Guy de Maupassant
MADEMOISELLE FIJI
O major comandante prussiano, conde de
Farlsberg, acabava de ler sua correspondência, com as costas afundadas numa
ampla poltrona estofada e as botas pousados no elegante mármore da lareira,
onde as esporas, no decurso dos três meses em que ocupava o castelo de Uville,
haviam traçado dois fundos orifícios, dia a dia um pouco mais escavados.
Uma xícara de café fumegava
sobre uma mesa redonda de marchetaria, manchada pelos licores, queimada pelos
charutos, talhada pelo canivete do oficial, que às vezes traçava sobre o
gracioso móvel algarismos ou desenhos, ao capricho da sua indolente fantasia.
Tendo terminado a leitura das
cartas e percorrido os jornais alemães que seu ordenança lhe trouxera,
levantou-se, e depois de ativar o fogo com três ou quatro enormes achas de
lenha verde, das árvores que derrubavam do parque para se aquecer, aproximou-se
da janela.
A chuva caía a cântaros, uma
chuva normanda que se diria atirada por mão furiosa, uma chuva enviesada,
espessa como uma cortina, formando uma espécie de muro de listras oblíquas, uma
chuva fustigante, tudo salpicando, tudo inundando, verdadeira chuva dos
arredores de Rouen, esse vaso noturno da França.
O oficial contemplou longamente
os relvados cheios d’água, e ao longe o Andelle engrossado, que transbordava.
Tamborilava contra a vidraça uma valsa do Reno, quando um rumor fê-lo
voltar-se. Era seu imediato, o barão de Kelweigstein, que ocupava o posto equivalente
ao de capitão.
O major era um gigante de
espáduas largas, com longa barba em forma de leque, abrindo-se sobre o peito
como um guardanapo. Da cabeça aos pés, a sua pessoa avantajada dava a idéia de
um pavão militar, um pavão cuja cauda se desdobrasse no queixo. Tinha olhos
azuis, frios e tranqüilos, uma das faces lanhada por um golpe de sabre,
recebido na guerra da Áustria, e diziam-no homem tão reto quanto oficial
destemido.
O capitão, homenzinho corado,
de ventre proeminente, estreitamente cintado, usava muito curta a barba
vermelha, cujos fios cor de fogo fariam supor, quando batidos por certos
reflexos, que seu rosto fora esfregado com fósforo. Dois dentes perdidos numa
noite de pândega, sem que ao menos se lembrasse como, faziam-no cuspir palavras
espessas, nem sempre inteligíveis. Era calvo apenas no alto do crânio,
tonsurado como um frade, com uma coroa de cabelinhos frisados, dourados e
brilhantes orlando aquele círculo de carne nua.
O comandante apertou-lhe a mão,
e em seguida engoliu de um só trago a sua xícara de café, a sexta nessa manhã,
enquanto escutava do seu subordinado a relação dos incidentes ocorridos em
serviço. Depois ambos se aproximaram da janela, comentando que aquilo não era
nem um pouco divertido. Homem sossegado, casado em sua pátria, o major
adaptava-se facilmente à situação. O barão, porém, boêmio incorrigível,
freqüentador de lupanares, impetuoso conquistador, irritava-se com estar
encerrado havia três meses naquela posição perdida, numa castidade obrigatória.
Ouvindo alguém bater à porta, o
comandante mandou entrar e um de seus soldados autômatos apareceu, anunciando
pela sua simples presença que o almoço estava servido.
Na sala de refeição encontraram
três oficiais de posto inferior: um tenente, Otto de Gossling; dois
subtenentes, Fritz Schcenaubourg e o marquês Wilhem d’Eyrik, lourinho orgulhoso
e brutal com seus subordinados, duro para com os vencidos e violento como uma
arma de fogo.
Desde que entrara na França, os
companheiros do marquês d’Eyrik só o tratavam por Mademoiselle Fifi. Devia a
alcunha ao seu andar requebrado, à sua cintura fina que se diria comprimida por
espartilho, ao seu rosto pálido onde mal repontava um bigode incipiente, e
também ao hábito que adquirira de, para expressar seu soberano desprezo pelos
seres e pelas coisas, servir-se a todo momento da locução francesa fi, fi donc,
que pronunciava com ligeiro sibilo.
A sala de jantar do castelo de
Uville era uma peça ampla e imponente. Os espelhos de cristal antigo, agora
estrelados de balas, e as requintadas tapeçarias de Flandres, dilaceradas por
golpes de sabre e despregadas em alguns lugares, denunciavam as ocupações de
Mlle. Fifi nas suas horas de lazer. Nas paredes, três retratos de família — um
guerreiro de armadura, um cardeal e um presidente fumando longo cachimbo de
porcelana — enquanto uma nobre dama de busto espartilhado, na sua moldura
desdourada pelos anos, exibia um enorme bigode desenhado a carvão.
O almoço dos oficiais decorreu
quase em silêncio naquele salão mutilado, ensombrecido pela embriaguez,
confrangedor pelo seu aspecto de derrota, tornado sórdido como um chão de
taberna o seu antigo soalho de carvalho.
Terminada a refeição, à hora de
fumar, puseram-se a falar, como faziam todos os dias, do tédio que
experimentavam. As garrafas de conhaque e de licores passavam de mão em mão, e
todos, recostados nas cadeiras, bebiam vagarosamente, em goles repetidos,
conservando o cachimbo no canto da boca, longo tubo curvo rematado pelo ovo de
faiança, sarapintado como para seduzir hotentotes. Mal os copos se esvaziavam,
tornavam a enchê-los, com um gesto de resignada lassidão. Mlle. Fifi quebrava o
seu, a toda hora, e imediatamente um soldado lhe apresentava outro.
Envolvia-os uma cerração feita
de fumaça acre, e pareciam engolfar-se numa embriaguez triste e entorpecedora,
naquela ebriedade melancólica das pessoas que nada têm com que se ocupar.
Subitamente, o barão se
aprumou. Sacudia-o um assomo de revolta. Praguejou:
— Com todos os diabos! Isto
assim não pode continuar! Afinal, é preciso inventar qualquer coisa para fazer!
O tenente Otto e o subtenente
Fritz, dois alemães dotados de características fisionomias pesadas e graves,
indagaram:
— O que podia ser, capitão?
Ele refletiu alguns segundos, e
depois observou:
— O quê? Ora, é preciso
organizar uma festa, caso o comandante o permita.
O major largou o cachimbo:
— Que festa, capitão?
O barão aproximou-se:
— Encarrego-me de tudo,
comandante. Mandarei o ajudante de ordens a Rouen, e ele nos trará algumas
damas. Sei onde encontrá-las. Uma ceia será preparada aqui. Aliás, nada falta,
e passaremos uma noitada divertida.
O conde de Farlsberg meneou os
ombros com um sorriso:
— O senhor está louco, meu
amigo.
Mas todos os oficiais se tinham
levantado e rodeavam o superior, suplicando:
— Comandante, consinta, por
favor. É tão triste a nossa vida aqui.
— Está bem — concordou
finalmente o major.
Sem perder tempo, o barão mandou
chamar o ajudante de ordens. Era um velho subtenente, a quem jamais ninguém
vira rir-se, mas que cumpria fanaticamente todas as ordens de seus superiores,
fossem quais fossem.
Perfilado, rosto impassível,
recebeu as instruções do barão. Retirou-se em seguida, e cinco minutos mais
tarde um grande carro militar, coberto com um toldo encerado estendido à
maneira de cúpula, deslocava-se apressadamente sob a chuva torrencial, ao
galope de quatro cavalos.
Imediatamente um frêmito
perpassou pelos espíritos, despertando-os. Os corpos languidamente recostados
se aproximaram, animaram-se os rostos e todos se puseram a conversar.
Embora o aguaceiro continuasse
a cair com a mesma intensidade, o major afirmou que já estava menos escuro, e o
tenente Otto anunciou, convicto, que o céu ia clarear. O próprio Mlle. Fifi
parecia inquieto. Levantava-se, tornava a sentar-se. Seu olhar claro e duro
procurava algo para quebrar. De repente, fitando a dama de bigodes, o lourinho
puxou o revólver:
— Você não assistirá a nada disso
— declarou ele.
Sem se levantar da cadeira, fez
pontaria, e duas balas sucessivamente furaram os dois olhos do retrato.
Exclamou depois:
— Agora vamos fazer a mina!
E as palestras
interromperam-se, como se um novo e poderoso interesse a todos empolgasse.
“Fazer mina” era a invenção de Mlle. Fifi, sua maneira de destruir, seu
divertimento predileto.
Ao abandonar o castelo, o seu
legítimo proprietário, conde Fernand d’Amoys d’Uville, não tivera tempo para
transportar nem esconder coisa alguma, salvo a prataria oculta no oco de uma
parede. Como era muito rico e munificente, o salão do castelo, cuja porta se
abria para a sala de jantar, apresentava antes da fuga precipitada o aspecto de
uma galeria de museu. Telas, desenhos e aquarelas de preço pendiam das paredes.
Dispostos sobre os móveis e aparadores, e nas vitrines elegantes, mil bibelôs,
porcelanas, estatuetas, figurinhas de Saxe e bonecos da China, marfins antigos
e cristais de Veneza, enchendo o vasto aposento com a sua presença preciosa e
rara.
Pouco restava de tudo aquilo.
Não que os objetos houvessem sido pilhados, pois tal coisa o major conde de
Farlsberg não teria permitido. Porém, de quando em quando, Mlle. Fifi preparava
uma mina, e então os oficiais realmente se divertiam durante quinze minutos.
O marquesinho foi ao salão
buscar o material de que precisava. Trouxe um bule de chá de porcelana chinesa,
família rósea, sobremaneira frágil, que encheu de pólvora. Introduziu no bico,
com delicadeza, um longo pedaço de estopim, e apressou-se em levar essa máquina
infernal ao compartimento vizinho. Acendeu-o e regressou rápido, depois de
fechar a porta. Os alemães esperaram de pé, o rosto sorridente espelhando uma
curiosidade infantil. Assim que a explosão estremeceu o castelo,
precipitaram-se todos para o salão.
Mlle. Fifi, o primeiro a
entrar, batia freneticamente as mãos diante de uma Vênus de terracota, cuja
cabeça afinal saltara. Cada um deles apanhou cacos de porcelana, admirando os
estranhos recortes dos estilhaços, verificando os estragos novos e atribuindo
outros a uma explosão anterior. E o major considerava com ar paternal o vasto
salão, violentamente abalado por aquela metralha à maneira de Nero e coalhado
de fragmentos de objetos de arte. Foi o primeiro a sair, depois de observar com
bonomia:
— Desta vez foi um sucesso.
Mas tamanho turbilhão de fumaça
invadira a sala de jantar, misturando-se ao fumo dos cachimbos, que ninguém
mais conseguia respirar. O comandante abriu a janela, e os oficiais, que haviam
retornado para beber um último copo de conhaque, foram-se aproximando.
O ar úmido penetrou no
aposento, trazendo consigo uma espécie de poeira d’água e um cheiro de
inundação. Puseram-se a contemplar as enormes árvores, vergadas pelo aguaceiro,
o amplo vale obscurecido pela aglomeração de nuvens baixas e sombrias, e bem ao
longe o campanário da igreja, alteando-se como uma flecha cinzenta no meio da
chuva torrencial.
Desde que eles tinham chegado,
os sinos da igreja haviam deixado de tocar. Era a única resistência com que os
invasores tinham deparado nos arredores: a do campanário. O vigário
absolutamente não se recusara a abrigar e alimentar soldados prussianos.
Concordara até em beber uma garrafa de cerveja ou de bordeaux com o comandante
inimigo, que muitas vezes o utilizava como intermediário voluntário. Porém, não
lhe pedissem uma só badalada de seu sino! Mais depressa se deixaria fuzilar.
Era a sua maneira de protestar contra a invasão: protesto pacífico, protesto de
silêncio, o único, segundo dizia, adequado a um sacerdote, homem de doçura e
não de sangue. E todos, numa circunferência de dez léguas, gabavam a firmeza, o
heroísmo do Pe. Chantavoine, que ousava afirmar o luto público e proclamá-lo
através do obstinado mutismo da sua igreja.
A aldeia inteira, entusiasmada
com essa resistência, mostrava-se disposta a apoiar até o fim o seu pastor,
disposta a tudo afrontar, pois considerava esse protesto tácito como um
desagravo à honra nacional. Os camponeses tinham a impressão de que a pátria
lhes devia mais do que a Blefort e a Strasbourg; parecia-lhes ter dado um
exemplo equivalente, e que haviam imortalizado o nome da aldeia. Com exceção
disso, nada recusavam aos prussianos vencedores.
Tanto o comandante como os
oficiais se riam dessa inofensiva coragem. Como a região inteira se mostrava
obediente e submissa para com eles, de boa vontade toleravam aquele silencioso
patriotismo.
Apenas o pequeno marquês Wilhem
teria gostado de forçar o sino a tocar. Irritava-o a condescendência política
do seu superior em relação ao pároco, e todos os dias insistia com o comandante
para que o deixasse fazer “ding-don-don” uma vez, uma única vez, somente para
divertir-se um pouco. Fazia tal pedido com requebros felinos, meiguices
femininas e as doçuras na voz que teria uma amante obcecada por um desejo. Mas
o comandante não cedia, e para consolar-se Mlle. Fifi “fazia mina” no castelo
de Uville.
Durante alguns momentos, os
cinco homens permaneceram agrupados no mesmo lugar, aspirando a umidade. Enfim,
soltando uma risada pastosa, o tenente Fritz assim se expressou:
— Aquelas senhorritas
tecididamente não terrão uma tempo ponito para sua passeio.
Logo em seguida eles se
separaram. Cada um retomou seu serviço, e o capitão ocupou-se com os múltiplos
preparativos do jantar.
Ao cair da noite, quando
novamente se encontraram, puseram-se a rir, vendo-se todos faceiros e
reluzentes como nos dias de revista solene, os cabelos lustrosos, perfumados e
limpos. Os cabelos do comandante se haviam tornado menos grisalhos do que pela
manhã, e o capitão fizera a barba, só conservando o bigode ruivo, que lhe
parecia uma chama sob o nariz.
Não obstante a chuva, deixaram
a janela aberta, e de vez em quando um deles ia escutar. Às seis horas e dez
minutos, o barão percebeu um rodar longínquo. Todos se alvoroçaram, e o enorme
carro não tardou em aproximar-se, sem deter o galope dos quatro cavalos
esbaforidos, enlameados até às costas.
Cinco mulheres desceram no
patamar, cinco bonitas raparigas escolhidas a dedo por um companheiro do
capitão. Não se tinham feito rogar, certas de que seriam bem pagas. Conheciam
os prussianos, que há três meses agüentavam, e sabiam tirar partido tanto dos
homens como das coisas. “São exigências da profissão” — explicavam, a caminho,
sem dúvida para acalmar o secreto prurido de uns restos de consciência.
Imediatamente entraram na sala
de jantar. Iluminada, esta ainda parecia mais lúgubre, deixando perceber o
lamentável estado a que fora reduzida. A mesa farta de carnes, com a rica
baixela e a prataria encontrada na parede onde a escondera seu proprietário,
conferia-lhe o aspecto de uma taverna, na qual bandidos fossem cear depois de
uma pilhagem. Radiante, o capitão apossou-se das raparigas como de objetos
familiares, aquilatando-as como dispensadoras de prazer. Como os três mais
moços se apressavam em fazer sua escolha, opôs-se categoricamente,
atribuindo-se a partilha, que seria feita dentro da maior eqüidade, tendo-se em
conta as patentes, a fim de que a hierarquia fosse respeitada.
Assim sendo, no propósito de
evitar qualquer discussão, qualquer contestação, qualquer suspeita de
parcialidade, alinhou-as pela estatura, e dirigindo-se à mais alta, indagou com
voz de comando:
— Seu nome?
— Pamela.
— Número um, a chamada Pamela,
adjudicada ao comandante.
Em seguida, depois de beijar em
sinal de posse a Blondine, a segunda, ofereceu ao comandante Otto a rechonchuda
Amanda, Eva ao subtenente Fritz, e Raquel, a mais baixa de todas, ao mais moço
dos oficiais, o marquesinho Wilhem d’Eyrik. Raquel era morena muito jovem, de
olhos negros como borrões de tinta, uma judia, cujo nariz adunco confirmava a
regra que caracteriza sua raça,
Todas eram gordas e bonitas,
sem fisionomias muito marcadas, como se as práticas quotidianas e a vida comum
nos prostíbulos as tivessem tornado parecidas de rosto e de porte.
Os três jovens tencionavam
subir com as suas damas, sob o pretexto de oferecer-lhes escovas e sabão para
se lavarem. Prudentemente o capitão se opôs, declarando que estavam bastante
limpas para sentarem-se à mesa, e argumentando que aqueles que subissem
poderiam propor permutas, com isso perturbando os outros pares. Sua experiência
deu-lhe ganho de causa.
Sentaram-se. O próprio
comandante parecia encantado. Colocou Pamela à sua direita, Blondine à sua
esquerda, e observou, ao desdobrar o guardanapo:
— O senhor teve uma ótima
idéia, capitão.
Os tenentes Otto e Fritz, afetando
polidez como se tratassem com senhoras da sociedade, intimidavam um pouco as
suas vizinhas. Mas o barão de Kelweigstein, entregue ao seu prazer predileto,
soltava palavras picantes, galanteava em francês do Reno, e seus cumprimentos
de taverna, expectorados pela abertura dos dois dentes partidos, chegavam às
raparigas de envolto a uma metralha de saliva.
De resto, elas não compreendiam
coisa alguma, e sua inteligência só pareceu despertar quando ele começou a
cuspir-lhes palavras obscenas, expressões cruas, que o seu sotaque estropiava.
Então, todas ao mesmo tempo puseram-se a rir como loucas, repetindo as palavras
que o barão se comprazia em deformar, a fim de obrigá-las a proferir
obscenidades. Vomitavam tais obscenidades sem hesitar, bêbedas desde as
primeiras garrafas de vinho. Tendo assim voltado a ser elas mesmas, e aberto a
porta aos hábitos, bebiam em todos os copos, cantavam coplas francesas e
trechos de canções alemãs aprendidas nos seus contatos quotidianos com o
inimigo.
Bem depressa os homens, também
embriagados, puseram-se a berrar e a quebrar a baixela, enquanto às suas
costas, impassíveis, os soldados os serviam.
O comandante era o único a
guardar a compostura.
Tinham chegado à sobremesa. O
champanhe estava sendo servido. O comandante levantou-se, e no mesmo tom que
empregaria para erguer um brinde à imperatriz Augusta, saudou:
— Às nossas damas!
Foi o início de uma série de
toasts, de galanterias de soldados bêbedos misturadas a gracejos obscenos, que
a ignorância do idioma tornava ainda mais brutais. Um por um eles se
levantaram, tentando mostrar-se espirituosos, esforçando-se por parecer
engraçados. E as mulheres embriagadas, olhos vagos, lábios pastosos, aplaudiam
freneticamente.
Na provável intenção de
acrescentar um toque galante à orgia, mais uma vez o capitão ergueu o copo e
proferiu:
— Às nossas vitórias sobre os
corações!
Então o tenente Otto, espécie
de urso da Floresta Negra, retesou-se, inflamado, saturado de bebidas.
Subitamente possuído de
patriotismo alcoólico, gritou:
— Às nossas vitórias sobre a
França!
Por mais bêbedas que
estivessem, as mulheres calaram-se. Raquel, trêmula, retrucou:
— Fique sabendo: conheço
franceses diante dos quais você não falaria assim.
O marquesinho pôs-se a rir,
pois o vinho o deixara muito alegre:
— Ah! ah! ah! Nunca vi esses
franceses. Mal aparecemos, eles somem!
— Você está mentindo, seu sujo!
— gritou-lhe ao rosto a rapariga, exasperada.
Durante um segundo ele fixou
nela os olhos claros, tal como os fixava nas telas quando as furava a tiros de
revólver, e depois soltou uma risada.
— Ah! Quanto a isso, beleza,
acaso estaríamos aqui se eles fossem valentes? Somos donos dos franceses! A
França é nossa! — Levantou-se, estendeu o copo até ao centro da mesa, e
repetiu: — A França é nossa, assim como os franceses, os bosques, os campos e as
casas da França!
Completamente bêbedos,
subitamente dominados por um entusiasmo militar, um entusiasmo de brutos, os
outros também empunharam os copos, vociferando:
— Viva a Prússia! — e
esvaziaram os copos de um só trago.
As raparigas não protestavam,
emudecidas e presas do medo. A própria Raquel calava-se, impotente para
responder. Foi então que o marquesinho colocou sobre a cabeça da judia a taça
de champanha que tornara a encher, e gritou:
— A nós também todas as
mulheres da França!
Raquel se pôs de pé
rapidamente, derramando sobre seus cabelos o cálice de champanhe, que em
seguida caiu ao chão, espatifando-se. Com os lábios trêmulos, afrontava com o
olhar o oficial, que continuava a rir-se. E balbuciou, com voz sufocada pela
cólera:
— Isso… isso não é verdade!
Absolutamente vocês não terão as mulheres da França!
Ele se sentou, para rir-se mais
à vontade, e procurando imitar o sotaque parisiense:
— Essa é pem poa, pem poa,
enton que veiu facer aqui, pequena?
Interdita, ela se calou, tão
perturbada que não podia compreender bem o que ele dizia. Depois, assim que
alcançou o sentido daquelas palavras, retorquiu, indignada e veemente:
— Eu… eu… não sou mulher, sou
prostituta. É o que serve para vocês, prussianos.
Nem bem terminara, e ele já a
esbofeteara com força. Ao vê-lo erguer a mão outra vez, enlouquecida pela
raiva, Raquel apanhou na mesa uma faca, e bruscamente cravou-a no pescoço do
marquesinho, bem no côncavo onde começa o peito. A palavra que articulava foi
cortada na garganta, e ele se quedou de boca escancarada, com olhar terrível.
Um bramido ergueu-se, e todos
se levantaram em tumulto. Porém, depois de atirar sua cadeira às pernas do
tenente Otto, que se estatelou no chão, Raquel correu à janela, abriu-a antes
que conseguissem alcançá-la, e desapareceu na noite, sob a chuva que continuava
a cair.
Dois minutos depois, Mlle. Fifi
morria. Então Fritz e Otto desembainharam as espadas e quiseram trucidar as
outras mulheres. Não sem dificuldade, o major impediu o morticínio e mandou
fechá-las num quarto, sob a guarda de dois soldados.
Tal como se dispusesse
militares para um combate, o major organizou a perseguição à fugitiva,
plenamente convencido de que seria capturada. Cinqüenta homens, fustigados por
ameaças, foram lançados ao parque. Duzentos outros esquadrinharam os bosques e
as casas do vale.
A mesa, instantaneamente
desocupada, servia agora de leito mortuário. Os quatro oficiais, dissipada a
embriaguez, rígidos e perfilados junto às janelas, com a fisionomia de
guerreiros em serviço, sondavam a noite.
A chuva torrencial continuava.
Um marulhar contínuo enchia as trevas, murmúrio ondeante de água que cai e de
água que escorre, de água que goteja e de água que esguicha.
De repente ressoou um tiro,
depois outro, muito ao longe. Durante algumas horas, de quando em quando
repercutiram detonações próximas ou distantes, assim como gritos para reunir e
palavras estranhas, lançadas como apelos por vozes guturais. Pela manhã todos
regressaram. Dois soldados haviam sido mortos e três outros feridos por
companheiros, durante a caçada, na confusão daquela perseguição noturna.
Raquel não fora encontrada.
Em conseqüência, os habitantes
do lugar foram submetidos a um regime de terror, as casas revistadas, toda a
região percorrida, explorada, revolvida. A judia parecia não haver deixado um
único vestígio da sua passagem.
Informado, o general ordenou
que se abafasse o caso, para não dar maus exemplos ao exército, e infligiu uma
pena disciplinar ao comandante, que por sua vez puniu seus inferiores. O
general dissera:
— Ninguém faz guerra para se
divertir e meter-se com mulheres da vida.
E o conde de Farlsberg,
exasperado, resolveu vingar-se sobre a região. Como necessitasse de um pretexto
para exercer livremente as suas represálias, mandou chamar o vigário e deu-lhe
ordem para tocar o sino por ocasião do sepultamento do marquês d’Eyrik. Contra
a sua expectativa, o sacerdote mostrou-se dócil, humilde, cheio de deferência.
Quando o corpo de Mlle. Fifi,
carregado por soldados, precedido, cercado e acompanhado por soldados que
marchavam de armas embaladas, deixou o castelo de Uville a caminho do
cemitério, pela primeira vez o sino dobrou a finados, mas com um ritmo vivo,
como se mão amiga o acariciasse.
Ressoou também à noite, no dia
seguinte, e todos os dias daí em diante. Repicou todas as vezes que desejaram.
Mesmo durante a noite, acontecia-lhe agitar-se sozinho, de manso, e lançar à
sombra duas ou três sonoridades, tomado de estranhas alegrias, despertado não
se sabia por quê. Os camponeses do lugar deram-no como enfeitiçado, e ninguém,
salvo o vigário e o sacristão, se aproximava do campanário.
É que uma pobre rapariga vivia
lá no alto, na angústia e na solidão, alimentada às escondidas por aqueles dois
homens.
No alto permaneceu até a
retirada das tropas alemãs. Certa noite, tendo pedido emprestado a carroça do
padeiro, o próprio vigário conduziu sua prisioneira às portas de Rouen. Algum
tempo depois um patriota a desposou, entusiasmado pela bela ação que praticara.
1882.
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