sábado, 30 de setembro de 2017

Vargas Llosa / A hora zero



Fernando Vicente

A hora zero

A independência catalã seria trágica para a Espanha e para a Catalunha, que teria caído nas mãos de demagogos que a levariam à ruína


MARIO VARGAS LLOSA
30 SET 2017 - 21:29 COT


Haverá referendo hoje na Catalunha? Espero ardentemente que, em um ato de bom senso, a Generalitat o tenha cancelado, mas, por outro lado, conheço de sobra os altos níveis de obstinação e irrealidade que todo nacionalismo carrega, então não é impossível que, apesar de tudo – e esse “tudo” é muitíssimo – os dirigentes do Govern catalão se empenhem em incitar seus seguidores a desobedecerem a lei e votarem. Se isso acontecer, o chamado referendo será uma caricatura de consulta, vai irritar a legalidade, sem censo de eleitores, nem urnas autorizadas, nem representantes, nem listas eleitorais, com uma porcentagem mínima de participantes e só independentistas, ou seja, o monólogo patético de uma minoria cega e surda à racionalidade, pois, de acordo com as pesquisas, pelo menos dois terços dos catalães admitem que o referendo carece de validade legal. Servirá apenas para alimentar o vitimismo, ingrediente essencial de toda ideologia nacionalista, e acusar o Governo espanhol de ter violentado a democracia, impedindo que o povo catalão exerça o direito de decidir seu destino através da mais pacífica e civilizada via democrática, que é a do voto.
Escrevo este artigo longe da Espanha, em seus antípodas, e desconheço os últimos episódios deste problema que colocou todo o país em xeque nas últimas semanas. Mas talvez a distância seja boa para perguntar calmamente o que levou a Catalunha, uma das regiões mais cultas e cosmopolitas da Espanha, a deixar crescer em seu ventre, de maneira tão extensa, essa antiquada, provinciana e aberrante ideologia que é o nacionalismo. Como é possível que milhares de jovens universitários e escolares de uma sociedade moderna, que faz parte do mais generoso e idealista projeto democrático do nosso tempo, a construção da Europa, concebido precisamente como uma fortaleza contra os nacionalismos que banharam a história em sangue e cadáveres, tenham agora a ilusão política de se encastelar em uma sociedade fechada e obsoleta, que retrocederia e empobreceria brutalmente a Catalunha, pois sairia do euro e da União Europeia e teria um processo longo e difícil para voltar?
A resposta não pode ser a dada pelos nacionalistas, que isso acontece porque a “Espanha rouba a Catalunha”, pois, precisamente, desde a queda da ditadura de Franco e a transição para a democracia, essa região obteve gradualmente a maior atribuição de competências econômicas, culturais e políticas de toda a sua história. Pode não ser suficiente, é claro, e talvez tenha havido negligência por parte dos Governos centrais em atender às demandas da Catalunha; mas isso, que tem uma saída perfeitamente negociada dentro da legalidade, não pode justificar a pretensão de cortar, unilateralmente, quinhentos anos de história comum e romper com o resto de uma comunidade que está presente e imbricada de mil maneiras na sociedade e história catalãs.




Nada poderia ser mais incompatível com o provincianismo racista e anacrônico do nacionalismo que a grande tradição cultural bilíngue da Catalunha

Nada poderia ser mais incompatível com o provincianismo racista e anacrônico do nacionalismo que a grande tradição cultural bilíngue da Catalunha, com seus artistas, músicos, arquitetos, poetas, romancistas, cantores, que estiveram quase sempre na vanguarda, experimentando novas formas e técnicas, abrindo-se para o resto do mundo, assimilando o novo com fruição e espalhando-o pelo resto da Espanha. Como um Gaudí, um Dalí ou Tàpies se encaixam com um Puigdemont e um Junqueras? E um Pla, Foix, um Marsé, um Serrat ou um Cercas com Carme Forcadell ou Ada Colau? Existe tal abismo gigante entre o que representam uns e outros que custa imaginar alguma linha de continuidade cultural ou ideológica que possa uni-los.
A explicação está certamente em um trabalho de doutrinação sistemática que, começando nas escolas e se projetando para todo o conjunto da Catalunha através dos grandes meios de comunicação, orquestrada e financiada pelo Governo catalão desde os anos de Jordi Pujol e seus seguidores, foi se infiltrando nas novas gerações até impregná-las com a ficção perniciosa que todo nacionalismo significa. Uma doutrinação que não foi neutralizada pela negligência ou a crença ingênua de parte do Governo e da elite política e intelectual do resto da Espanha de que aquela criação mentirosa não se firmaria, que a sociedade catalã saberia resistir, que o problema iria se resolver sozinho. Não foi assim, e essa negligência irresponsável está hoje por trás de um monstro que cresceu e levou boa parte da Catalunha para o lado separatista, que, mesmo que não triunfe – e acredito firmemente que não triunfará –, pode mergulhar a Espanha em uma crise traumática cuja consequência nefasta, entre outras, poderia ser paralisar o processo de recuperação econômica que já custou tantos sacrifícios aos espanhóis.
Um setor minoritário da extrema esquerda se uniu com o movimento de independência catalã, e outro, mais numeroso e mais sensível, exige o diálogo. Não há dúvida de que este último parece indispensável. O problema, porém, é que, para que seja possível um diálogo frutífero, deve haver algum denominador comum entre os interlocutores. Isso já existiu no passado, e foi lamentável que naquele momento as negociações não tivessem acontecido. Mas agora, embora não seja impossível, é muito mais difícil dialogar com aqueles que não aceitam outra opção a não ser “a secessão, sim ou sim” e têm em sua intransigência o apoio de um setor significativo da população catalã.




A independência da Catalunha seria trágica para a Espanha e, especialmente, para a Catalunha, que teria caído nas mãos de uma ideologia retrógrada e bárbara e de demagogos que a levariam à ruína

É preciso criar pontes primeiro, reconstruir aquelas que estão quebradas. E este é um trabalho essencialmente cultural. Convencer os menos fanatizados e recalcitrantes de que o nacionalismo – todo nacionalismo – sempre foi uma epidemia catastrófica para os povos, que só produziu violência, isolamento, exclusão e racismo, e que, especialmente nesta era de globalização universal que está desfazendo gradualmente as fronteiras, é suicida querer resistir a esse processo extremamente benéfico para toda a humanidade. E explicar que a Espanha precisa da Catalunha tanto quanto a Catalunha precisa da Espanha para se integrar melhor na grande aventura da Europa e perseverar – aperfeiçoando sem trégua – nesta democracia que trouxe a este país as condições de vida que são as mais livres e prósperas de toda a sua história. A independência da Catalunha seria trágica para a Espanha e, especialmente, para a Catalunha, que teria caído nas mãos de uma ideologia retrógrada e bárbara e de demagogos que a levariam à ruína. Tudo que há de justo nas exigências de soberania pode ser alcançado dentro da unidade, através de negociações, sem criar fraturas na legalidade que, neste último meio século, fez da Espanha um país livre e democrático. Não devemos esquecer que, durante a transição, o mundo inteiro olhava para a Espanha como um exemplo a seguir, por ter transitado tão rapidamente e de maneira cautelosa e pacífica para a democracia, com a atitude tolerante e solidária de todos os partidos políticos e a aprovação da grande maioria da nação. Não é tarde demais para retomar aquele ponto de partida solidário que trouxe tanto bem para o conjunto dos espanhóis, começando pelo mais importante, que é a liberdade. Por todos os meios racionais possíveis, é necessário convencer os catalães de que o nacionalismo é um dos piores inimigos que a liberdade possui, e que este período nefasto deve ficar para trás, como um pesadelo que desaparece ao acordar.










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