sábado, 10 de setembro de 2022

Em busca do império dos afetos "Fragmentos de um discurso amoroso"

 

Dançarinos se misturam com pessoas nas ruas do México


Em busca do império dos afetos

"Fragmentos de um discurso amoroso"

31 AGOSTO 2022, 

Encontramos nas culturas populares dispositivos para modos de sobrevivência. Esses mecanismos existem como suporte que gera a liga da convivência na sociedade. Por sua vez, as culturas populares impulsionam a mudança social pela vontade de lugar de fala, pelo descontentamento da ordem imposta e para a reatualização de sua dinâmica. As culturas populares são provocadoras. E como são!

Digamos que as culturas populares reagem ao sistema de maneira singular e surpreendente. Por sua forma de sobrevivência, elas ressoam modos de vida entre o céu e a terra, onde precisamos da ternura. Como diz Luis Carlos Restrepo, a “ecoternura é desburocratizar o conhecimento, convertendo sua produção e conservação numa prática de autogestão” (Restrepo, 1998, p. 85). Ainda acrescenta Restrepo, “conviver num ecossistema humano implica uma disposição sensível a reconhecer a diferença, assumindo com ternura as ocasiões que nos oferece o conflito para alimentar o mútuo crescimento.”

Então, para construir um império dos afetos, será necessário irmos em busca do direito à ternura, que anda bastante esquecida na nova era virtual. Ainda que, por muito tempo, fomos criados para não apresentarmos fraqueza afetiva, que colaborou com o início do analfabetismo afetivo. Segundo Restrepo, o “analfabetismo afetivo” dificulta compreender as raízes de nosso sofrimento e ainda impede de encontrar as chaves para melhorar nossa vida cotidiana. Só nos resta então sentir com as vísceras, splacnisomai!

Splacnisomai é uma palavra que corresponde à conjugação de um verbo desaparecido entre os séculos II e III, do original grego do Novo Testamento. Utilizado pelos evangelistas, o termo refere-se à dimensão milagrosa de Cristo, afirma Restrepo. Tiramos da educação o tato, o olfato e o paladar. Com isso, ocorreu uma fratura nos afetos. Em muitos lugares, o cheiro é sinônimo de sabedoria. Mas nem tudo está perdido.

Temos no folclore ou cultura popular um patrimônio cultural que exala ternura. Por exemplo: como nasce um bumba meu boi? Como se dança o cacuriá no Estado do Maranhão? O que devemos oferecer à comadre florzinha? Qual a receita do bolo de rolo de Dona Maria, em Pernambuco? Qual a melhor cantiga de ninar para embalar um filho? Será que devo deixar meu chinelo emborcado? Qual a melhor oração para acalmar uma criança? Por onde anda o homem do saco e o papa figo? E a gata pintada? Quem te pintou?

Tudo isso forma o império dos afetos. Já dizia Roland Barthes, “Onde és terno, dizes plural”. Para tanto, ser humano é considerar que temos fragilidade. É uma pena o sistema não reconhecer a cognição afetiva. Ela está presente no folclore, onde produz e reproduz singularidades. Como exemplo temos os mestres da cultura popular, onde cada um apresenta seu afeto com sua manifestação e seus folguedos. Não existe o melhor, existe a ternura. Os mestres têm formosura. São capazes de falar de política, religião e brincadeira sem perder a ternura. Sabem por quê? Porque a ternura está sempre presente. Mesmo assim, com tanta tecnologia e com a exaltação do consumo, os brincantes não confundem razão com ternura. Eles sabem que uma ideia se vence com outra ideia, sem perder a essência do encontro e das vivências entre o céu e a terra. Para tanto, devemos observar a potencialidade de cada ser humano. Mas por que não fazemos da educação uma consciência afetiva? Qual projeto de futuro queremos para a educação? Quais os caminhos possíveis para unirmos ciência com afetos? Como pode um trabalhador que corta cana de açúcar usar o surrão, fantasia do maracatu rural?

A socióloga Maria Isaura Pereira de Queiroz afirmava que é pelo afeto. O afeto explica toda forma de ternura nas relações sociais. Nas convivialidades, o que ressoam são os costumes. Por sua vez, a cultura popular é uma fonte de ternura.

Digamos que a crise nas ciências sociais esteja voltada pela distância na cultura, que é fonte de identidade. A tradição é a ressonância da ternura entre o antigo e o que está por vir. Não se pode separar os costumes das questões políticas.

Assim, somos conectados com o mundo e por isso somos ressonantes diante de nossas convivialidades. O cotidiano é solo fértil de ressonâncias. Como afirma Hartmut Rosa, “os seres humanos são, antes de mais nada, seres ressonantes”.

Por isso a simplicidade é a maior sofisticação, como afirma Leonardo da Vinci.

Digamos que essas questões são de muita utilidade no cotidiano, que é lugar de recriação da ordem. E, para tanto, necessitamos de uma conexão com o folclore e a cultura popular. Esta conexão faz dos seres humanos mais humanos. Talvez precisaremos deixar de nos acostumar com a pedagogia do terror, segundo Restrepo. Quando a singularidade desaparece damos espaço para a violência. Por tudo isso devemos apresentar caminhos possíveis para a pedagogia da ternura por meio da cidadania do afeto. Ternura não é só simpatia, pois a ternura é concebida como ato de conquista.

Não precisas trazer presentes, nem rimas, nem flores e nem nada. Basta trazeres o que sentes.

(Carlos Drummond de Andrade)


MEER

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