Kilimanjaro
é uma montanha coberta de neve, a 6.000 metros de altitude, e diz-se que é a
montanha mais alta da África. O seu pico ocidental chama-se ‘Ngàge Ngài’, a
Casa de Deus. Junto a este pico encontra-se a carcaça de um leopardo. Ninguém
ainda conseguiu explicar o que procurava o leopardo naquela altitude.
— O que é fantástico é que isto
é indolor — disse ele.
— É assim que ficamos a saber
quando ela começa.
— É assim realmente?
— Absolutamente. Mas, desculpa
este cheiro. Deve incomodar-te.
— Não! Por favor, não digas
isso.
— Olha para eles —, disse ele.
— É o que vêem ou o que lhes cheira que os atrai desta maneira? A cama de lona
em que o homem estava deitado estava na extensa sombra de uma mimosa, e quando
ele olhou para além da sombra, no brilho intenso da planície viam-se três
daquelas aves obscenamente agachadas, enquanto, no céu, mais uma dúzia voava,
fazendo sombras velozes quando passavam.
— Eles andam ali desde o dia em
que a camioneta avariou — , disse ele. — Hoje foi a primeira vez que alguns
pousaram. Reparei na maneira como eles voam, ao princípio com muito cuidado,
para o caso de eu alguma vez os querer utilizar numa história. É engraçado.
— Espero que não —, disse ela.
— Estou só a falar —, disse
ele.
— As coisas ficam mais fáceis
se eu falar. Mas não quero incomodar-te.
— Tu sabes bem que isso não me
incomoda —, disse ela. — É que fiquei tão nervosa por não poder fazer qualquer
coisa. Parece-me que devíamos facilitar as coisas o mais possível até que o
avião chegue.
— Ou até que o avião não
chegue.
— Diz-me, por favor, o que é
que eu posso fazer. Há-de haver alguma coisa que eu possa fazer.
— Podes arrancar-me a perna, e
isso talvez resolvesse a questão, embora tenha as minhas dúvidas. Ou podes
dar-me um tiro. Tu já tens uma boa pontaria. Eu ensinei-te a atirar, não foi?
— Por favor, não fales assim.
Eu podia ler-te qualquer coisa.
— Ler o quê? — Um livro
qualquer daqueles que estão no saco e que ainda não lemos.
— Não estou capaz de ouvir —,
disse ele. — Falar é mais fácil. Discutimos, e isso ajuda a passar o tempo.
— Eu não discuto. Eu nunca
quero discutir. Vamos acabar com as discussões. Por mais nervosos que
estejamos. Talvez eles voltem hoje com outra camioneta. Talvez o avião chegue.
— Eu não quero sair daqui —,
disse o homem. — Não faz sentido sair daqui, a não ser para te facilitar as
coisas.
— Isso é cobardia.
— Será que tu não és capaz de
deixar uma pessoa morrer sem lhe chamar nomes? De que serve insultares-me?
— Tu não vais morrer.
— Não sejas parva. Eu já estou
a morrer. Pergunta àqueles canalhas.
Olhou para o sítio onde estavam
aquelas enormes aves imundas, agachadas, com as cabeças nuas enterradas nas
penas arqueadas. Uma quarta desceu em vôo planado, para depois correr
rapidamente, e finalmente, bamboleando-se, caminhou vagarosamente em direção às
outras.
— Eles andam sempre por perto
em todos os acampamentos. A gente nunca repara neles. Tu não morres se não
desistires.
— Onde é que leste isso? És uma
idiota chapada.
— Podias pensar em arranjar
outra pessoa.
— Por amor de Deus —, disse
ele. — Não tenho feito outra coisa.
Estendeu-se então na cama e
ficou calado por momentos a olhar para a orla do bosque através da luz tremula
do calor. Muito longe, viu uma manada de zebras brancas, contra o fundo verde
do bosque. O acampamento era agradável, sob grandes árvores, junto a uma
colina, com boa água, e, muito perto, um charco quase seco, onde, de manhã,
voavam galinhas bravas.
— Não queres que te leia
qualquer coisa? — perguntou ela. Estava sentada numa cadeira de lona ao lado da
cama. — Está-se a levantar uma brisa.
— Não, obrigado.
— Talvez a camioneta venha.
— A camioneta não me interessa
nada.
— A mim interessa.
— A ti interessam-te tantas
coisas que a mim não interessam nada.
—
Não são assim tantas, Harry.
— E se eu bebesse qualquer
coisa?
— Deve fazer-te mal. Diz no
Black que se deve evitar o álcool. Não devias beber.
— Molo! — Chamou ele.
— Diga, Bwana.
— Traz-me whisky-soda.
— Sim, Bwana.
— Não devias —, disse ela. — É
isso que eu quero dizer com desistir. Faz-te mal. Eu sei que te faz mal.
— Não —, disse ele. — Faz-me
bem.
Portanto, agora acabou-se,
pensou ele. Já não teria oportunidade de o acabar. Portanto, o fim era assim,
uma questiúncula acompanhada de uma bebida. Desde que a gangrena começara na
perna direita ele não sentia dores, e com a dor fora-se também o horror, e tudo
o que ele agora sentia era um grande cansaço e irritação por aquilo ser o fim.
Em relação àquilo que estava para chegar, não tinha grande curiosidade. Durante
anos, tinha-o obcecado; mas agora não significava nada em si mesmo. Estranho,
como o cansaço facilitava as coisas. Já não escreveria as coisas que tinha
reservado só para escrever quando soubesse o bastante para escrever bem. Bom,
também não teria de falhar na tentativa de as escrever. Talvez nunca viesses a
ser capaz de as escrever, e essa era a razão por que as adiavas e atrasavas o
seu começo. Bem, agora, nunca viria a saber.
— Estou arrependida de ter
vindo —, disse a mulher. Estava a olhar para ele, com o copo na mão e a morder
o lábio.
— Tu nunca terias arranjado um
problema como este em Paris. Sempre disseste que adoravas Paris. Podíamos ter
ficado em Paris ou ido a outro sítio qualquer. Eu teria ido para outro sítio
qualquer. Eu disse-te que ia para onde tu quisesses. Se querias caçar podíamos
ter ido caçar confortavelmente na Hungria.
— O teu maldito dinheiro —,
disse ele.
— Isso não é justo —, disse
ela.
— Foi sempre tanto meu como teu.
Deixei tudo e fui sempre para onde quer que tu quisesses ir, e fiz o que tu
querias fazer. Mas nunca devíamos ter vindo.
— Tu disseste que adoravas.
— Sim, mas quando estavas bem.
Agora detesto. Não percebo como é que isto te havia de acontecer à perna. O que
é que nós fizemos para isto nos acontecer?
— Parece-me que o que eu fiz
foi esquecer-me de lhe pôr tintura de iodo quando a cocei a primeira vez.
Depois não lhe dei importância porque nunca tinha tido uma infecção. Mais
tarde, quando piorou, foi provavelmente o ter usado aquela solução de fénico,
quando os outros anti-sépticos acabaram que paralisou os minúsculos vasos
sanguíneos e provocou a gangrena. — Ele olhou para ela, — Que mais?
— Eu não queria dizer isso.
— Se tivéssemos arranjado um
bom mecânico em vez de um motorista kukuyu sem experiência, ele teria
verificado o óleo e aquele rolamento da camioneta não se teria queimado.
— Eu não queria dizer isso.
— Se tu não tivesses deixado a
tua maldita gente de Old Westbury, Saratoga, e Palm Beach…
— Oh, eu amava-te. Isso não é
justo. E ainda te amo. Sempre te amarei. E tu não me amas?
— Não —, disse o homem. —
Parece-me que não. Nunca te amei.
— Harry, que estás a dizer?
Perdeste a cabeça.
— Não. Não tenho cabeça nenhuma
para perder.
— Não bebas isso —, disse ela.
— Querido, por favor, não bebas
isso. Temos de fazer tudo ao nosso alcance.
— Faz tu —, disse ele. — Eu
estou cansado. Agora ele recordava uma estação de caminho de ferro em Karagatch
e ele estava lá com o seu saco e aquilo era o farol do Simplon-Orient a rasgar
a escuridão e ele ia partir da Trácia depois da retirada. Era uma das coisas
que ele tinha reservado para escrever, e também, de manhã ao pequeno almoço, a
olhar pela janela e a ver a neve nas montanhas da Bulgária e a Secretária de Nansen
a perguntar ao velho se aquilo era neve e o velho a olhar e a dizer: — Não,
aquilo não é neve. Ainda é cedo para a neve. E a Secretária a repetir para as
outras raparigas: — Não, estão a ver, não é neve. E elas todas a dizerem: — Não
é neve, estávamos enganadas. Mas era neve, sim senhor e ele mandou-as para lá
quando elaborou a troca de populações. E foi neve que elas palmilharam até
morrerem nesse inverno. Foi neve também que caiu durante toda a semana do Natal
nesse ano no Guaertal, naquele ano que viveram na casa do lenhador com o fogão
de porcelana que enchia metade da sala, e dormiam em colchões cheios de folhas
de faia, na altura em que chegou o desertor com os pés ensangüentados na neve.
Ele disse que a polícia andava atrás dele e eles deram-lhe meias de lã e
demoraram os polícias à conversa até as marcas terem desaparecido. Em Schrunz,
no dia de Natal, a neve brilhava tanto que fazia doer os olhos quando se olhava
pela janela do weinstube e se via toda a gente a regressar da igreja. Foi aí que
eles andaram pela estrada de piso macio, dos trenós, e amarela de urina, ao
longo do rio, com colinas escarpadas cobertas de pinheiros, skis pesados ao
ombro, e onde eles fizeram aquela grande corrida pelo glaciar abaixo, acima da
Madlener-haus, a neve tão macia de ver como a cobertura de um bolo e tão leve
como o pó e lembrou-se do ímpeto silencioso que a velocidade causava quando se
saltava como um pássaro. Nessa altura ficaram bloqueados por uma tempestade de
neve na Madlener-haus durante uma semana, a jogar as cartas no meio do fumo à
luz da lanterna e as apostas eram cada vez mais altas enquanto Herr Lent perdia
cada vez mais. Finalmente perdeu tudo. Tudo, o dinheiro da skischule e todos os
lucros da época e depois o seu próprio capital. Ele via-o com o seu nariz
comprido, a apanhar as cartas e depois a abrir ‘Sans Voir’. Havia sempre jogo
nessa altura. Jogava-se quando não havia neve, e jogava-se quando havia neve
demais. Pensou no tempo todo que passou a jogar. Mas nunca escrevera uma linha
sobre isso, nem sobre aquele dia de Natal frio e claro com as montanhas a
verem-se do outro lado da planície que Johnson tinha sobrevoado para lá da
linha para bombardear o comboio dos oficiais que partiam de licença,
metralhando-os à medida que eles se espalhavam e corriam. Lembrava-se de
Johnson depois vir à Messe e começar a contar o acontecimento. E o silêncio que
se fez e depois alguém a dizer, ‘Canalha assassino!’ Aqueles austríacos que
eles então mataram eram os mesmos com que ele esquiou depois. Não, os mesmos,
não. Hans, com quem ele esquiou todo aquele ano, tinha estado no Kaiser-Jägers
e quando eles foram à caça juntos no pequeno vale acima da serração tinham
conversado sobre a luta em Pasubio e sobre o ataque a Pertica e Asalone e ele
nunca escrevera uma palavra sobre isso. Nem sobre Monte Corno, nem sobre Siete
Commun, nem sobre Arsiedo. Quantos invernos é que ele tinha passado em
Voralberg e em Arlberg? Quatro, e depois lembrou-se do homem que tinha a raposa
para vender quando eles foram a Bludenz, dessa vez para comprar prendas, e do
sabor a cereja do belo kirsch, a escorregadia investida à corrida da neve seca
sobre o gelo, a cantar ‘Hi!Ho! disse Rolly!’ quando se corria o último troço
até ao declive, indo a direito, depois a correr no pomar em três voltas, e para
fora atravessando a vala e até à estrada com gelo por detrás da estalagem. A
desapertar os cintos, a tirar os esquis e a encostálos à parte de madeira da
estalagem, a luz do candeeiro vinda da janela, onde, dentro, no calor fumarento
a cheirar a vinho novo, eles tocavam acordeão.
— Onde é que nós ficamos em
Paris? — perguntou ele à mulher que estava sentada junto dele numa cadeira de
lona, agora em África.
— No Crillon. Sabes muito bem.
— Sei muito bem porquê?
— Era onde sempre ficávamos.
— Não. Nem sempre.
— Lá e no Pavillon
Henri-Quatre, em St Germain. Disseste que adoravas aquilo lá.
— A adoração é um esterqueiro
—, disse Harry. — E eu sou o galo que vai para lá cantar.
— Se realmente tens de embarcar
—, disse ela, — será que tens mesmo de destruir tudo o que deixas para trás?
Quero dizer, tens mesmo de levar tudo contigo? Será que tens de matar o cavalo
e a mulher e queimar a sela e a armadura?
— Tenho —, disse ele. — O teu
dinheiro era a minha armadura. O meu
Swift and Armour.
— Por favor.
— Está bem. Vou parar com isto.
Não quero magoar-te.
— Já é um bocado tarde para
isso.
— Está bem, está bem. Vou
continuar a magoar-te. É mais divertido. A única coisa que eu gostava de fazer
contigo já não posso fazer.
— Não, isso não é verdade. Tu
gostavas de fazer muitas coisas comigo, e tudo o que tu querias fazer eu fazia.
— Oh, por amor de Deus, pára
com essa gabarolice, sim? Ele olhou para ela e viu-a a chorar.
— Ouve —, disse ele. — Achas
que eu me estou a divertir muito com isto? Não sei por que estou a fazê-lo.
Acho que, ao tentar matar, a pessoa está a procurar manter-se viva. Eu estava
bem quando começamos a conversar. Eu não tinha a intenção de começar com isto,
e agora estou completamente maluco e estou a ser cruel contigo o mais possível.
Não ligues ao que eu digo, querida. Eu amo-te mesmo. Sabes bem que sim. Nunca
amei ninguém como amo a ti. Caiu nas mentiras habituais que o sustentavam.
— Tu és muito meigo para mim.
— Ó minha cabra —, disse ele. —
Minha cabra rica. Isso é poesia. Já estou cheio de poesia. De podridão e
poesia. De poesia podre.
— Cala-te. Harry, por que é que
te hás-de agora transformar num demônio?
— Não gosto de deixar ficar
seja o que for —, disse o homem. — Não gosto de deixar ficar as coisas para
trás.
Era já quase noite e ele tinha
estado a dormir. O sol já se escondia por detrás da colina, e agora a sombra
cobria toda a planície e os animais pequenos comiam perto do acampamento; ele
via-os a baixarem rapidamente a cabeça e a abanar a cauda, mantendo-se agora
afastados do bosque. As tais aves já não estavam à espera no solo. Estavam
todas pesadamente empoleiradas numa árvore. Havia agora muitas mais. O seu boy
pessoal estava sentado junto da cama.
— A Memsahib foi caçar —, disse
o rapaz.
— O Bwana quer alguma coisa?
— Nada. Ela tinha ido caçar
para arranjar um pouco de carne e, sabendo como ele gostava de observar os
animais, tinha ido para longe de modo a não perturbar aquela pequena parte da
planície que ele abarcava com a vista. Ela era sempre ponderada, pensava ele.
Em tudo o que sabia, ou que tinha lido, ou de que alguma vez tinha ouvido
falar. Ela não tinha culpa de ele já estar acabado quando começaram a andar
juntos. Como é que uma mulher podia saber que uma pessoa não queria dizer nada
daquilo que disse; que uma pessoa falava apenas por falar e para se sentir bem?
Depois que começou a fingir que falava verdade, as suas mentiras eram mais bem
sucedidas com as mulheres do que quando ele lhes dizia a verdade. Não era tanto
o fato de ele mentir, mas antes o de não haver uma verdade para dizer. Ele
tinha vivido a sua vida e acabara-se e depois continuou a vivê-la de novo com
pessoas diferentes e mais dinheiro, com os melhores dos mesmos lugares, e
alguns novos. Evitavas pensar e era tudo fantástico. Armavas-te com um bom
íntimo para assim não ficar despedaçado, como a maioria deles, e tomavas uma
pose que mostrasse que o trabalho que antes fazias não te interessava nada,
agora que já não podias fazêlo. Mas, para ti próprio dizias que havias de
escrever sobre aquelas pessoas; sobre os muito ricos; que não eras um deles mas
antes um espião no seu campo; que havia de deixar aquilo e escrever sobre
aquilo e por uma vez aquilo seria escrito por alguém que sabia do que estava a
escrever. Mas ele nunca o faria, porque cada dia sem escrita, sem conforto,
cada dia em que ele era precisamente aquilo que desprezava, entorpecia a sua
capacidade e amolecia a sua vontade de trabalhar, de tal maneira que, por fim,
não fazia mesmo nada. As pessoas que ele agora conhecia sentiam-se muito melhor
quando ele não trabalhava. A África era o lugar onde ele fora mais feliz nos
bons tempos da sua vida, e portanto tinha lá voltado para começar de novo.
Tinham feito este safári com um mínimo de conforto. Sem privações; mas também
sem luxo, e ele pensara que assim poderia voltar ao treino daquela maneira. Que
de certa maneira poderia desfazer-se da gordura do espírito tal como um lutador
ia para a montanha trabalhar e treinar para assim queimar a do corpo. Ela
gostara. Disse que adorava aquilo. Ela adorava qualquer coisa que fosse
excitante, que envolvesse uma mudança de cenário, onde houvesse boas pessoas e
onde as coisas fossem agradáveis. E ele tinha sentido a ilusão de recuperar a
força de vontade para trabalhar. Ora, se era assim que as coisas iam acabar, e
ele sabia que era, ele não devia começar a fazer como a serpente que morde a si
própria por ter quebrado a espinha. A culpa não era desta mulher. Se não fosse
ela, tinha sido outra qualquer. Se ele vivia numa mentira, devia morrer nela.
Ouviu um tiro para lá da colina. Ela atirava bem, aquele cabra boa, aquela
cabra rica, aquela simpática zeladora e destruidora do seu talento. Disparate.
Ele é que tinha destruído o seu próprio talento. Por que é que ele havia de
culpar aquela mulher por ela o tratar bem? Ele tinha destruído o seu talento
não o utilizando, com traições a si próprio e àquilo em que acreditava, bebendo
tanto que embotava o gume das suas percepções, com a preguiça, a indolência, e
o snobismo, com o orgulho e o preconceito, com o bem e com o mal. O que era
aquilo? Um catálogo de livros antigos? De qualquer maneira, o que era o seu
talento? Era mesmo talento mas, em vez de o usar, ele tinha feito negócio com
ele. A questão não era nunca o que ele tinha feito, mas sempre o que podia
fazer. E ele escolhera ganhar a vida com qualquer coisa que não a caneta ou o
lápis. Também era estranho, não era? que quando se apaixonava por mais outra
mulher, essa mulher havia de ter sempre mais dinheiro do que a anterior. Mas
quando já não estava apaixonado, quando já só andava a mentir, como no caso
desta, agora, que era, de todas, a mais rica, que tinha o dinheiro todo, que
tivera marido e filhos, que tinha arranjado amantes e se tinha fartado deles,
que o amava profundamente como escritor, como homem, como companheiro, como uma
posse de que se orgulhava; era estranho que, quando ele já não a amava de todo
e andava a mentir, que ele fosse capaz de lhe dar mais pelo seu dinheiro do que
quando realmente amara. Nós devemos ser feitos para aquilo que fazemos, pensou
ele. O nosso talento reside na maneira como ganhamos a vida, seja ela qual for.
Ele vendera a vitalidade, de uma forma ou de outra, toda a sua vida, e quando
os nossos afetos não estão demasiado envolvidos damos muito mais valor ao dinheiro.
Ele descobrira isto, mas também já nunca o iria escrever. Não, não o iria
escrever, embora valesse bem a pena. Nesta altura ela apareceu à vista, a
atravessar a planície em direção ao acampamento. Vestia calças de montar e
trazia a espingarda. Os dois rapazes traziam uma arma à tiracolo e seguiam
atrás dela. Ainda era uma bela mulher, pensou ele, e tinha um corpo agradável.
Tinha grande talento para a cama e gostava, não era bonita, mas ele gostava do
seu rosto, lia muitíssimo, gostava de montar e caçar e, claro, bebia demais. O
marido morrera quando ela era ainda relativamente nova e durante um tempo
dedicara-se aos seus dois filhos adolescentes, que não precisavam dela e
ficavam embaraçados com a sua presença, ao seu estábulo, aos livros, às garrafas.
Gostava de ler à noite, antes do jantar e bebia whisky e soda enquanto lia.
Pela hora de jantar, estava já um pouco bêbada, e depois de uma garrafa de
vinho ao jantar ficava normalmente embriagada o bastante para dormir. Isto foi
antes dos amantes. Depois de ter os amantes já não bebia tanto porque então não
precisava de estar bêbeda para dormir. Mas os amantes aborreciam-na. Tinha
estado casada com um homem que nunca a aborrecera, e esta gente aborrecia-a
imenso. Então, um dos seus dois filhos morreu num acidente de aviação e depois
disso não mais quis os amantes, e, não sendo a bebida um anestésico, ela teve
de arranjar outra vida. De repente, ficara agudamente amedrontada de estar só.
Mas queria a companhia de alguém que ela respeitasse. Tudo tinha começado muito
simplesmente. Ela gostava do que ele escrevia e sempre invejara a vida que ele
fazia. Ela pensava que ele fazia exatamente tudo o que queria. Os passos que
dera para o conquistar, e a maneira como finalmente se apaixonara por ele,
fazia tudo parte de uma progressão regular em que ela construíra uma nova vida
para si própria e ele tinha vendido o que restava da sua antiga vida.
Tinha-a vendido em troca de
segurança, e também de conforto, isso não se podia negar, e de mais quê? Não
sabia. Ela ter-lhe-ia trazido tudo o que ele quisesse. Ele sabia isso. Ela era
uma belíssima mulher, também. Ele ia para a cama com ela como com qualquer
outra; mas preferia-a a ela, porque era mais rica, porque era muito agradável e
gostava, e porque nunca fazia cenas. E agora essa vida que ela construíra de
novo estava a chegar ao fim, porque há quinze dias ele não usara tintura de
iodo quando um espinho lhe tinha feito um arranhão num joelho ao avançarem para
tentar fotografar uma manada de gamos parados, com a cabeça levantada, a
espreitar, de nariz no ar, as orelhas bem estendidas para escutar o primeiro
ruído que os precipitaria para o bosque. Mas eles fugiram antes de ele tirar a
fotografia.
Aí vinha ela agora. Ele voltou
a cabeça na cama para olhar para ela.
— Olá —, disse ele.
— Matei um carneiro —,
disse-lhe ela.
— Vai fazer um belo caldo para
ti e vou-lhes mandar fazer purê de batata com o Klim. Como é que te sentes?
— Muito melhor.
— Não é delicioso, isso? Sabes
que eu já imaginava isso mesmo. Estavas a dormir quando fui embora.
— Fiz uma boa soneca. Foste
para muito longe?
— Não. Só até ali adiante,
atrás da colina. Foi um tiro bastante bom, no carneiro.
— Tu atiras muito bem, sabes?
— Adoro isto. Adorei a África.
É verdade. Se ficares bom foi o melhor tempo que já tive. Tu não imaginas o
gozo que foi caçar contigo. Adorei a região.
— Eu também gosto.
— Querido, não sabes como é
maravilhoso ver-te melhor. Eu não suportava ver-te daquela maneira. Não vais
falar mais comigo daquela maneira, pois não? Promete.
— Não —, disse ele. — Eu já não
me lembro do que disse.
— Tu não precisas de me
destruir. Pois não? Eu sou só uma mulher de meia idade que te ama e que quer
fazer o que tu quiseres. Já me destruíram duas ou três vezes. Não ias com
certeza querer destruir-me outra vez, pois não?
— Eu gostaria de te destruir
umas vezes, na cama —, disse ele. — Sim. Essa é a boa destruição. Foi para
sermos destruídos dessa maneira que nós fomos feitos. O avião vai chegar aí
amanhã.
— Como é que sabes?
— Tenho a certeza. Tem de chegar.
Os rapazes têm a madeira toda pronta e a erva para fazerem a fogueira. Fui ver
hoje, outra vez. Há muito espaço para aterrar e nós temos as fogueiras
preparadas, em ambos os extremos.
— O que é que te faz pensar que
ele vem amanhã?
— Tenho a certeza de que vem.
Já está atrasado. Depois, na cidade, eles tratam-te da perna e então nós
trataremos de fazer alguma destruição. Não daquele terrível gênero falado.
— Vamos beber um whisky? O sol
já se pôs.
— Achas que deves?
— Eu vou beber um.
— Vamos beber juntos. Molo,
letti dui whisky-soda? — chamou ela.
— É melhor calçares as botas
contra os mosquitos —, disselhe ele.
— Depois de tomar banho…
Enquanto escurecia estiveram a
beber e precisamente antes de escurecer completamente e quando já não se via
para disparar, uma hiena atravessou a clareira a caminho da colina.
— Aquele patife faz isto todas
as noites —, disse o homem.
— Todas as noites há duas
semanas.
— É ela que faz barulho de
noite. Eu não me importo. Mas são animais imundos.
A beberem juntos, já sem dores,
a não ser o desconforto de estar deitado sempre na mesma posição, os rapazes
acenderem a fogueira e as suas sombras a saltar sobre as tendas, ele sentia o
regresso da sua anuência a esta vida de agradável rendição. Ela era, de fato,
muito boa para ele. Ele fora cruel e injusto para com ela, à tarde. Ela era uma
belíssima mulher, realmente maravilhosa. E precisamente nessa altura lembrou-se
de que ia morrer. A lembrança veio-lhe numa arremetida; não uma arremetida de
água ou de vento; mas de um vazio súbito, cheirando a mal e o estranho é que a
hiena deslizava levemente ao longo da margem.
— O que foi, Harry? — perguntou
ela?
— Nada —, disse ele.
— Era melhor mudares para o
outro lado. Para o lado do vento.
— O Molo mudou-te o penso?
— Mudou. Agora só estou a pôr o
bórico.
— Como é que te sentes?
— Um bocado enjoado.
— Vou tomar banho —, disse ela.
— Volto já. Venho comer contigo e depois pomos a cama lá dentro.
Portanto, disse ele consigo,
fizemos bem em acabar com as discussões. Ele nunca tinha discutido muito com
esta mulher, enquanto que com as mulheres que ele amava discutira tanto que
sempre acabavam por matar a relação com a corrosão das discussões. Ele amara
demais, exigira demais e esgotara tudo. Pensou naquela altura em que estava só
em Constantinopla depois de uma discussão em Paris antes de ir embora. Passara
o tempo com prostitutas e depois, quando isso acabou, não tinha conseguido
vencer a solidão, mas apenas piorá-la, escrevera-lhe uma carta, à primeira,
àquela que o deixou, uma carta a contar-lhe como não tinha conseguido vencê-la…
como ao julgar vê-la à saída do Regence ele se sentira todo fraco e enjoado
interiormente, e que costumava seguir uma mulher que se parecia com ela ao
longo do Boulevard, com receio de ver que não era ela, com receio de perder
aquela sensação que aquilo lhe dava. Como todas aquelas com quem dormira apenas
lhe faziam sentir mais a sua falta. Como o que ela lhe fizera não podia nunca
ter qualquer importância uma vez que ele não conseguia deixar de amá-la.
Escreveu essa carta no Clube, completamente sóbrio, e mandou-a para Nova York
pedindo que lhe respondesse para o escritório em Paris. Assim parecia seguro. E
nessa noite, sentindo tanto a sua falta que se sentiu oco por dentro, vagueou
pelo Taxim’s, arranjou uma rapariga, e levou-a a jantar. Tinha ido depois com
ela dançar, ela dançava mal, e trocou-a por uma quente puta armênia, que se
esfregava contra ele de tal maneira que quase queimava. Ele tirou-a de um
artilheiro britânico subalterno depois de uma briga. O artilheiro desafiou-o lá
para fora e eles lutaram na rua, sobre o empedrado, na escuridão. Ele tinha-lhe
batido duas vezes, com força, ao lado do queixo e quando viu que ele não caiu,
concluiu que tinha ali uma luta séria. O artilheiro atingiu-o no corpo e depois
num olho. Ele atirou-lhe uma esquerda outra vez, vacilou e caiu ao chão e o
artilheiro caiu-lhe em cima agarrou-lhe o sobretudo e rasgou-lhe uma manga e
ele agrediu-o por duas vezes por detrás da orelha e depois socou-o com a direita
enquanto o afastava. Quando o artilheiro caiu, bateu primeiro com a cabeça e
ele fugiu com a rapariga porque ouviram os M.P.’s a chegar.
Apanharam um táxi que os levou
para Rimmily Hiss ao longo do Bósforo, e de volta, e depois outra vez a noite
fria e depois a cama e ele sentiu-a demasiado madura como parecia, mas macia,
como pétala de rosa, melada, de ventre macio, seios grandes, sem precisar de
almofada por baixo das nádegas, e deixou-a antes de ela acordar com ar
desprendido aos primeiros raios de luz e apareceu no Pera Palace com um olho
negro e o sobretudo de baixo do braço porque lhe faltava uma manga. Nessa mesma
noite partiu para a Anatólia e lembrou-se mais tarde, nessa viagem, de ter
cavalgado todo o dia pelos campos de papoulas que eles cultivavam para fazer
ópio e como aquilo o fazia sentir-se esquisito, finalmente, e todas as
distâncias pareciam estar erradas, para onde eles tinham feito o ataque com os
recémchegados oficiais de Constantino, que não percebiam nada, e a artilharia
tinha disparado sobre as tropas e o observador britânico tinha chorado como uma
criança. Foi nesse dia que ele viu pela primeira vez mortos com saias de ballet
brancas e sapatos com a pontas reviradas e com pompons. Os turcos tinham vindo
com regularidade aos magotes e ele tinha visto os homens de saias a correr e os
oficiais a disparar sobre eles e depois a correr, eles também, e ele e o
observador britânico tinham corrido também até os pulmões lhe doerem e a boca
ficou cheia daquele sabor a dinheiro e pararam atrás de umas rochas e lá
estavam os turcos a chegar sempre aos magotes. Mais tarde vira coisas que nunca
imaginara e que ainda vira outra vez mais tarde, muito piores. Assim, quando
voltou para Paris dessa vez não conseguia falar daquilo nem suportava que referissem
o assunto. E naquele café onde ele passou estava aquele poeta americano com uma
pilha de pires à sua frente e uma expressão estúpida na cara de batata a
conversar sobre o movimento Dada com um romeno que disse chamar-se Tristan
Tzara, que trazia sempre um monóculo e estava com dores de cabeça, e, de volta
ao apartamento com a mulher, que, acabada a discussão, acabada a loucura, ele
agora amava outra vez, feliz por estar em casa, o escritório mandava-lhe o
correio para o apartamento. Então a carta em resposta àquela que ele escrevera
chegou numa bandeja um dia de manhã e quando ele reparou na caligrafia ficou
gelado e tentou esconder a carta debaixo de outra. Mas a mulher disse, “De quem
é essa carta, querido?” e foi o fim do princípio daquilo. Recordou os bons
tempos com todas elas, e as discussões. Elas escolhiam sempre os melhores
sítios para as discussões. E por que é que elas discutiam sempre quando ele se
sentia no melhor? Nunca tinha escrito sobre nada disto, porque, primeiro, nunca
queria magoar ninguém e depois parecia-lhe que havia mais sobre que escrever,
para além daquilo. Mas sempre pensou que acabaria por escrever. Havia tanto
para escrever. Tinha visto o mundo mudar; não apenas os acontecimentos; embora
ele tivesse visto muitos deles e tivesse observado as pessoas, mas tinha visto
a mudança mais subtil e lembrava-se de como as pessoas eram nas diferentes
alturas. Tinha estado por dentro e tinha observado e era seu dever escrever
sobre isso; mas agora nunca o faria.
— Como é que te sentes? — disse
ela. Já tinha saído da tenda, depois do banho.
— Bem.
— Já queres comer? — Ele viu
Molo atrás dela, com a mesa desdobrável, e o outro rapaz, com os pratos.
— Eu quero escrever —, disse
ele.
— Devias comer um pouco de
caldo para manter as forças.
— Eu vou morrer esta noite —,
disse ele. — Não preciso de forças.
— Por favor, Harry, não sejas
melodramático —, disse ela.
— Por que é que tu não usas o
nariz? Já estou todo podre até à coxa. Para que diabo me hei-de chatear com o
caldo? Molo, traz-me o whisky-soda.
— Toma o caldo, por favor —,
disse ela calmamente.
— Está bem. O caldo estava
quente. Teve de o deixar arrefecer na tigela para o tomar e depois bebeu-o de
um trago. — És uma excelente mulher —, disse ele. — Não ligues ao que eu digo.
Ela olhou para ele com a sua conhecida cara bem-amada do Spur e Town and
Country só um pouco pior na bebida, só um pouco pior na cama, mas Town and
Country nunca mostraram aqueles seios tão bons e aquelas coxas tão úteis e
aquelas mãos tão acariciadoras, e enquanto olhava e via o seu tão agradável e
bem conhecido sorriso, sentiu a morte a aproximar-se de novo. Desta vez não
havia pressa. Era um sopro, como de uma aragem que faz a chama da vela tremer e
alongar-se. — Eles podem trazer-me a rede mais tarde e pendurá-la na árvore e
fazer a fogueira. Esta noite não vou ficar na tenda. Não vale a pena mudar-me.
Está uma noite clara. Não vai chover. Então era assim que se morria, em
sussurros que não se ouviam. Bem, não haveria mais discussões. Podia
prometê-lo. Não ia agora estragar a única coisa que nunca experimentara. Se
calhar ia. Tu estragavas sempre tudo. Mas talvez não fosse.
— Tu não sabes tomar ditados,
pois não?
— Nunca aprendi —, disse-lhe
ela.
— Não tem importância. Não
havia tempo, claro, embora desse a sensação de que aquilo se comprimia de
maneira a poder meter-se tudo num parágrafo se se conseguisse agarrá-lo bem.
Era uma casa de madeira com as juntas calafetadas com argamassa branca numa
colina sobre o lago. Havia um sino num poste ao lado da porta para chamar as
pessoas para as refeições. Por detrás da casa ficavam os campos e por detrás
dos campos a floresta. Uma fila de choupos ia da casa até ao embarcadouro. Mais
choupos ao longo do pontão. Uma estrada subia até às colinas acompanhando a
orla da floresta e ao longo da estrada ele apanhava amoras silvestres. Depois a
casa ardeu e todas as armas penduradas sobre a lareira se queimaram e depois os
canos com o chumbo derretido nas câmaras e as coronhas carbonizadas, ficaram
sobre o monte das cinzas que foram utilizadas para fazer soda cáustica para as
grandes caldeiras de ferro do sabão, e tu perguntavas ao avô se podias brincar
com elas, e ele dizia, não. Compreendes, ainda eram as suas armas e nunca mais
comprou outras. E também nunca mais caçou. A casa foi reconstruída no mesmo
local, aproveitando os destroços, e pintada de branco e da entrada viam-se os
choupos e para além deles o lago; mas nunca mais houve armas. Os canos das
armas que estavam penduradas na parede da casa estavam ali no monte das cinzas
e nunca mais ninguém mexeu nelas. Na Floresta Negra, depois da guerra, alugamos
um ribeiro de trutas e havia duas maneiras de lá chegar. Uma era ir pelo vale
abaixo, desde Triberg, rodear a estrada do vale à sombra das árvores que
bordejavam aquela estrada branca, e depois subir por um caminho lateral que
seguia pela colina acima, passando por muitas pequenas quintas com aquelas
grandes casas do Schwarzwald, até o caminho atravessar o ribeiro. Era aí que a
pesca começava. A outra maneira era trepar pela orla escarpada dos bosques e
depois atravessar o cume das colinas pelos pinhais e sair para a orla de uma
veiga e descer por esta veiga até à ponte. Havia vidoeiros ao longo do ribeiro,
e este não era grande, mas estreito, claro e rápido, com pequenos poços nos
sítios onde a água tinha escavado a passagem por debaixo das raizes dos
vidoeiros. No Hotel em Triberg o proprietário teve uma bela época. Foi muito
agradável e éramos todos amigos. No ano seguinte veio a inflação e o dinheiro
que ele tinha feito no ano anterior não chegou para comprar as provisões
necessárias para abrir o hotel e enforcou-se. Tu podias ditar isto, mas não
podias ditar a Praça Contrescarpe onde as vendedeiras de flores tingiam as
flores na rua e a tinta escorria para o pavimento de onde os autocarros partiam
e os velhos e as velhas, sempre bêbados de vinho e bagaço ordinários; o cheiro
a suor sujo e a pobreza e a embriaguez no Café des Amateurs e as prostitutas no
Bal Musette por cima do qual viviam. A porteira que acolhia o soldado da Guarda
Republicana no seu apartamento, o capacete emplumado de crinas sobre a cadeira.
A locatária da frente cujo marido era corredor de bicicleta e a alegria dela
naquela manhã na Leitaria quando abriu o L’Auto e viu que ele se classificara
em terceiro lugar no Paris-Tours; a sua primeira grande corrida. Ela corara e
rira e subira as escadas a gritar, com aquele jornal desportivo amarelo na mão.
O marido da mulher que dirigia o Bal Musette era motorista de táxi e quando
ele, Harry, tinha de apanhar um avião muito cedo batia-lhe à porta para o
acordar e eles bebiam um copo de vinho branco cada um ao balcão cromado do bar
antes de partirem. Ele nessa altura conhecia os moradores daquele bairro porque
eram todos pobres. Naquela Praça havia duas espécies de gente: os bêbados e os
desportistas. Os bêbados matavam a pobreza dessa maneira; os desportistas
superavam-na com o exercício. Eram os descendentes dos Communards e para eles
não era preciso um grande esforço para saberem da sua política. Eles sabiam
quem matara os pais, os parentes, os irmãos e os amigos quando as tropas de
Versailles entraram na cidade e a tomaram depois da Comuna e executaram quem
quer que apanhassem de mãos calosas ou que usasse boina ou exibisse qualquer
outro sinal de que era um trabalhador. E naquela pobreza e naquele bairro do
outro lado da rua de uma Boucherie Chevaline e de uma cooperativa vinícola ele
tinha escrito o começo de tudo o que tinha que fazer. Nunca gostara de qualquer
outra zona de Paris como gostava daquela, as árvores esparramadas, as velhas
casas rebocadas de branco e pintadas de castanho na parte de baixo, o verde dos
autocarros naquela praça quadrada, a tinta purpúrea das flores sobre o
pavimento, a descida íngreme da Rua Cardinal Lemoine pela colina abaixo até ao
Rio, e do outro lado o estreito mundo da Rua Mouffetard apinhada de gente.
A rua que subia em direção ao
Panteão e a outra por onde ele ia sempre de bicicleta, a única rua asfaltada
daquele bairro, macia sob os pneus, com as casas estreitas e altas e o edifício
alto daquele hotel barato onde morrera Paul Verlaine. Os apartamentos onde eles
viviam tinham apenas duas divisões e ele tinha um quarto no último andar desse
hotel, que lhe custava sessenta francos por mês, onde ele escrevia, e de lá via
os telhados e as chaminés e todas as colinas de Paris. Do apartamento apenas se
via a loja do vendedor de lenha e carvão. Vendia vinho também, vinho ordinário.
A cabeça de cavalo dourada na parte de fora da Boucherie Chevaline, onde se
viam, penduradas na montra, as carcaças douradas e vermelhas, e a cooperativa
pintada de verde onde eles compravam o vinho; vinho bom e barato. O resto eram
paredes de estuque e as janelas dos vizinhos. Vizinhos que, à noite, quando
algum bêbado, deitado na rua, resmungava e gemia, naquela ivresse tipicamente
francesa que nos queriam convencer que não existia, abriam as janelas e depois
o murmúrio das conversas. “Onde está o polícia? Quando não é preciso o gajo
anda sempre por aí. Deve estar a dormir com alguma porteira. Chama o Agent.”
Até que alguém atirava um balde de água da janela e os gemidos acabavam. “O que
é aquilo? Água. Ah, inteligente.” E as janelas a fecharem-se. Marie, a
mulher-a-dias dele, a protestar contra o dia de trabalho de oito horas dizendo,
“Se o marido trabalha até às seis, embebeda-se só um bocado a caminho de casa e
não gasta muito. Se trabalha só até às cinco embebeda-se todas as noites e fica
sem dinheiro. É a mulher do trabalhador que sofre com esta redução das horas de
trabalho.”
— Não queres mais caldo? —
perguntou então a mulher.
— Não, obrigado. Está muito
bom.
— Toma só um bocadinho.
— Eu queria era um whisky-soda.
— Isso não te faz bem.
— Não, faz-me mal. Cole Porter
escreveu a letra e a música. O saber que vais ficar louca por mim.
— Sabes muito bem que eu gosto
que bebas.
— Pois. Só que me faz mal.
Quando ela se for, pensou ele, vou ter tudo o que quiser. Não tudo o que
quiser, mas tudo o que houver. Sim, sim, ele estava cansado. Cansado demais. Ia
dormir um pouco. Deixou-se ficar quieto e a morte não estava lá. Deve ter ido a
outra rua. Foi aos pares, de bicicleta e deslocou-se em silêncio absoluto sobre
os passeios. Não, ele nunca escrevera sobre Paris. Sobre a Paris de que ele
gostava. Mas, e o resto, tudo o resto sobre que ele nunca escrevera? E o rancho
e o cinzento prateado das salvas, a água rápida e clara nas valas de irrigação,
e o verde pesado da alfafa? O caminho subia até às colinas e o gado no verão
ficava tímido como os veados. Os gritos e o ruído regular e aquela mole imensa
movendo-se lentamente, levantando a poeira quando os traziam para baixo no
outono. E por detrás das montanhas, o pico afiado muito claro à luz da tardinha
e, a cavalgar ao longo da caravana, à luz do luar muito brilhante no vale.
Recordava agora a descida através da floresta, no meio da escuridão, agarrado à
cauda do cavalo quando já não se via e todas as histórias que ele tencionava
escrever. Sobre o moço de recados, um pateta, que deixaram no rancho e a quem
recomendaram que não deixasse ninguém apanhar feno, e aquele velho patife do
Forks que batera no rapaz quando este trabalhara para ele e que lá foi para
arranjar umas rações.
O rapaz a recusar e o velho a
dizer que lhe batia outra vez. O rapaz pegou na espingarda que estava na
cozinha e disparou sobre ele quando tentava entrar no celeiro e quando eles
regressaram ao rancho já ele estava morto há uma semana, congelado na cerca dos
animais, e os cães já lhe tinham comido uma parte do corpo. Mas o que dele
restava foi colocado num trenó, embrulhado num cobertor, e amarrado com cordas
e tu mandaste o rapaz ajudar-te a arrastá-lo e os dois levaram-no pela estrada,
em skis, para a cidade, a sessenta milhas, para entregar o rapaz, sem que ele
fizesse idéia de que iria ser preso. Pensando que tinha cumprido com a sua
obrigação e que tu eras amigo dele e que seria recompensado. Ele tinha ajudado
a arrastar o velho para que toda a gente soubesse como o velho fora mau, e como
tinha tentado tirar rações que não lhe pertenciam, e quando o xerife o algemou
não queria acreditar. Começara então a chorar. Esta era uma história que ele
tinha guardado para escrever. Conhecia pelo menos vinte boas histórias dali e
nunca escrevera nenhuma. Porquê?
— Diz-lhes porquê —, disse ele.
— Porquê o quê, querido?
— Nada. Ela já não bebia tanto
desde que o tinha com ela. Mas se ele sobrevivesse nunca escreveria sobre ela,
e ele sabia disso. Nem sobre qualquer um deles. Os ricos eram maçadores e
bebiam demais, ou jogavam demais ao backgammon. Eram maçadores e repetitivos.
Lembrava-se do pobre Julian e do romântico horror que ele tinha deles e de como
ele uma vez tinha iniciado uma história que começava, “Os muito ricos são
diferentes de ti e de mim.” E de como alguém dissera a Julian, sim, têm mais
dinheiro. Mas o Julian não achou graça. Ele pensava que eles eram uma raça
especial e encantadora e quando descobriu que não eram, isso destroçou-o tanto
como qualquer das outras coisas que o destroçavam. Ele desprezara aqueles que o
destroçavam. Não se era obrigado a gostar disso por o compreender. Ele podia
vencer qualquer coisa, pensava, porque nada o magoava, se não se preocupasse.
Muito bem. Já não se preocupava com a morte. Uma coisa que sempre receara era a
dor. Suportava a dor como qualquer pessoa, enquanto esta não se prolongasse por
demasiado tempo e o desgastasse, mas aqui tinha qualquer coisa que o tinha
magoado terrivelmente e precisamente quando sentira que isso o estava a
quebrar, a dor desaparecera. Recordou a altura, há muito tempo, em que
Williamson, o oficial do bombardeamento, foi atingido por uma granada que
alguém da patrulha alemã tinha atirado quando ele ia a atravessar o arame
naquela noite e pediu, aos gritos, que o matassem. Ele era gordo, corajoso e um
bom oficial, embora com uma certa inclinação para exibições fantásticas. Mas
naquela noite ele foi apanhado no arame, com um foguete luminoso a iluminá-lo e
as suas entranhas derramadas sobre o arame, e assim, quando o trouxeram para
dentro, vivo, tiveram de o cortar para o libertar. Mata-me, Harry. Por amor de
deus, mata-me. Tinham discutido uma vez sobre o fato de Nosso Senhor nunca nos
mandar qualquer coisa que não possamos suportar e uma teoria dizia que isso
queria dizer que em determinada altura a dor provocava automaticamente o
desmaio. Mas ele lembrava-se sempre de Williamson naquela noite. Nada o fez
desmaiar até que ele lhe deu todos os comprimidos de morfina que tinha guardado
para si próprio e não deram resultado imediato. Contudo, isto que ele agora
tinha era fácil; e se não piorasse não era nada que o preocupasse. Exceto que
gostaria de estar em melhor companhia. Pensou um pouco sobre a companhia que
gostaria de ter ali. Não, pensou, quando tudo aquilo que se faz, se faz durante
tempo demais, ou tarde demais, não se pode esperar que as pessoas ainda lá
estejam. As pessoas foram-se todas embora. A festa acabou e agora fica-se com o
anfitrião. Começo a ficar tão farto da morte como de tudo o resto, pensou.
— É uma chatice —, disse ele
alto.
— O quê, querido?
— Qualquer coisa que se faça
durante demasiado tempo. Olhou-lhe o rosto, entre ele e a fogueira. Estava
encostada para trás na cadeira e a luz da fogueira brilhava-lhe no rosto de
linhas agradáveis e ele viu que ela estava com sono. Ouviu o ruído da hiena mesmo
a seguir à zona da fogueira.
— Estive a escrever —, disse
ele.
— Mas fiquei cansado.
— Achas que consegues dormir?
— Com certeza. Por que é que
não te vais deitar?
— Gosto de estar aqui contigo.
— Sentes alguma coisa
esquisita?
— Não. Apenas tenho sono.
— Eu sinto. Ele sentira a morte
a aproximar-se de novo.
— Sabes muito bem que a única
coisa que nunca perdi foi a curiosidade —, disse-lhe ele.
— Tu nunca perdeste nada. És o
homem mais completo que conheci.
— Meu Deus —, disse ele. — Que
pouco sabem as mulheres. O que é isso? A tua intuição? Porque precisamente
nessa altura a morte chegara e pousara a cabeça nos pés da cama e ele sentiu o
seu hálito.
— Nunca acredites nessa balela
da gadanha e da caveira —, disse-lhe ele. — Tanto podem ser dois polícias de
bicicleta como um pássaro. Ou pode ter um focinho largo como uma hiena. Já
tinha subido até ele, mas não tinha forma. Apenas ocupava espaço.
— Diz-lhe que se vá embora. Mas
ela não se foi embora, antes se aproximou mais. “Tens um hálito dos diabos,” disse-lhe
ele. “Canalha mal-cheirosa.” Ela aproximou-se ainda mais, mas mesmo assim, ele
não conseguia falar com ela, e quando ela viu que ele não conseguia falar
aproximou-se mais e mais, e então ele tentou afastá-la sem falar, mas ela
trepou para cima dele de modo que o seu peso estava-lhe todo sobre o peito, e
enquanto ela ali se instalava e ele não podia mexer-se nem falar, ouviu a
mulher dizer, “Bwana já está a dormir. Peguem na cama com muito cuidado e
levem-na para dentro da tenda.” Ele não conseguia falar para lhe pedir que a
fizesse ir embora, e ela pesou-lhe ainda mais e ele já não conseguia respirar.
E então, enquanto eles levantavam a cama, subitamente, ficou tudo bem, e o peso
desapareceu-lhe do peito. Era já de manhã há algum tempo e ele ouviu o avião.
Parecia muito pequenino e descreveu um grande círculo e os rapazes correram a
acender as fogueiras com querosene, e fizeram montes de erva de modo que havia
duas grandes fogueiras em cada um dos extremos da planura e a brisa da manhã
soprava-as na direção do acampamento, e o avião descreveu mais dois círculos,
mais baixo desta vez, e depois desceu até ao nível do terreno e aterrou
suavemente, e, a caminhar na direção do acampamento, lá vinha o velho Compton,
de calças, casaco de tweed e chapéu de feltro castanho.
— O que é que se passa, chefe?
— disse Compton.
— Um problema numa perna —,
disse-lhe ele.
— Não queres tomar o pequeno
almoço?
— Obrigado. Só chá. É o Puss
Moth, sabes. Não vou poder levar a Memsahib. Só há lugar para um. A tua
camioneta já vem a caminho. Helen tinha puxado Compton aparte e estava a falar
com ele. Compton voltou mais alegre que nunca.
— Vamos já levar-te —, disse
ele. — Depois volto para levar a Mem. Mas acho que terei de parar em Arusha
para reabastecer. É melhor irmos já.
— E o chá? — Já sabes que eu
não gosto muito de chá. Os rapazes tinham pegado na cama e rodeando as tendas
verdes levaram-na pela rocha abaixo para a planície até ao avião, passando
pelas fogueiras que ardiam agora muito brilhantes, consumida já toda a erva e
espevitadas pelo vento. Foi difícil pô-lo lá dentro, mas uma vez lá, ficou
sentado no banco de couro, com a perna estendida para um dos lados do banco
onde Compton se sentava. Compton arrancou com o motor e entrou. Ele acenou para
Helen e para os rapazes e quando aquele ruído se tornou naquele roncar muito
familiar deram a volta, o Compie atento aos buracos dos javalis, e aceleraram,
aos solavancos, ao longo da faixa entre as fogueiras e, com um último solavanco
levantaram vôo e ele viu-os todos de pé lá em baixo a acenar, e o acampamento
ao lado da colina que agora começava a ficar achatada, e a planície a
estender-se, maciços de árvores, e o bosque a ficar achatado, enquanto os
rastos dos animais corriam macios até aos charcos secos, e havia uma nova água
que ele nunca conhecera. Os costados já pequenos e arqueados das zebras, e os
gnus, pequenos pontos de cabeça grande, parecendo trepar quando se deslocavam
como que em longos dedos através da planície, espalhando-se agora que a sombra
se aproximava deles, eram já muito pequenos e os seus movimentos não eram de
galope, e a planície a perder de vista, já amarelo-acizentada, e à frente o
tweed do casaco e o chapéu de feltro do velho Compie. Depois sobrevoaram as
primeiras colinas e os gnus a correr à sua frente e depois as montanhas com
súbitos vales cobertos de florestas verde claras e as sólidas encostas de
bambus e depois floresta densa outra vez esculpida em picos e depressões, até
as atravessarem, e as colinas desciam e depois outra planície, agora quente, e
castanho púrpura, irregular do calor, e o Compie a olhar para trás para ver
como ele estava. Depois outras montanhas escuras à frente. E então, em vez de
irem para Arusha, viraram à esquerda, ele evidentemente concluiu que tinham
combustível suficiente, e ao olhar para baixo viu uma nuvem cor-de-rosa
granulada a deslocar-se sobre a terra e no ar, como as primeiras neves de uma
tempestade vinda de parte nenhuma, e ele sabia que os gafanhotos vinham lá do
sul. Começaram então a subir e parecia que se dirigiam para leste, e depois
escureceu e ficaram no meio de uma tempestade, a chuva tão espessa que parecia
que iam a voar no meio de uma queda de água, e depois saíram e o Compie
voltou-se e mostrou um largo sorriso e apontou e lá à frente tudo o que ele conseguiu
ver, largo como o mundo todo, grande, alto e inacreditavelmente branco da luz
do sol, lá estava o cume quadrangular do Kilimanjaro. E então ficou a saber que
era para lá que ia. Precisamente nesse momento a hiena calou-se na noite e
começou a produzir um som estranho, humano, quase um choro. A mulher ouviu-a e
mexeu-se, inquieta. Não acordou. Em sonhos, estava na casa de Long Island e era
a noite da véspera do début da filha. Sem saber como nem porquê, o pai estava
lá e fora muito grosseiro. Então o som da hiena era já tão alto que ela acordou
e por momentos ficou sem saber onde estava e com medo. Pegou na lanterna e
dirigiu-a para a outra cama que eles tinham trazido para dentro depois de Harry
ter adormecido. Viu o volume do corpo dele debaixo da rede dos mosquitos, mas
ele tinha como que estendido a perna para fora e ela pendia ao longo da cama.
Os pensos tinham caído todos e ela não conseguia olhar para lá. — Molo —,
chamou ela. — Molo! Molo! — Depois
disse, — Harry, Harry! — Depois subindo de tom, — Harry! Por
favor. Oh, Harry! Não houve resposta e ela não o ouvia a respirar. Fora da
tenda a hiena fez aquele mesmo som estranho que a tinha acordado. Mas ela não
ouvia nada senão o bater do próprio coração.
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