segunda-feira, 7 de outubro de 2019

Carolina Borges / A multiplicidade de Fernando Pessoa

Pessoa
David Levine

A multiplicidade de Fernando Pessoa

por Carolina Borges

É tarefa impossível escrever sobre vida e obra de Fernando Pessoa utilizando os padrões biográficos comuns. Só para começarmos a falar desse gênio da literatura é preciso ter em mente que não existe um único Fernando Pessoa, mas exatamente 127 heterônimos que vão muito além da ideia de se esconder ou se proteger atrás de um nome falso. Em se tratando de Pessoa, cada heterônimo possui escrita e personalidade próprias, além de uma história de vida única. Segundo o crítico literário Harold Bloom, sua obra pode ser considerada um “legado da língua portuguesa ao mundo”.

Formalmente sabemos que Fernando António Nogueira Pessoa, que deu vida a tantos outros seres, nasceu em Lisboa no dia 13 de junho de 1888 e morreu na mesma cidade em 30 de novembro de 1935, foi educado na África do Sul, onde aprendeu fluentemente o inglês (escrevendo poesia e prosa nessa língua também) e ao longo da vida trabalhou em várias firmas comerciais de Lisboa como, o próprio define, “correspondente estrangeiro”. Foi também empresário, editor, crítico literário, jornalista, comentador político, tradutor, inventor, astrólogo e publicitário, ao mesmo tempo em que produzia a sua vasta obra literária em verso e em prosa. Teve um longo relacionamento com Ophélia Queiroz, mas não chegou a casar-se nem ter filhos.

José Paulo Cavalcanti Filho tentou explicar essa trajetória no livro Fernando Pessoa – uma quase autobiografia (Editora Record) , o livro é fragmentado, misturado, recortado e costurado, assim como a própria obra do autor português. Não poderia ser de outra forma nessa “quase autobiografia” que tenta condensar e explicar essa obra descontínua (e genial), na qual poemas, prosa e personalidades se misturam como um fluxo de pensamento .

O próprio Fernando Pessoa, numa tentativa de elucidar (ou confundir ainda mais) as questões a respeito de quem seria o verdadeiro homem por trás do(s) escritor(es), escreveu em 1935 uma Ficha Pessoal, também referida como nota autobiográfica, intitulada Fernando Pessoa, dactilografada e assinada pelo escritor em 30 de março. Publicada pela primeira vez, muito incompleta, como introdução ao poema À memória do Presidente-Rei Sidónio Pais, editado pela Editorial Império em 1940, foi finalmente publicada em versão integral em1988, na obra Fernando Pessoa no seu Tempo(Lisboa, Biblioteca Nacional)


Alguns trechos da Ficha são bastante interessantes, por exemplo, ele define sua profissão como a de tradutor, mais especificamente de “correspondente estrangeiro” e afirma que ser poeta e escritor não constitui profissão, mas vocação. Além disso, ele define ser o sistema monárquico o mais próprio para Portugal, se declara um cristão gnóstico e “portanto inteiramente oposto a todas as igrejas organizadas e, sobretudo, à Igreja Católica”, também afirma ser anti-reaccionário, anti-comunista e anti-socialista. Como se não bastassem tantas informações sobre essa personalidade ímpar, na Ficha ainda descobrimos que Pessoa “tem íntimas relações com a Tradição Secreta em Israel (a Santa Kabbalah) e com a essência oculta da Maçonaria” além de se considerar um “partidário de um nacionalismo místico, de onde seja abolida toda a infiltração católico-romana”. Ele afirma ter como ídolo Jacques de Molay, Grão-Mestre dos Templários e, por fim, se compromete a sempre combater os assassinos de Molay: a Ignorância, o Fanatismo e a Tirania.

Em relação às obras publicadas, o próprio Pessoa é o mais indicado para nos apresentá-las, na Ficha Pessoal, ele preenche o tópico Obras que tem publicado, da seguinte forma : “A obra está essencialmente dispersa, por enquanto, por várias revistas e publicações ocasionais. É o seguinte o que, de livros ou folhetos, considera como válido: 35 Sonnets(em inglês), 1918; English Poems I-II e English Poems III (em inglês também), 1922; livroMensagem, 1934, premiado pelo Secretariado de Propaganda Nacional na categoria Poema. O folheto O Interregno, publicado em 1928 e constituído por uma defesa da Ditadura Militar em Portugal, deve ser considerado como não existente. Há que rever tudo isso e talvez que repudiar muito”.

Certa vez ouvi que Fernando Pessoa abandonou a faculdade de Letras para se tornar a própria faculdade de Letras, provavelmente ele achava que perdia muito tempo no mundo universitário ( e tinha certa razão). Hoje, ironicamente, ele é o um dos autores mais estudados e intrigantes, tanto para quem estuda as Letras, quanto para qualquer um que seja minimamente curioso e aprecie literatura. É simplesmente incrível ver escritas tão diferentes vindas da mesma pessoa e de pessoa alguma, os heterônimos Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Alberto Caeiro (só para citar alguns dos mais famosos) se apresentam não como Fernando travestido de outros nomes, mas como autores completamente diferentes com biografias, temas e poética tão diversa como conflituosa, constantemente um heterônimo desmentia o outro, tomando posições e ideologias antagônicas.

Já que é impensável definir, e sendo assim acabar por limitar Fernando Pessoa, podemos certamente dizer que trata-se de um gênio que via a tumultuada transição do século XIX para o XX não de uma posição única que pressupunha a verdade absoluta mas, através dos heterônimos, pôde nos deixar uma vasta obra que abarca senão todos, a maior parte, dos aspectos e possíveis visões desse período, além, é claro, de uma literatura nova, reflexiva e, sobretudo, bela.



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