sábado, 28 de dezembro de 2013

Guilherme Freitas / Guerras de Canudos



Guerras de Canudos


Seca de três anos reduz nível de açude e traz à tona ruínas da antiga Canudos, onde moradores e pesquisadores lutam para preservar a história local, atrair visitantes e mudar a forma como a cidade é retratada nos livros de História
Por Guilherme Freitas
Em “Os sertões”, Euclides da Cunha descreve a porção norte da Bahia, entre os municípios de Juazeiro e Glória, a mais de 400 quilômetros de Salvador, como “um deserto”. No centro dele está Canudos. O povoado ganhou lugar no imaginário nacional como uma espécie de emblema da resistência do sertanejo a partir de finais do século XIX, quando chegaram ao litoral notícias sobre a comunidade liderada pelo beato Antônio Conselheiro onde milhares de pessoas compartilhavam terra, comida e água, recusavam-se a pagar impostos e repeliam seguidas expedições militares. Arrasada pelo Exército em 1897, foi em parte reerguida na década seguinte por sobreviventes da guerra. Nos anos 1950, começou a ser desocupada para a construção do açude de Cocorobó, no rio Vaza-Barris, concluído em 1969. Os moradores se instalaram em uma área próxima, com vista para o lago que inundou as ruínas da primeira e da segunda Canudos.

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A terceira Canudos é um município de 15 mil habitantes, menos que os 25 mil estimados na época de Conselheiro. A economia local, baseada no cultivo de banana no perímetro irrigado do açude, se apoia em programas federais como o Bolsa Família, que atende 2.769 famílias (mais de 70% da população), e o microcrédito, que só este ano injetou quase R$ 1 milhão na cidade. Hoje Canudos é posta à prova outra vez pelo mesmo “espasmo assombrador da seca” que Euclides observou ali há mais de um século. A estiagem na região, assim como em outras partes do sertão nordestino, já dura três anos, a maior em cinco décadas. Cocorobó está com apenas 13% de sua capacidade total de 246 milhões de metros cúbicos. Com o recuo das águas, as ruínas emergiram pela primeira vez no século XXI, como o lembrete de uma história de resistência.

Mesmo em meio à seca, moradores e pesquisadores trabalham para transformar Canudos. Investem na preservação da memória local para atrair visitantes, gerar empregos e mudar a forma como sua história é vista na própria cidade e no resto do país. Propõem também alternativas para reduzir a dependência do açude e melhorar o aproveitamento da água mesmo fora dos períodos de estiagem.

— Canudos é uma cidade pobre, com muitas necessidades. Precisamos preservar nossa memória e pensar também em outra batalha que se trava no sertão, contra a miséria e a desigualdade — diz o professor Luiz Paulo Neiva, pró-reitor de Planejamento da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e coordenador do Projeto Canudos, voltado para o desenvolvimento local sustentável.

O principal equipamento histórico da região é o Parque Estadual de Canudos, administrado pela Uneb. Criado em 1986, ocupa uma área de 13 quilômetros quadrados correspondente ao cenário da guerra. Há poucos meses, o Parque recebeu a primeira parte de uma intervenção artística que ocupará 14 pontos ligados ao conflito. O Alto da Favela, colina disputada por conselheiristas e militares por sua visão estratégica, ganhou uma reprodução da primeira caricatura de Conselheiro encontrada na imprensa nacional. Um mapa do arraial esboçado por Euclides marca o ponto de onde ele o observou. Em outra parte, há um conjunto de retratos de sobreviventes da guerra por fotógrafos como Pierre Verger e Evandro Teixeira. Mais adiante, detalhes de rostos femininos recortados e ampliados da célebre foto dos 400 prisioneiros conselheiristas feita por Flávio de Barros, autor dos únicos registros visuais da guerra.

Plotadas em grandes painéis transparentes, as imagens se misturam à paisagem, fazendo do Parque uma combinação de reserva ecológica de caatinga, museu a céu aberto da iconografia de Canudos e sítio arqueológico (ainda se encontram trincheiras de pedra e volta e meia o visitante topa com um pedaço de bala). 

— O objetivo das intervenções é estimular a contemplação. Quem chega a Canudos sente o peso da guerra, aquele imenso erro concretizado em um massacre terrível. Mas vê também um lugar de grande beleza, o que aparece nos relatos da época de Euclides e até dos militares — diz o fotógrafo baiano Claude Santos, de 60 anos, idealizador da instalação e autor de diversos trabalhos sobre Canudos, entre eles um guia visual do Parque e o longa-metragem “Vozes”, em fase de conclusão, criado a partir da leitura de relatos da guerra.

Santos esteve pela primeira vez na região em 1964, aos 10 anos, com o pai, o fotógrafo Alfredo Vila-Flor, autor de importantes registros da segunda Canudos às vésperas da inundação. Nos anos 1980, voltou à cidade com os negativos do pai. Estudou os cenários da guerra às margens do açude, mas as ruínas estavam submersas. Só em 1997, depois de uma longa seca fazer sumir parte do lago, pôde voltar a caminhar no terreno do arraial. Na época, colaborou com uma equipe da Uneb em uma operação de salvamento arqueológico. Santos recorda a emoção de ver o cemitério de Canudos ressurgir quase intacto — e a decepção de encontrá-lo depredado poucos dias depois por moradores em busca de ouro.

Hoje pouco restou do cemitério, mas a estiagem permite que se ande em meio a ruínas das duas Canudos. A mais antiga é o pedestal do cruzeiro, que ficava na Praça das Igrejas construída por Conselheiro. A mais imponente é a arcada de uma igreja erguida pelos sobreviventes. Ao lado dela, há um barco de madeira encalhado. Transformada temporariamente no leito seco de um açude, a terra onde primeiro se ouviu a profecia “o sertão virará praia” está coberta de conchas.

Perto das ruínas, uma barraca mantida pela Associação dos Sem Teto de Canudos vende livros sobre o sertão, lembranças da cidade e o CD do sanfoneiro Landinho Pé de Bode, último da região a dominar a arte da sanfona de oito baixos. Os produtos dividem espaço com cartazes de protesto: “Moradia digna, direito de todos — Por que até hoje eu vivo assim? — Avante Canudos — A utopia do Conselheiro”.

Além do Parque e das ruínas, Canudos tem outros pontos de interesse histórico. O Memorial Antônio Conselheiro, na entrada da cidade, tem relíquias arqueológicas (como armas, ossadas e utensílios do arraial), uma exposição de iconografia e outra sobre Euclides, além de uma boa biblioteca sobre o conflito. O Instituto Popular Memorial de Canudos guarda o cruzeiro retirado das ruínas. E há as surpresas pelo caminho. O administrador do Hotel Brasil, Carlos Alberto dos Santos, de 46 anos, neto de uma sobrevivente da guerra, se declara “anticonselheirista” e lamenta que a imagem de Canudos esteja associada a um homem que, diz, “explorou a fé e a fome das pessoas para fazer a revolta dele”. Mas exibe com orgulho aos hóspedes uma bala de canhão que está com a família há três gerações.

Para criar um calendário turístico em torno dessas memórias, o Projeto Canudos da Uneb quer construir, fora do Parque, uma cidade cenográfica reproduzindo o antigo arraial. Luiz Paulo Neiva explica que as instalações funcionariam como centro cultural ao longo do ano e, em outubro (mês que marcou o desfecho do confronto em 1897), receberiam uma representação da guerra. O plano é inspirado na cidade-teatro de Nova Jerusalém, em Pernambuco, onde ocorre anualmente uma das encenações da Paixão de Cristo mais conhecidas do país.

O Projeto Canudos também oferece cursos de formação para monitores turísticos na cidade, com aulas sobre o cenário da guerra, ministradas por Claude Santos, e noções de geologia, arqueologia e literatura. Um dos coordenadores do curso, João Batista de Lima, de 27 anos, criou o site <www.visitecanudos.com> para combater a falta de informação sobre sua cidade natal no resto do país. Muitos guias turísticos recomendam que os interessados em visitar o Parque se hospedem no município vizinho, Euclides da Cunha, a cerca de 80 km, alegando que Canudos não tem asfaltamento nem hotéis. Mas isso já mudou há pelo menos dois anos. Com a melhora da infraestrutura, a frequência tem crescido. Em 2012, o Parque recebeu 8 mil visitantes. Este ano, até o início de dezembro, foram 10 mil.

Batista, que também é vigia do Parque, começou a pesquisar a história de Canudos por conta própria, em 2005, quando ganhou uma bolsa para trabalhar na biblioteca do Memorial. Lendo, descobriu-se descendente da família de Manoelzão, afilhado de Conselheiro e um dos fundadores da segunda Canudos. Ele lamenta que a maioria dos canudenses de sua geração não deem importância às raízes, por desinteresse ou pelo estigma de fanatismo que para muitos ainda cerca a imagem do arraial. E se diz “conselheirista”.

— Canudos para mim foi um movimento de compromisso com o povo. Ser conselheirista hoje é reivindicar seus direitos, cumprindo seus deveres. É lutar para resgatar nossa cultura e dar uma alternativa aos mais jovens — diz Batista, que considera o desemprego o grande problema de Canudos hoje.

Neiva acredita que seria possível gerar mais empregos em Canudos mudando a relação da cidade com o açude. Ele calcula que Cocorobó poderia atender até 22 cidades, mas só atende parte de Canudos: a zona urbana e o perímetro irrigado.

— A água não chega na zona rural. Há uma perda excessiva com a evaporação, que poderia ser aproveitada. O estudo inicial previa irrigar 10 mil hectares, hoje são só 2 mil — calcula Neiva, que defende que o açude seja mais usado também para piscicultura e turismo náutico

Segundo o coordenador do Departamento Nacional de Obras Contra a Seca (Dnocs) na Bahia, Josafá Marinho, não há planos de alteração no açude. O Dnocs promete ações emergenciais para mitigar os efeitos da estiagem em Canudos, como a instalação de 10 poços artesianos já perfurados e 25 ainda por perfurar.

Coordenador do Centro de Estudos Euclides da Cunha (Ceec) da Uneb, o historiador Manoel Neto, que participou da demarcação do Parque nos anos 1980 e do salvamento arqueológico nos anos 1990, lamenta a estagnação da economia local e a falta de “projetos estruturantes” que contornem o domínio da produção de banana. E aponta outro problema que considera grave: a maneira como a história de Canudos é ensinada nas escolas.

— Os livros didáticos repetem o texto euclidiano no que tem de mais superado. “Os sertões” é um livro extraordinário, mas precisa ser lido de forma crítica, porque expõe teses racistas sobre o sertanejo que estavam em voga na época. Não se pode jogar essas teses na mão de alunos e professores mal preparados. O ensino tem que ser revisto, e em todo o país, não só em Canudos — diz Neto, que trabalha com a equipe do Ceeb em um guia de fontes sobre a cidade, com base no acervo de 32 mil documentos da instituição, e no filme “Três vezes Canudos”, que narra a história local em forma de cordel. 

Com a experiência de quem dá aulas na rede pública de Canudos há mais de uma década, o professor João Ferreira, de 45 anos, identifica um exemplo concreto desse problema: o uso da palavra “jagunço”, cujo significado original é “bandido” ou “capanga”, para definir, como fazem os principais dicionários brasileiros, o “indivíduo do grupo de fanáticos de Antônio Conselheiro”. 

— Mesmo os livros adotados aqui contam a história da perspectiva dos “vencedores”. Isso prejudica a visão que os jovens têm da cidade e de si mesmos. Ainda existe no Brasil a ideia de que Canudos não passa de uma simples tapera. É o olhar do século XIX. Mas Canudos tem futuro.


http://oglobo.globo.com/blogs/prosa/


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