quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

A tentação de se eternizar no poder

Hugo Chávez
A tentação de se eternizar no poder

Na América Latina, líderes de esquerda e de direita tentam prolongar seu domínio




Um fantasma percorre a América Latina: a tentação dos presidentes de não largar o poder. Sua ideologia não os distingue. Esquerdistas como Hugo Chávez e Rafael Correa, assim como o direitista Alberto Fujimori, mudaram as constituições de seus países com a intenção de se eternizarem no poder. Diferentemente dos caudilhos do passado, que se impunham com a força das tropas ou faziam fraudes visíveis, os mandatários de hoje ganham eleições que são tecnicamente limpas, mas que ocorrem em disputas que favorecem descaradamente os candidatos que já são presidentes. Não que todos os presidentes da região padeçam dessa febre. Há alguns, como o presidente José Mujica, que rejeitaram a ideia da reeleição indefinida. Outros, como Álvaro Uribe, foram detidos pelas instituições da democracia constitucional.
Um dos desafios democráticos é seguir os preceitos para abandonar o poder. Por mais que doa aos presidentes em seus mandatos, o poder, em uma democracia, não pertence a ninguém. As revoluções democráticas dos séculos XVIII e XIX decapitaram a cabeça do rei. O poder deixou de estar encarnado na figura do representante de Deus na Terra e passou às mãos de seres comuns, de carne e osso, que só podem ocupá-lo temporariamente. A figura do presidente não foi a mesma da pessoa que temporariamente ocupa a cadeira da Presidência. Os políticos fizeram cálculos para se protegerem quando inevitavelmente saírem do poder, passarem à oposição e precisarem de garantias para continuar fazendo política.
Rafael Correa compartilha a missão de Chávez de conduzir sua pátria à segunda e verdadeira independência. Prometeu e cumpriu dar fim ao neoliberalismo, e seu governo distribuiu o rendimento do petróleo. Isso não atingiu as fortunas dos grupos mais poderosos, e junto a seu governo emergiram novas fortunas, como na Venezuela. Prometeu uma revolução do povo que se reduziu a convocar eleições sem os mecanismos participativos que Hugo Chávez impulsionou. Assim como o ex-presidente venezuelano, Correa não é um político mais, eleito para um mandato ou, quando muito, para dois. É mais como um pai da pátria. Os pais têm a obrigação de zelar pelo bem-estar de seus filhos por toda a vida. Sua missão não pode ser limitada por “legalismos” como os limites à reeleição presidencial.

Diferentemente dos políticos que se veem como responsáveis temporários pelo poder, alguns acreditam ter a missão de redimir sua pátria e seu povo. O sentido de missão foi eloquentemente articulado por Hugo Chávez quando ele transmitiu pela televisão para toda a Venezuela uma missa familiar durante a Semana Santa de 2012. Chávez pediu vida ao Criador: “Dá-me vida porque ainda tenho muito para fazer por este povo e esta pátria. Não me leve ainda. Dá-me tua cruz, dá-me teus espinhos, dá-me teu sangue, que estou disposto a carregar tudo, mas com vida, Cristo, meu Senhor. Amém”.
Os patriarcas redentores infantilizam os cidadãos quando se assumem como as figuras indispensáveis que devem guiá-los. Como bons pais, baseiam todas as suas ações no amor: amam sua pátria, seus pobres, a América Latina. Se os cidadãos aceitam seu carinho, são premiados; do contrário, podem ser castigados. Jornalistas, caricaturistas, apresentadores de televisão foram punidos. As ONGs, em especial as que se opõem ao extrativismo e trabalham com os indígenas, são tachadas de armas do imperialismo. Centenas de ativistas foram acusados de terrorismo pelo governo de Correa, e as principais vítimas de sua repressão seletiva são a esquerda organizada nos partidos Pachakutik e MPD.
Suas lideranças não são submetidas à disciplina partidária nem à legalidade, que está nas mãos de pessoas próximas ao Executivo. Na ausência de mecanismos legais internos, e com todas as instituições de prestação de contas nas mãos de figuras leais aos presidentes, os líderes de movimentos sociais, os jornalistas e ativistas recorrem a órgãos internacionais para resistir aos ataques aos movimentos sociais e à liberdade de expressão. Essas organizações internacionais, assim como as organizações da sociedade civil transnacional, questionam esses governos por seus ataques à liberdade de expressão e aos direitos civis. As críticas externas foram usadas para que eles se apresentassem com vítimas de conspirações imperialistas.
Correa provavelmente será reeleito pela quarta vez em 2017. Sem mecanismos institucionais que regulem sua ânsia de poder, ocupará a presidência enquanto tiver saúde e não ocorrer um escândalo de corrupção como o que pôs fim ao governo de Alberto Fujimori. Quando os presidentes tentam se eternizar no poder, dão fim à ideia da democracia como espaço vazio que os políticos só podem ocupar temporariamente. Tentam costurar a cabeça do rei no corpo decapitado da democracia. O messias é o patriarca que vai guiar seus filhos à redenção, mesmo que à custa de acabar com as instituições e normas que permitem o pluralismo democrático e a construção da cidadania autônoma
Carlos da Torre é Diretor de Estudos Internacionais da Universidade de Kentucky




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