segunda-feira, 10 de setembro de 2018

O dia em que conheci Pepe Mujica


O registro do encontro com Mujica em sua chácara.


O dia em que conheci Pepe Mujica

Um inesperado encontro com o ex-presidente uruguaio que faz a simplicidade parecer coisa de louco


Breiller Pires
Montevidéu, 25 NOV 2017 - 09:44 COT


Pegamos um Uber do aeroporto rumo ao centro de Montevidéu. Em fluido portunhol, engatamos papo com o motorista sobre a admiração dos brasileiros – Maracanazo à parte – pela garra dos jogadores de futebol uruguaios. Maxi, nosso condutor, lembra então de outro compatriota que também costuma ser aclamado em conversas com passageiros provenientes do BrasilJosé “Pepe” Mujica. Sem demonstrar muito entusiasmo ao falar de seu ex-presidente, ele insinua que o antigo guerrilheiro tupamaro é mais querido fora que dentro do Uruguai. “É um louco”, disse Maxi, mudando de assunto.



Denise, minha companheira de aventuras e loucuras da vida, e eu fomos ao país vizinho a passeio. Depois de alguns dias de turismo convencional, de um jogo do Peñarol e uma visita ao estádio Centenário, nos restava um par de horas na capital uruguaia antes de partir. Decidimos aproveitar o tempo livre para visitar a famosa chácara de Mujica e a escola agrária idealizada por ele, que cedeu parte de seu terreno para construí-la. Não fui até lá como jornalista. Fui movido unicamente pela curiosidade despertada por um político que vive sem luxos, por sua apologia à sobriedade – não à pobreza –, por seus valores em defesa da liberdade de escolha individual, que permitiram ao Uruguai legalizar o aborto e o consumo de maconha, e das obrigações do Estado em garantir direitos básicos das pessoas mais pobres.


Não alimentamos a ilusão de encontrá-lo. Afinal, Mujica hoje é senador e uma das figuras mais populares do cenário político mundial. Percorremos os 20 quilômetros que separam o centro de Montevidéu da chácara, instalada numa comunidade rural da periferia, e chegamos por volta das 10h da última segunda-feira. Para desavisados, a estrada de terra termina em uma enorme placa de “pare” com o alerta escrito à mão: “Disculpen, el senador Pepe Mujica no puede recibirlos por falta de tiempo. Gracias”. O segurança sai de uma guarita em frente à entrada da chácara e nos aborda com cordialidade. Dissemos que não queríamos importunar. O intuito era apenas conhecer a escola e contemplar o lugar onde mora o sujeito que ficou conhecido como “o presidente mais pobre do mundo”. Ele responde que não vê problema, desde que a gente não ultrapasse a placa. Conta que cumpre a função há três meses, quando Lucía Topolansky, esposa de Mujica, assumiu o cargo de vice-presidente do país. Uma de suas tarefas é despachar visitantes de vários cantos que peregrinam até a chácara. Recentemente, passaram por ali grupos de japoneses, sauditas, marroquinos e até um ônibus de turismo lotado de indianos em busca do líder que se converteu em uma celebridade.
Brincamos com os cachorros de Mujica, que foi presidente entre 2010 e 2015, marcando uma geração dentro e fora do Uruguai. Atestamos a simplicidade de sua casa, que tem um telhado verde musgo, e vimos a fachada da escola, onde adolescentes aprendem a manusear uma roçadeira. Depois de nos despedirmos do segurança, entramos no carro. Viro a chave da ignição. Do meu lado, para um trator com dois homens. Um deles estica o pescoço como quem quer dizer algo. Era Pablo, outro funcionário da segurança de Pepe e Lucía. Desço do carro e ele me pergunta se sou cubano. Explica-se: eu usava um casaco da delegação de Cuba nas Olimpíadas de 2012.
– Vieram ver o Pepe? – questiona Pablo.
– Seria uma honra, mas viemos só dar uma passada e conhecer a escola. Já estamos de saída.
– Bem, se vocês não têm pressa, por que não esperam um pouco? Quem sabe ele não aparece para dar um ‘oi’?
Se o próprio funcionário de Mujica estava sugerindo, por que não esperar? Decidimos ficar por no máximo 20 minutos. Nesse meio tempo, um dos cachorros do senador deita sobre o meu pé e só sai para perseguir, aos latidos, um motoqueiro que cruza a estrada. Um caminhão-reboque estaciona em frente à chácara para trocar o pneu do carro de uma das professoras da escola. Pablo manobra o trator dentro de um galpão. A bucólica rotina campesina transcorre normalmente até que todos os cachorros rumam em bando na direção da casa. O segurança torna a deixar a guarita. De repente, por entre as árvores que cercam a chácara, surge como um personagem dos contos de realismo fantástico de Gabriel García Márquez a figura mítica de Pepe Mujica. Levo alguns segundos para concluir que aquele senhor de agasalho e calças dobradas na altura das canelas atravessando a estrada a passos lentos se trata do ex-presidente do Uruguai.
Ele entra na guarita com Pablo, o segurança e outros dois homens. Sua aparição sem alarde continua martelando em minha cabeça. A palavra “mito”, tão banalizada e cada vez mais usada para definir oportunistas que não fazem jus à distinção, se aplica perfeitamente a Mujica. Muitos duvidam de que sua retórica do desapego aos bens materiais seja praticada, de fato, longe das câmeras e microfones. Mas a realidade se revela bem ali, diante dos nossos olhos, assim como o sinal de Pablo com a mão nos chamando até a guarita. Mujica está sentado à beira da janela. Nos apresentamos, acanhados. E eu me apresso em dizer que não queremos incomodá-lo. O suor escorre por suas bochechas caídas, e ele, sujo de terra, com carrapichos grudados na calça, se mostra um pouco ofegante. Antes de político, o homem do campo, que cultiva flores e hortaliças na chácara.




O alerta na estrada que dá acesso à propriedade de Mujica.
O alerta na estrada que dá acesso à propriedade de Mujica.


Apesar de sua enorme capacidade de improvisar discursos, Mujica emana um ar tímido e sereno. Diferentemente do estereótipo de líder popular, seu carisma reside na fala pausada, singela, e não nas pregações inflamadas. Ele pede para que a gente tome assento em duas cadeiras à sua frente. “O Brasil agora anda bem”, diz, referindo-se à seleção brasileira comandada por Tite. Ele é torcedor do Cerro, um pequeno time da região, que disputa a primeira divisão uruguaia. Não é algo que o entusiasme como a política, mas gosta do jogo. “Não há uruguaio que não goste. Nosso futebol é meio milagroso. Somos um país tão pequeno e sempre estamos aí, chegando, chegando...” Mujica espreita sobre o quadro eleitoral no Brasil para 2018. Ao saber que o deputado de extrema-direita Jair Bolsonaro desponta em segundo lugar nas pesquisas de intenção de voto, atrás somente do ex-presidente Lula, faz uma pausa, tira o boné com a marca da Antel, estatal uruguaia de telecomunicações, coça a cabeça e lamenta: “¡Qué horrible!Já tinha ouvido falar, mas não pensei que ele fosse tão bem cotado”. Ainda solta um suspiro em forma de “Qué raro, Brasil, ¿no?”. Emendo com outra pergunta: como avalia o governo Michel Temer? “Ah, um desastre”, replica, justificando. “Retrocedeu ao que era o país antes de Getúlio Vargas [em alusão à recém-aprovada reforma trabalhista]. E vão pressioná-lo para que faça ainda mais reformas neoliberais.”
Embora não tenha tido filhos, Mujica parece um vovô experimentado, daqueles que andam de Fusca azul, mimam os netos e sempre carregam doces no bolso para arrancar um sorriso. Os doces de vô Pepe são palavras. Sobram-lhe poucos dentes na boca, mas seu espírito ainda conserva muito de utopia, da crença de que pequenos gestos, como interromper o trabalho no roçado para conversar com gente que nunca viu, podem mudar o mundo. Não é justo tomar tanto tempo de alguém que se dedica a causas nobres, de representar o povo uruguaio no Parlamento a plantar flores na chácara. Encerro a conversa, mas, em nenhum momento, Mujica parece demonstrar incômodo com a nossa presença. Pelo contrário. Quer saber de que cidade somos e o que fazemos no Brasil.


Mujica: “Os únicos derrotados são aqueles que deixam de lutar”

Depois, nos lamentaríamos pelas perguntas que não fizemos, por não ter esticado a conversa com um ex-presidente que parecia disposto a uma manhã inteira de prosa. Porém, um homem com sua história, do alto de seus 82 anos marcados pela resistência e a militância, diz mais pelo modo de agir do que pelas palavras. Viver como ele vive é seu maior ato político. Nunca me esquecerei de sua roupa salpicada pela terra, das botinas sem cadarço e do trato amável que dispensa às pessoas ao seu redor. Em um tempo de descrença e frustrações com a classe política, sentimento que se espalha por todo continente, a confirmação de que o Mujica do imaginário realmente existe é a maior recompensa que poderíamos levar daquele encontro. Ele se despede apertando nossa mão direita e, com a esquerda, dá dois leves tapinhas sobre o braço. Nos deseja sorte, “sorte na vida, jovens”.
Denise ficou paralisada diante de Mujica. De tão incrédula, não conseguiu pronunciar nada além de “gracias, gracias”. Saímos da guarita em êxtase e passamos o resto do dia anestesiados pela experiência que vivemos na chácara. Foram pouco mais de cinco minutos com Pepe, poucas palavras que valeram a viagem. A mensagem célebre de Mujica faz ainda mais sentido: “Os únicos derrotados são aqueles que deixam de lutar”. Fiel a seu estilo, Pepe segue na luta, segue inspirando. Há quem o chame de louco. Mas, ao que tudo indica, sua única loucura é não se curvar à lógica das aparências. É ser simples demais.


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