domingo, 10 de setembro de 2017

Luiz Ruffato / Entre nós

Kylie Jenner

Entre nós

Um em cada quatro homens acredita poder aquilatar qual mulher se veste “decentemente” e condenar a que deve ser violentada


LUIZ RUFFATO
15 ABR 2014 - 06:55 COT


Causou escândalo a descoberta de que estava errado o resultado do levantamento divulgado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostrando que 65% dos brasileiros acham que mulheres que usam roupa curta merecem ser estupradas. Respiramos aliviados: corrigidos os dados, constatamos que “apenas” 26% pensam desta maneira... Na verdade, deveríamos nos sentir envergonhados que um em cada quatro homens acredita ter poder de aquilatar quais mulheres se vestem “decentemente” e, a partir desse julgamento, condenar as que, não cumprindo este padrão, devem ser violentadas. Até porque, outros dados da mesma pesquisa, que passaram quase despercebidos, explicitam, por exemplo, que 58% pensam que se as mulheres “soubessem se comportar” haveria menos estupros...
Outro fato estarrecedor: a mesma pesquisa aponta que 23% concordam parcialmente e 58% concordam totalmente que em briga de marido e mulher não se mete a colher – triste constatação, a maioria absoluta dos brasileiros é conivente com a violência doméstica. Não é à toa que ocupamos o vergonhoso sétimo lugar, entre 84 países pesquisados, com maior número de mulheres vítimas de brigas entre quatro paredes com marido ou companheiro. São 4,5 assassinatos, em média, a cada grupo de 100 mil – foram 243 denúncias de agressão por dia no ano passado, com um saldo, na última década, de 50 mil mulheres mortas. E é sabido que, como também acreditamos que roupa suja se lava em casa, esses números são bastante subestimados...
Logo ao chegar em Juiz de Fora, no começo dos anos oitenta, conheci L., cinco anos mais velha. Bonita, inteligente, sensível, culta, mas triste, imensamente triste. Sucumbia a uma insônia colossal, que além de amarfanhar seu rosto, cativo de uma aparência sempre exausta, dirigia seu humor errático. Ela me adotou como uma espécie de irmão caçula – nossa história de penúria e sobrevivência nos aproximava, soldando uma mútua admiração. Filha de pequenos comerciantes de Muriaé, L. decidira aos 17 anos mudar-se para Juiz de Fora para continuar os estudos. Aos 18 entrou para o curso de Letras na Universidade Federal. Sem apoio financeiro, conseguiu emprego como professora de literatura num cursinho pré-vestibular.
L. estava imbuída daquela certeza, que nos acomete na idade dourada, de que promover mudanças no mundo só depende do empenho que colocamos na realização de nossas tarefas. Então, ela frequentava reuniões políticas na Igreja da Glória, participava de encontros de grupos feministas e comitês de solidariedade os mais diversos, desfilava em passeatas, envolveu-se com grupos de estudo, cineclubes, teatro alternativo, poesia marginal, tornou-se membro do diretório acadêmico da faculdade. E ainda administrava tempo para ler, sair, porque a vida, essa, pulsava sempre urgente.
Nas horas em que a melancolia a abraçava, L. gostava de se refugiar na solidão das galerias de arte que pululavam na cidade, em uma época em que os artistas, para além do compromisso estético, cultivavam o engajamento político. Num dia de chuva, ela entrou num pavilhão que abrigava a mostra de um artista plástico local, de cerca de quarenta anos, e que já angariara certo renome no Rio de Janeiro e Belo Horizonte. L. transitava de um quadro a outro, extasiada, quando surgiu à sua frente um homem simpático e de bela feição. Ele perguntou se estava gostando da exposição, ela respondeu entusiasmada e ele pronto se apresentou como o autor daquelas obras. L., que pensava que os artistas pertenciam a uma casta superior, estremeceu.
Imediatamente, ele a convidou para tomar um café ali por perto. Ela acatou, porque desejava embeber-se das palavras daquele ser que se comunicava com os deuses. Terminado o café e estiada a chuva, ele a chamou para conhecer seu ateliê. L. sem titubear aceitou, e caminharam como mestre e discípula pelas ruas molhadas em direção a um velho galpão numa parte erma da cidade. Quando entraram, ela observou com arrebatamento a bagunça do local: espalhados, pincéis, tubos de pigmentos, aventais, cavaletes, espátulas, telas em branco, um quadro semiesboçado, dois ou três em processo de finalização. O cheiro forte de tinta e aguarrás penetrou em suas narinas, deixando-a tonta. Ele perguntou se ela desejava beber algo, L. respondeu que sim, um copo d'água. Ele sorriu, mas ela não entendeu, encantada com a luz que, entrando pelas frestas do teto esburacado, descia encachoeirada mulplicando-se em mil cores.
Daí para a frente, de pouca coisa L. se recordava. Quando deu por si, estava deitada no chão imundo do ateliê, o vestido levantado, sem calcinha, marcas roxas espalhadas pelos braços, pescoço, pernas. O homem, na semiescuridão de um canto, arfava bestial, entre saciado e assustado, um cigarro aceso entre os dedos. Ela levantou-se com dificuldade, ajeitou a roupa, e em silêncio dirigiu-se à porta. Ele sussurrou, imperativo, que ela não contasse para ninguém o que havia ocorrido porque podia ser pior, pertencia a uma família importante, tinha dinheiro, prestígio, influência...
Quando a conheci, pouco mais de um ano depois, L. cursava o último período da faculdade. Não freqüentava reuniões políticas, não participava de encontros de grupos feministas e comitês de solidariedade, não desfilava em passeatas, não se envolvia com grupos de estudo, cineclubes, teatro alternativo, poesia marginal, renunciara ao cargo no diretório acadêmico da faculdade. Não saía para bater papo nos bares, não se interessava por nada. A vida perdera a urgência.

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