Mamãe diz para eu tomar o café da manhã na cozinha, que já estava na mesa, e não ir pro quintal. Em vez disso, vou pro banheiro lavar o rosto, fazer xixi, e volto pro quarto. Espio pela fresta da janela. Lica está no chão de azulejos, não se mexe. Meus pais sussurram sobre o que fazer com “o corpo”, enquanto papai segura um saco de lixo preto, dos grandes. Só vejo partes de tudo, porque a fresta não ajuda.
Lágrimas, lágrimas, saio correndo pro quintal, mamãe me manda voltar pra dentro, não volto, só quero me despedir, fazer um último carinho. Sei que a Lica não vai mais voltar. Eles tentam me acalmar, volto pro quarto e me jogo na cama.
Quando nasci, a Lica já estava aqui, já era parte da família. Passamos juntas metade da vida dela, o que é bastante tempo. Meus pais contavam que a Lica veio ainda filhote quando eles começaram a namorar, se mudou para a casa que eles compraram depois do casamento, dormia no quarto deles até antes de eu nascer. Cheguei e desequilibrei o mundo dela, acho. Mas depois ficamos amigas.
Já é noite e o saco preto ainda está num canto do quintal. Pergunto o que vão fazer com a Lica, papai diz que vai enterrar num lugar bonito, com sombra e flores, no sítio do vovô, e que posso visitar sempre que quiser, agora ela está no céu, brincando com outros cachorros.
Antes de dormir, penso num caixão especial para cães, com desenhos de ossinhos, e se meu pai jogaria uma flor sobre esse caixão, como fazem nos filmes, antes de começar a jogar terra com a pá. Eu não estaria lá para jogar uma flor, ou talvez um biscoito em formato de osso que ela gostava. Sinto uma dor no peito.
***
Uns dias depois, mamãe diz para eu pegar uns brinquedos, colocar na mochila, porque a gente vai pra casa da minha tia. Não entendo nada, mas faço o que ela pede. Estou de férias e a gente vai pra praia com a tia Maya e a Julinha, só pode. Mas tinha muita, muita coisa dentro do carro. E o papai? Ela não responde rápido, mas depois diz que papai está no trabalho. Fico triste ao pensar que ele vai encontrar a casa vazia quando chegar mais tarde.
ALINE NAOMI
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