se preocupar: a imagem da polícia. 
Talvez essa imagem precise mesmo ser mais bem divulgada. Se há algum ponto positivo nesse caso é a rapidez com que a polícia prendeu os três suspeitos. Menos de 48 horas depois do crime já estavam todos detidos (resta saber por quanto tempo). Mas tudo tem seu contrapeso. Ao mesmo tempo em que os três tarados foram identificados, outra vítima do grupo os reconheceu. E a população ficou sabendo que ela já tinha dado queixa numa Delegacia de Mulheres. Se a polícia tivesse agido naquela ocasião com a mesma desenvoltura com que agiu agora, o crime contra os turistas não teria acontecido. Como se vê, não é por acaso que a imagem da polícia do Rio está desgastada. 
A imagem do Rio e a possibilidade de turistas estrangeiros se sentirem desestimulados a nos conhecer é o menor problema dessa história toda. Quando a cidade se olhar no espelho e vir o que ela realmente é por debaixo das muitas camadas de maquiagem e aplicações de Botox, talvez o Rio descubra como se tornar uma cidade maravilhosa de verdade.





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