sábado, 6 de outubro de 2018

Guy de Maupassant / Mademoiselle Fiji


Guy de Maupassant
MADEMOISELLE FIJI

O major comandante prussiano, conde de Farlsberg, acabava de ler sua correspondência, com as costas afundadas numa ampla poltrona estofada e as botas pousados no elegante mármore da lareira, onde as esporas, no decurso dos três meses em que ocupava o castelo de Uville, haviam traçado dois fundos orifícios, dia a dia um pouco mais escavados.
Uma xícara de café fumegava sobre uma mesa redonda de marchetaria, manchada pelos licores, queimada pelos charutos, talhada pelo canivete do oficial, que às vezes traçava sobre o gracioso móvel algarismos ou desenhos, ao capricho da sua indolente fantasia.
Tendo terminado a leitura das cartas e percorrido os jornais alemães que seu ordenança lhe trouxera, levantou-se, e depois de ativar o fogo com três ou quatro enormes achas de lenha verde, das árvores que derrubavam do parque para se aquecer, aproximou-se da janela.
A chuva caía a cântaros, uma chuva normanda que se diria atirada por mão furiosa, uma chuva enviesada, espessa como uma cortina, formando uma espécie de muro de listras oblíquas, uma chuva fustigante, tudo salpicando, tudo inundando, verdadeira chuva dos arredores de Rouen, esse vaso noturno da França.
O oficial contemplou longamente os relvados cheios d’água, e ao longe o Andelle engrossado, que transbordava. Tamborilava contra a vidraça uma valsa do Reno, quando um rumor fê-lo voltar-se. Era seu imediato, o barão de Kelweigstein, que ocupava o posto equivalente ao de capitão.
O major era um gigante de espáduas largas, com longa barba em forma de leque, abrindo-se sobre o peito como um guardanapo. Da cabeça aos pés, a sua pessoa avantajada dava a idéia de um pavão militar, um pavão cuja cauda se desdobrasse no queixo. Tinha olhos azuis, frios e tranqüilos, uma das faces lanhada por um golpe de sabre, recebido na guerra da Áustria, e diziam-no homem tão reto quanto oficial destemido.
O capitão, homenzinho corado, de ventre proeminente, estreitamente cintado, usava muito curta a barba vermelha, cujos fios cor de fogo fariam supor, quando batidos por certos reflexos, que seu rosto fora esfregado com fósforo. Dois dentes perdidos numa noite de pândega, sem que ao menos se lembrasse como, faziam-no cuspir palavras espessas, nem sempre inteligíveis. Era calvo apenas no alto do crânio, tonsurado como um frade, com uma coroa de cabelinhos frisados, dourados e brilhantes orlando aquele círculo de carne nua.
O comandante apertou-lhe a mão, e em seguida engoliu de um só trago a sua xícara de café, a sexta nessa manhã, enquanto escutava do seu subordinado a relação dos incidentes ocorridos em serviço. Depois ambos se aproximaram da janela, comentando que aquilo não era nem um pouco divertido. Homem sossegado, casado em sua pátria, o major adaptava-se facilmente à situação. O barão, porém, boêmio incorrigível, freqüentador de lupanares, impetuoso conquistador, irritava-se com estar encerrado havia três meses naquela posição perdida, numa castidade obrigatória.
Ouvindo alguém bater à porta, o comandante mandou entrar e um de seus soldados autômatos apareceu, anunciando pela sua simples presença que o almoço estava servido.
Na sala de refeição encontraram três oficiais de posto inferior: um tenente, Otto de Gossling; dois subtenentes, Fritz Schcenaubourg e o marquês Wilhem d’Eyrik, lourinho orgulhoso e brutal com seus subordinados, duro para com os vencidos e violento como uma arma de fogo.
Desde que entrara na França, os companheiros do marquês d’Eyrik só o tratavam por Mademoiselle Fifi. Devia a alcunha ao seu andar requebrado, à sua cintura fina que se diria comprimida por espartilho, ao seu rosto pálido onde mal repontava um bigode incipiente, e também ao hábito que adquirira de, para expressar seu soberano desprezo pelos seres e pelas coisas, servir-se a todo momento da locução francesa fi, fi donc, que pronunciava com ligeiro sibilo.
A sala de jantar do castelo de Uville era uma peça ampla e imponente. Os espelhos de cristal antigo, agora estrelados de balas, e as requintadas tapeçarias de Flandres, dilaceradas por golpes de sabre e despregadas em alguns lugares, denunciavam as ocupações de Mlle. Fifi nas suas horas de lazer. Nas paredes, três retratos de família — um guerreiro de armadura, um cardeal e um presidente fumando longo cachimbo de porcelana — enquanto uma nobre dama de busto espartilhado, na sua moldura desdourada pelos anos, exibia um enorme bigode desenhado a carvão.
O almoço dos oficiais decorreu quase em silêncio naquele salão mutilado, ensombrecido pela embriaguez, confrangedor pelo seu aspecto de derrota, tornado sórdido como um chão de taberna o seu antigo soalho de carvalho.
Terminada a refeição, à hora de fumar, puseram-se a falar, como faziam todos os dias, do tédio que experimentavam. As garrafas de conhaque e de licores passavam de mão em mão, e todos, recostados nas cadeiras, bebiam vagarosamente, em goles repetidos, conservando o cachimbo no canto da boca, longo tubo curvo rematado pelo ovo de faiança, sarapintado como para seduzir hotentotes. Mal os copos se esvaziavam, tornavam a enchê-los, com um gesto de resignada lassidão. Mlle. Fifi quebrava o seu, a toda hora, e imediatamente um soldado lhe apresentava outro.
Envolvia-os uma cerração feita de fumaça acre, e pareciam engolfar-se numa embriaguez triste e entorpecedora, naquela ebriedade melancólica das pessoas que nada têm com que se ocupar.
Subitamente, o barão se aprumou. Sacudia-o um assomo de revolta. Praguejou:
— Com todos os diabos! Isto assim não pode continuar! Afinal, é preciso inventar qualquer coisa para fazer!
O tenente Otto e o subtenente Fritz, dois alemães dotados de características fisionomias pesadas e graves, indagaram:
— O que podia ser, capitão?
Ele refletiu alguns segundos, e depois observou:
— O quê? Ora, é preciso organizar uma festa, caso o comandante o permita.
O major largou o cachimbo:
— Que festa, capitão?
O barão aproximou-se:
— Encarrego-me de tudo, comandante. Mandarei o ajudante de ordens a Rouen, e ele nos trará algumas damas. Sei onde encontrá-las. Uma ceia será preparada aqui. Aliás, nada falta, e passaremos uma noitada divertida.
O conde de Farlsberg meneou os ombros com um sorriso:
— O senhor está louco, meu amigo.
Mas todos os oficiais se tinham levantado e rodeavam o superior, suplicando:
— Comandante, consinta, por favor. É tão triste a nossa vida aqui.
— Está bem — concordou finalmente o major.
Sem perder tempo, o barão mandou chamar o ajudante de ordens. Era um velho subtenente, a quem jamais ninguém vira rir-se, mas que cumpria fanaticamente todas as ordens de seus superiores, fossem quais fossem.
Perfilado, rosto impassível, recebeu as instruções do barão. Retirou-se em seguida, e cinco minutos mais tarde um grande carro militar, coberto com um toldo encerado estendido à maneira de cúpula, deslocava-se apressadamente sob a chuva torrencial, ao galope de quatro cavalos.
Imediatamente um frêmito perpassou pelos espíritos, despertando-os. Os corpos languidamente recostados se aproximaram, animaram-se os rostos e todos se puseram a conversar.
Embora o aguaceiro continuasse a cair com a mesma intensidade, o major afirmou que já estava menos escuro, e o tenente Otto anunciou, convicto, que o céu ia clarear. O próprio Mlle. Fifi parecia inquieto. Levantava-se, tornava a sentar-se. Seu olhar claro e duro procurava algo para quebrar. De repente, fitando a dama de bigodes, o lourinho puxou o revólver:
— Você não assistirá a nada disso — declarou ele.
Sem se levantar da cadeira, fez pontaria, e duas balas sucessivamente furaram os dois olhos do retrato.
Exclamou depois:
— Agora vamos fazer a mina!
E as palestras interromperam-se, como se um novo e poderoso interesse a todos empolgasse. “Fazer mina” era a invenção de Mlle. Fifi, sua maneira de destruir, seu divertimento predileto.
Ao abandonar o castelo, o seu legítimo proprietário, conde Fernand d’Amoys d’Uville, não tivera tempo para transportar nem esconder coisa alguma, salvo a prataria oculta no oco de uma parede. Como era muito rico e munificente, o salão do castelo, cuja porta se abria para a sala de jantar, apresentava antes da fuga precipitada o aspecto de uma galeria de museu. Telas, desenhos e aquarelas de preço pendiam das paredes. Dispostos sobre os móveis e aparadores, e nas vitrines elegantes, mil bibelôs, porcelanas, estatuetas, figurinhas de Saxe e bonecos da China, marfins antigos e cristais de Veneza, enchendo o vasto aposento com a sua presença preciosa e rara.
Pouco restava de tudo aquilo. Não que os objetos houvessem sido pilhados, pois tal coisa o major conde de Farlsberg não teria permitido. Porém, de quando em quando, Mlle. Fifi preparava uma mina, e então os oficiais realmente se divertiam durante quinze minutos.
O marquesinho foi ao salão buscar o material de que precisava. Trouxe um bule de chá de porcelana chinesa, família rósea, sobremaneira frágil, que encheu de pólvora. Introduziu no bico, com delicadeza, um longo pedaço de estopim, e apressou-se em levar essa máquina infernal ao compartimento vizinho. Acendeu-o e regressou rápido, depois de fechar a porta. Os alemães esperaram de pé, o rosto sorridente espelhando uma curiosidade infantil. Assim que a explosão estremeceu o castelo, precipitaram-se todos para o salão.
Mlle. Fifi, o primeiro a entrar, batia freneticamente as mãos diante de uma Vênus de terracota, cuja cabeça afinal saltara. Cada um deles apanhou cacos de porcelana, admirando os estranhos recortes dos estilhaços, verificando os estragos novos e atribuindo outros a uma explosão anterior. E o major considerava com ar paternal o vasto salão, violentamente abalado por aquela metralha à maneira de Nero e coalhado de fragmentos de objetos de arte. Foi o primeiro a sair, depois de observar com bonomia:
— Desta vez foi um sucesso.
Mas tamanho turbilhão de fumaça invadira a sala de jantar, misturando-se ao fumo dos cachimbos, que ninguém mais conseguia respirar. O comandante abriu a janela, e os oficiais, que haviam retornado para beber um último copo de conhaque, foram-se aproximando.
O ar úmido penetrou no aposento, trazendo consigo uma espécie de poeira d’água e um cheiro de inundação. Puseram-se a contemplar as enormes árvores, vergadas pelo aguaceiro, o amplo vale obscurecido pela aglomeração de nuvens baixas e sombrias, e bem ao longe o campanário da igreja, alteando-se como uma flecha cinzenta no meio da chuva torrencial.
Desde que eles tinham chegado, os sinos da igreja haviam deixado de tocar. Era a única resistência com que os invasores tinham deparado nos arredores: a do campanário. O vigário absolutamente não se recusara a abrigar e alimentar soldados prussianos. Concordara até em beber uma garrafa de cerveja ou de bordeaux com o comandante inimigo, que muitas vezes o utilizava como intermediário voluntário. Porém, não lhe pedissem uma só badalada de seu sino! Mais depressa se deixaria fuzilar. Era a sua maneira de protestar contra a invasão: protesto pacífico, protesto de silêncio, o único, segundo dizia, adequado a um sacerdote, homem de doçura e não de sangue. E todos, numa circunferência de dez léguas, gabavam a firmeza, o heroísmo do Pe. Chantavoine, que ousava afirmar o luto público e proclamá-lo através do obstinado mutismo da sua igreja.
A aldeia inteira, entusiasmada com essa resistência, mostrava-se disposta a apoiar até o fim o seu pastor, disposta a tudo afrontar, pois considerava esse protesto tácito como um desagravo à honra nacional. Os camponeses tinham a impressão de que a pátria lhes devia mais do que a Blefort e a Strasbourg; parecia-lhes ter dado um exemplo equivalente, e que haviam imortalizado o nome da aldeia. Com exceção disso, nada recusavam aos prussianos vencedores.
Tanto o comandante como os oficiais se riam dessa inofensiva coragem. Como a região inteira se mostrava obediente e submissa para com eles, de boa vontade toleravam aquele silencioso patriotismo.
Apenas o pequeno marquês Wilhem teria gostado de forçar o sino a tocar. Irritava-o a condescendência política do seu superior em relação ao pároco, e todos os dias insistia com o comandante para que o deixasse fazer “ding-don-don” uma vez, uma única vez, somente para divertir-se um pouco. Fazia tal pedido com requebros felinos, meiguices femininas e as doçuras na voz que teria uma amante obcecada por um desejo. Mas o comandante não cedia, e para consolar-se Mlle. Fifi “fazia mina” no castelo de Uville.
Durante alguns momentos, os cinco homens permaneceram agrupados no mesmo lugar, aspirando a umidade. Enfim, soltando uma risada pastosa, o tenente Fritz assim se expressou:
— Aquelas senhorritas tecididamente não terrão uma tempo ponito para sua passeio.
Logo em seguida eles se separaram. Cada um retomou seu serviço, e o capitão ocupou-se com os múltiplos preparativos do jantar.
Ao cair da noite, quando novamente se encontraram, puseram-se a rir, vendo-se todos faceiros e reluzentes como nos dias de revista solene, os cabelos lustrosos, perfumados e limpos. Os cabelos do comandante se haviam tornado menos grisalhos do que pela manhã, e o capitão fizera a barba, só conservando o bigode ruivo, que lhe parecia uma chama sob o nariz.
Não obstante a chuva, deixaram a janela aberta, e de vez em quando um deles ia escutar. Às seis horas e dez minutos, o barão percebeu um rodar longínquo. Todos se alvoroçaram, e o enorme carro não tardou em aproximar-se, sem deter o galope dos quatro cavalos esbaforidos, enlameados até às costas.
Cinco mulheres desceram no patamar, cinco bonitas raparigas escolhidas a dedo por um companheiro do capitão. Não se tinham feito rogar, certas de que seriam bem pagas. Conheciam os prussianos, que há três meses agüentavam, e sabiam tirar partido tanto dos homens como das coisas. “São exigências da profissão” — explicavam, a caminho, sem dúvida para acalmar o secreto prurido de uns restos de consciência.
Imediatamente entraram na sala de jantar. Iluminada, esta ainda parecia mais lúgubre, deixando perceber o lamentável estado a que fora reduzida. A mesa farta de carnes, com a rica baixela e a prataria encontrada na parede onde a escondera seu proprietário, conferia-lhe o aspecto de uma taverna, na qual bandidos fossem cear depois de uma pilhagem. Radiante, o capitão apossou-se das raparigas como de objetos familiares, aquilatando-as como dispensadoras de prazer. Como os três mais moços se apressavam em fazer sua escolha, opôs-se categoricamente, atribuindo-se a partilha, que seria feita dentro da maior eqüidade, tendo-se em conta as patentes, a fim de que a hierarquia fosse respeitada.
Assim sendo, no propósito de evitar qualquer discussão, qualquer contestação, qualquer suspeita de parcialidade, alinhou-as pela estatura, e dirigindo-se à mais alta, indagou com voz de comando:
— Seu nome?
— Pamela.
— Número um, a chamada Pamela, adjudicada ao comandante.
Em seguida, depois de beijar em sinal de posse a Blondine, a segunda, ofereceu ao comandante Otto a rechonchuda Amanda, Eva ao subtenente Fritz, e Raquel, a mais baixa de todas, ao mais moço dos oficiais, o marquesinho Wilhem d’Eyrik. Raquel era morena muito jovem, de olhos negros como borrões de tinta, uma judia, cujo nariz adunco confirmava a regra que caracteriza sua raça,
Todas eram gordas e bonitas, sem fisionomias muito marcadas, como se as práticas quotidianas e a vida comum nos prostíbulos as tivessem tornado parecidas de rosto e de porte.
Os três jovens tencionavam subir com as suas damas, sob o pretexto de oferecer-lhes escovas e sabão para se lavarem. Prudentemente o capitão se opôs, declarando que estavam bastante limpas para sentarem-se à mesa, e argumentando que aqueles que subissem poderiam propor permutas, com isso perturbando os outros pares. Sua experiência deu-lhe ganho de causa.
Sentaram-se. O próprio comandante parecia encantado. Colocou Pamela à sua direita, Blondine à sua esquerda, e observou, ao desdobrar o guardanapo:
— O senhor teve uma ótima idéia, capitão.
Os tenentes Otto e Fritz, afetando polidez como se tratassem com senhoras da sociedade, intimidavam um pouco as suas vizinhas. Mas o barão de Kelweigstein, entregue ao seu prazer predileto, soltava palavras picantes, galanteava em francês do Reno, e seus cumprimentos de taverna, expectorados pela abertura dos dois dentes partidos, chegavam às raparigas de envolto a uma metralha de saliva.
De resto, elas não compreendiam coisa alguma, e sua inteligência só pareceu despertar quando ele começou a cuspir-lhes palavras obscenas, expressões cruas, que o seu sotaque estropiava. Então, todas ao mesmo tempo puseram-se a rir como loucas, repetindo as palavras que o barão se comprazia em deformar, a fim de obrigá-las a proferir obscenidades. Vomitavam tais obscenidades sem hesitar, bêbedas desde as primeiras garrafas de vinho. Tendo assim voltado a ser elas mesmas, e aberto a porta aos hábitos, bebiam em todos os copos, cantavam coplas francesas e trechos de canções alemãs aprendidas nos seus contatos quotidianos com o inimigo.
Bem depressa os homens, também embriagados, puseram-se a berrar e a quebrar a baixela, enquanto às suas costas, impassíveis, os soldados os serviam.
O comandante era o único a guardar a compostura.
Tinham chegado à sobremesa. O champanhe estava sendo servido. O comandante levantou-se, e no mesmo tom que empregaria para erguer um brinde à imperatriz Augusta, saudou:
— Às nossas damas!
Foi o início de uma série de toasts, de galanterias de soldados bêbedos misturadas a gracejos obscenos, que a ignorância do idioma tornava ainda mais brutais. Um por um eles se levantaram, tentando mostrar-se espirituosos, esforçando-se por parecer engraçados. E as mulheres embriagadas, olhos vagos, lábios pastosos, aplaudiam freneticamente.
Na provável intenção de acrescentar um toque galante à orgia, mais uma vez o capitão ergueu o copo e proferiu:
— Às nossas vitórias sobre os corações!
Então o tenente Otto, espécie de urso da Floresta Negra, retesou-se, inflamado, saturado de bebidas.
Subitamente possuído de patriotismo alcoólico, gritou:
— Às nossas vitórias sobre a França!
Por mais bêbedas que estivessem, as mulheres calaram-se. Raquel, trêmula, retrucou:
— Fique sabendo: conheço franceses diante dos quais você não falaria assim.
O marquesinho pôs-se a rir, pois o vinho o deixara muito alegre:
— Ah! ah! ah! Nunca vi esses franceses. Mal aparecemos, eles somem!
— Você está mentindo, seu sujo! — gritou-lhe ao rosto a rapariga, exasperada.
Durante um segundo ele fixou nela os olhos claros, tal como os fixava nas telas quando as furava a tiros de revólver, e depois soltou uma risada.
— Ah! Quanto a isso, beleza, acaso estaríamos aqui se eles fossem valentes? Somos donos dos franceses! A França é nossa! — Levantou-se, estendeu o copo até ao centro da mesa, e repetiu: — A França é nossa, assim como os franceses, os bosques, os campos e as casas da França!
Completamente bêbedos, subitamente dominados por um entusiasmo militar, um entusiasmo de brutos, os outros também empunharam os copos, vociferando:
— Viva a Prússia! — e esvaziaram os copos de um só trago.
As raparigas não protestavam, emudecidas e presas do medo. A própria Raquel calava-se, impotente para responder. Foi então que o marquesinho colocou sobre a cabeça da judia a taça de champanha que tornara a encher, e gritou:
— A nós também todas as mulheres da França!
Raquel se pôs de pé rapidamente, derramando sobre seus cabelos o cálice de champanhe, que em seguida caiu ao chão, espatifando-se. Com os lábios trêmulos, afrontava com o olhar o oficial, que continuava a rir-se. E balbuciou, com voz sufocada pela cólera:
— Isso… isso não é verdade! Absolutamente vocês não terão as mulheres da França!
Ele se sentou, para rir-se mais à vontade, e procurando imitar o sotaque parisiense:
— Essa é pem poa, pem poa, enton que veiu facer aqui, pequena?
Interdita, ela se calou, tão perturbada que não podia compreender bem o que ele dizia. Depois, assim que alcançou o sentido daquelas palavras, retorquiu, indignada e veemente:
— Eu… eu… não sou mulher, sou prostituta. É o que serve para vocês, prussianos.
Nem bem terminara, e ele já a esbofeteara com força. Ao vê-lo erguer a mão outra vez, enlouquecida pela raiva, Raquel apanhou na mesa uma faca, e bruscamente cravou-a no pescoço do marquesinho, bem no côncavo onde começa o peito. A palavra que articulava foi cortada na garganta, e ele se quedou de boca escancarada, com olhar terrível.
Um bramido ergueu-se, e todos se levantaram em tumulto. Porém, depois de atirar sua cadeira às pernas do tenente Otto, que se estatelou no chão, Raquel correu à janela, abriu-a antes que conseguissem alcançá-la, e desapareceu na noite, sob a chuva que continuava a cair.
Dois minutos depois, Mlle. Fifi morria. Então Fritz e Otto desembainharam as espadas e quiseram trucidar as outras mulheres. Não sem dificuldade, o major impediu o morticínio e mandou fechá-las num quarto, sob a guarda de dois soldados.
Tal como se dispusesse militares para um combate, o major organizou a perseguição à fugitiva, plenamente convencido de que seria capturada. Cinqüenta homens, fustigados por ameaças, foram lançados ao parque. Duzentos outros esquadrinharam os bosques e as casas do vale.
A mesa, instantaneamente desocupada, servia agora de leito mortuário. Os quatro oficiais, dissipada a embriaguez, rígidos e perfilados junto às janelas, com a fisionomia de guerreiros em serviço, sondavam a noite.
A chuva torrencial continuava. Um marulhar contínuo enchia as trevas, murmúrio ondeante de água que cai e de água que escorre, de água que goteja e de água que esguicha.
De repente ressoou um tiro, depois outro, muito ao longe. Durante algumas horas, de quando em quando repercutiram detonações próximas ou distantes, assim como gritos para reunir e palavras estranhas, lançadas como apelos por vozes guturais. Pela manhã todos regressaram. Dois soldados haviam sido mortos e três outros feridos por companheiros, durante a caçada, na confusão daquela perseguição noturna.
Raquel não fora encontrada.
Em conseqüência, os habitantes do lugar foram submetidos a um regime de terror, as casas revistadas, toda a região percorrida, explorada, revolvida. A judia parecia não haver deixado um único vestígio da sua passagem.
Informado, o general ordenou que se abafasse o caso, para não dar maus exemplos ao exército, e infligiu uma pena disciplinar ao comandante, que por sua vez puniu seus inferiores. O general dissera:
— Ninguém faz guerra para se divertir e meter-se com mulheres da vida.
E o conde de Farlsberg, exasperado, resolveu vingar-se sobre a região. Como necessitasse de um pretexto para exercer livremente as suas represálias, mandou chamar o vigário e deu-lhe ordem para tocar o sino por ocasião do sepultamento do marquês d’Eyrik. Contra a sua expectativa, o sacerdote mostrou-se dócil, humilde, cheio de deferência.
Quando o corpo de Mlle. Fifi, carregado por soldados, precedido, cercado e acompanhado por soldados que marchavam de armas embaladas, deixou o castelo de Uville a caminho do cemitério, pela primeira vez o sino dobrou a finados, mas com um ritmo vivo, como se mão amiga o acariciasse.
Ressoou também à noite, no dia seguinte, e todos os dias daí em diante. Repicou todas as vezes que desejaram. Mesmo durante a noite, acontecia-lhe agitar-se sozinho, de manso, e lançar à sombra duas ou três sonoridades, tomado de estranhas alegrias, despertado não se sabia por quê. Os camponeses do lugar deram-no como enfeitiçado, e ninguém, salvo o vigário e o sacristão, se aproximava do campanário.
É que uma pobre rapariga vivia lá no alto, na angústia e na solidão, alimentada às escondidas por aqueles dois homens.
No alto permaneceu até a retirada das tropas alemãs. Certa noite, tendo pedido emprestado a carroça do padeiro, o próprio vigário conduziu sua prisioneira às portas de Rouen. Algum tempo depois um patriota a desposou, entusiasmado pela bela ação que praticara.

1882.





Nenhum comentário:

Postar um comentário