sábado, 1 de setembro de 2018

Sérgio Medeiros / A música sagrada de John Coltrane




Sérgio Medeiros


A MÚSICA SAGRADA 
DE JOHN COLTRANE

O som exultante e hipnótico criado por John Coltrane (1926-1967) no seu álbum mais famoso, A Love Supreme (Um amor divino), de 1965, espraia-se pelos longos solos do saxofonista, os quais, segundo Ashley Kahn, autor de um livro sobre essa obra-prima da música do século XX, vão da meditação sussurrada aos gritos selvagens e, às vezes, meio sufocados, sugerindo o ritmo de um pregador de domingo. Por isso, foi classificado como “jazz espiritual”.
A música luminosa e experimental de Coltrane, que veio depois do free jazz de Ornette Coleman e Charles Mingus, poderia ser descrita, grosso modo, como de vanguarda, porém a sua agressividade não impediu que, nos círculos jazzísticos dos anos 1960, o álbum A Love Supreme se tornasse instantaneamente um recordista de vendas. Nas quatro partes dessa suíte, forma e energia (a mesma energia do bebop e do gospel) interagem harmoniosamente, conforme avaliou Ashley Kahn. Numerosos músicos já declararam publicamente sua admiração por A Love Supreme, cuja linguagem e concepção, segundo os estudiosos, não envelheceram. O que pouca gente sabe é que John Coltrane foi canonizado no século passado pela Igreja Ortodoxa Africana e hoje é o padroeiro da Saint John Coltrane Church, ou seja, a Igreja de São John Coltrane, localizada em São Francisco, Califórnia.


Em fevereiro deste ano, a igreja completou 49 anos de existência. Assisti a dois rituais, ou “missas”, celebrados nela, em dois domingos consecutivos, durante o mês de aniversário de sua fundação. Na segunda missa, a pastora Wanika Stephens, atualmente a sua principal pregadora, declarou que, desde a sua origem, a igreja vem sendo visitada e frequentada por fãs de John Coltrane de todos os continentes, mas que os brasileiros são os mais numerosos e assíduos entre os estrangeiros. Havia nessa ocasião, entre uns poucos fiéis norte-americanos, visitantes franceses e mexicanos, além, é claro, de três brasileiros: Dirce Waltrick do Amarante, eu e o nosso filho de 15 anos, admirador do santo do jazz. Fomos convidados a dar um depoimento ou a tocar um instrumento de nossa preferência, antes ou depois do sermão do dia.
Quem chega cedo pode assistir à curiosa transformação de um dos templos da Igreja Ortodoxa Africana em Igreja de São John Coltrane, ambas sempre envolvidas em forte aroma de incenso. Jesus e os santos pintados nas paredes que rodeiam o altar da Igreja de São Cipriano são todos de pele escura. Entram então no recinto os simpáticos e esfuziantes fundadores da igreja do santo saxofonista, o senhor e a senhora King, com sua família (filhos, netos e bisnetos), portando diferentes imagens de John Coltrane, que expõem diante das fileiras de bancos: numa delas, o santo está segurando um sax que emite chamas; noutra, seu rosto se alterna com o de Billie Holiday, reproduzido várias vezes. Mais importante do que os ícones são os instrumentos musicais, que vão sendo trazidos para perto do altar pelos Kings (são músicos) e pelos artistas que frequentam a missa. A bispa, que é filha dos fundadores, é contrabaixista e o seu instrumento está posicionado ao lado do piano da Igreja de São Cipriano. A bateria vem a seguir. No primeiro domingo de fevereiro, o baterista, um dos netos dos fundadores, se atrasou. Na verdade, nesse dia a missa consistiu basicamente na audição de olhos fechados de A Love Supreme, no qual Coltrane canta várias vezes o título do álbum. Os presentes foram convidados a cantar junto com ele esse “mantra”, que ostenta uma eloquente inversão poética, à maneira de Walt Whitman, que escreveu “forest primeval” em lugar de “primeval forest”.


jam session pode vir antes ou depois do sermão. No segundo domingo de fevereiro, ela veio antes: os músicos que iam chegando (entre eles, um pianista que havia sido indicado ao Grammy), começaram a tocar imediatamente, sem nenhum ensaio prévio, junto com a família King. Foi uma improvisação entusiástica, entremeada de cantos e, sobretudo, da repetição do refrão criado por John Coltrane no seu álbum clássico. Os fiéis e visitantes receberam pandeiros e maracas e foram solicitados a fazer muito ruído ao longo do ritual. De vez em quando, todos gritavam “Aleluia” e “Amém”. A atmosfera era tão festiva que, nesse dia, não houve meditação, só cantos e danças, mas a bispa não abriu mão do sermão. Citando o Evangelho de Mateus, comentou a história do mendigo de Jericó, que não era capaz de ver, mas sabia ouvir. Na Igreja de São John Coltrane, todos são “cegos” que ouvem bem (ouve-se todo o álbum do mestre de olhos fechados); ou músicos, dançarinos e cantores bem despertos, quando a jam session irrompe primeiro e a música de A Love Supreme é recriada livremente no recinto sagrado.
Não saberia dizer qual dos dois tipos de missa é o mais interessante num domingo ao meio-dia. São formas diferentes de louvar o Divino, sem trair as palavras da oração que John Coltrane escreveu: “Deus, obrigado. […] É tão bonito. Deus, obrigado.”

*Sérgio Medeiros é poeta, dramaturgo e tradutor. É autor, entre outros, dos livros A idolatria poética ou a febre de imagens (2017) e Trio pagão (no prelo).



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