Parasita, um canto de amor ao cinema
Bong Joon-Hu dirige um filme que é comédia, tragédia grotesca, noir e história de terror. Não perca este filme, alheio a uma sutileza de prestígio, direto e quase lindamente literal
Marta Sanz
7 de noviembre de 2019
Não é minha intenção usurpar o posto de nenhum crítico de cinema do EL PAÍS. Deus me livre. No entanto, toda vez que encontro um tempo para o “lazer” –sempre escrevo e pronuncio entre aspas–, libertando-me de um cotidiano alienado, hiperconectado e medroso em relação ao trabalho, descubro excelentes filmes no escurinho dos cinemas. O que eu digo não nasce do deslumbramento de uma garota abduzida pelo desejo desmaterializador de aproximar o dedo da tela para desintegrá-lo em moléculas coloridas de luz ou, inversamente, para encarniçar imagens sempre fantasmagóricas.
Estremeci com Parasita, filme que ganhou a Palma de Ouro do Festival de Cannes e que foi eleito melhor filme na Mostra de Cinema de São Paulo, dirigido pelo coreano Bong Joon-Hu. Primeiro, por causa do vício hitchcockiano de me sentir desafiada por filmes que começam parecendo uma coisa e acabam sendo outra e outra e outra. Como em Psicose: começamos fugindo ao lado de uma bela delinquente e acabamos em um porão aterrorizante. Vejo Parasita e descubro pelo menos três ou quatro filmes que convergem em um que me interessa por causa de sua maneira de se conectar com Hitchcock, Losey, Chabrol, com o picaresco e a servidão de canino retorcido de Tom Jones, de Henry Fielding. Como eu gosto dos retratos dessa gente do serviço que, em vez de dedicar suas vidas aos patrões –os bonzinhos de Downton Abbey–, os suplantam e se banham em bolhas de sabão que não lhes tiram o cheiro de roupa fervida nem a rusticidade de seus modos. Como eu gosto daquelas criadas que furtam e vão aos programas de fofocas para revelar as intimidades daqueles que as exploram. A ardente quebra de confidencialidade, comprada com uns trocados, me excita.
Bong Joon-Hu dirige um filme que é comédia, tragédia grotesca, noir, história de terror e da desiludida fosforerita, denuncia as relações de poder –familiares, sexuais, educacionais, trabalhistas– que definem a convivência na Coreia do Sul. Com A Vegetariana, o excelente romance de Han Kang, escritora também sul-coreana, entendemos até que ponto a fusão Ocidente-Oriente, através da roda-viva da globalização, acaba sendo grosseira e selvagem: uma simulação sempre destrutiva e paródica de famílias felizes à moda norte-americana. Simulações de ricas que se liberam comprando. Crianças com traumas de Illinois. Professores de inglês. Churrascos. Abaixo, no subsolo, a realidade dos percevejos e piolhos nos quais repousam as riquezas, o perigo de que detone um explosivo rancor de classe.
A lógica do capitalismo enfrenta o espírito criativo e empreendedor dos patrões com a preguiça e as emanações etílicas de motoristas e empregadas domésticas. Os professores fazem parte do serviço e cada capricho se compra com dinheiro. Os de cima, estadosunidenizados mais do que ocidentalizados, não toleram os que de baixo “passem dos limites”. Para os de cima, os de baixo cheiram mal, por mais que precisem deles; os de baixo lutam entre si e sublimam sua merda –as águas fecais entre as quais literalmente vivem– com a fantasia cômica de seus privilégios em relação ao grande monstro norte-coreano. E até aí posso ler. Não perca este filme, alheio a uma sutileza de prestígio, direto, quase lindamente literal e ao mesmo tempo um canto de amor ao cinema. Eu, que tento servir sem ser serva, me sinto infectada por esses parasitas. A infecção se relaciona com o mundo em que vivemos e com minha propensão a pegar piolhos no cinema quando era pequena.
EL PAÍS
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