terça-feira, 18 de abril de 2017

‘Guernica’, de Picasso: assim foi feito o quadro mais famoso do século XX




‘Guernica’, de Picasso: assim foi feito o quadro mais famoso do século XX

Conheça a exposição que mergulha na mente do pintor que há 80 anos plasmou o horror da guerra


IKER SEISDEDOS
Madri 3 ABR 2017 - 19:39 CEST
A obra Guernica, de Pablo Picasso, começou a ser concebida bem antes de ser encomendada, já que, quando pequeno, o artista escapulia para baixo da mesa de jantar para admirar as “pernas monstruosamente inchadas que surgiam das saias de uma das suas tias”. Essa precoce fascinação pela deformidade subjaz no extraordinário feitiço da grande tela, intacto 80 anos depois de o artista pintá-la a pedido do Governo da República Espanhola para o pavilhão do país na Exposição Internacional de Paris de 1937. A teoria que liga os pontos entre o horror infantil e a eficaz monstruosidade do gigantesco mural-ícone é de T. J. Clark, curador, junto com sua esposa, Anne M. Wagner, de uma exposição que foi apresentada na manhã desta segunda-feira à imprensa no Museu Reina Sofía, em Madri, por ocasião do aniversário redondo da obra.



Piedad y Terror en Picasso – El Camino a Guernica (Piedade e terror em Picasso – o caminho até Guernica) reúne quase 180 obras que propõem “uma viagem pela mente do pintor em busca das motivações da obra do século XX que mais interpretações suscitou”, disse Manuel Borja-Villel, diretor do museu, numa concorrida entrevista coletiva.
A tese por trás da exposição é que a conscientização de Picasso sobre os horrores do seu tempo, que chega à obra do artista sem aviso prévio no quadro As Três Bailarinas, de 1925, se cristalizou no enigma de Guernica e determinou uma das porções mais interessantes e enigmáticas da sua trajetória, a que vai de meados dos anos vinte até mais ou menos o final da II Guerra Mundial.
O quadro apresenta três figuras em decomposição moral, bem afastadas do imaginário estético habitualmente associado à dança feminina. As moças se contrapõem a uma frase de salão do próprio pintor, que parece dar a razão a Clark: “Eu também acho que tudo é desconhecido, inimigo! Tudo! Não só os detalhes, as mulheres, os meninos, os animais, o tabaco, brincar…, e sim tudo, a totalidade!”, escreveu em 1937 a André Malraux.

Emprestado pela Tate de Londres, As Três Bailarinas é uma das estrelas de uma exposição que recebeu contribuições de instituições como o Museu Picasso de Paris (com 20 peças), o MoMA, o Metropolitan de Nova York e o Pompidou. Clark elogiou nesta segunda-feira a “generosidade desses museus e coleções particulares” e também o envolvimento dos herdeiros, salientado com a presença de Claude-Ruiz Picasso na inauguração. Tudo isso permitiu reforçar a sua inovadora tese, que evita reiterar o que já é sabido sobre o quadro, limitando-se a dar algumas pinceladas sobre os mistérios que cercam sua criação como resposta imediata ao bombardeio da aldeia basca de Gernika pelo Exército alemão em 26 de abril de 1937 (o quadro foi entregue em 4 de junho) e escapa dos biografismos um tanto chatos, inevitáveis quando se trata de Picasso.
A estrutura narrativa da exposição se assemelha a um desses filmes clássicos nos quais um prólogo situa o espectador quase no final da história, antes de voltar ao princípio. Uma maquete do pavilhão espanhol e a brincalhona contundência da Dama Oferente, escultura que também foi exposta em Paris, dão as boas-vindas ao visitante, com uma bateria documental sobre as circunstâncias daquela aventura. Na sala seguinte domina a gigantesca natureza morta Bandolim e Violão, cedida pelo Guggenheim e que serve a Clark para ilustrar a capa de um livro fundamental, Picasso & Truth (Yale University Press, 2013), na qual a tese da mostra ganhou forma pela primeira vez. “O Guggenheim nem sequer o deixa exposto. Não é assombroso? Acredito que neste ambiente está no seu lugar ideal”, disse, durante um percurso pela exposição, o curador, que é também um reputado historiador da arte, professor emérito da Universidade de Berkeley e comprometido com uma leitura marxista da arte.
Nessa sala, Clark reúne uma assombrosa quantidade de peças que certificam que Picasso decidiu em meados dos anos 1920 introduzir o “terror, o medo, o pânico, a deformidade e a morte” no sacrossanto interior burguês, esse quarto que, diz Walter Benjamin em O Trabalho das Passagens, configura o mundo no século XIX.

Nos anos seguintes, Picasso leva para o exterior, para o mundo, esses monstros interiores, tão belos e aterradores como as criaturas disformes de Nu em Pé Junto ao Mar (1929) e Figuras à Beira do Mar (1931) ou dos retratos que enchem uma das salas do percurso. Em suas deformidades estão prefigurados alguns dos elementos de Guernica, de cujo processo dá conta uma seção dedicada ao desenho, que teve uma maior participação de Anne Wagner, para oferecer uma leitura feminista do quadro, especialmente centrada nas representações nas quais as mulheres aparecem “militarizadas”, e em particular “a forma como os mamilos são tratados”. Entre esboços preparatórios, algum tão embrionários como o célebre Sonho e Mentira de Franco, de janeiro de 1937, aparecem surpresas como uma interpretação do assassinato de Marat e a obsessão de Picasso por um truculento homicídio da época, o das irmãs Papin, que inspiraria Jean Genet na sua obra As Criadas.
Guernica aguarda um pouco mais adiante, com seu habitual caráter solene e majestoso, como o elo entre o mundo do Picasso prévio à sua criação e o que estava por vir: a II Guerra Mundial e a ocupação da França, cujos horrores e inseguranças o artista plasmou numa série de obras incluídas na exposição, que termina como começou, com salas consagradas à documentação. Neste caso, da viagem que o quadro empreendeu desde que o pavilhão foi fechado até se transformar num ícone antibelicista nômade com uma missão: conscientizar o mundo sobre os horrores da Guerra Civil espanhola.

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