Christopher Hitchens
"O dia em que minha voz falhou"
Com a ajuda de morfina e adrenalina, ainda conseguia “projetar” com sucesso minhas falas, até que fiz uma tentativa de chamar um táxi na frente de casa – e nada aconteceu
Como tantas das experiências da vida, a novidade do diagnóstico de um câncer maligno tende a se dissipar. As coisas começam a ficar tediosas, até mesmo banais. É possível se acostumar ao espectro da morte como um velho entediado e letal, espreitando no corredor no final da noite, esperando uma oportunidade de me abordar. E não me oponho a ele segurar meu casaco daquele modo formal, como que me lembrando que é hora de seguir caminho. Não, é o risinho abafado que me deprime.
Com demasiada regularidade, a doença me serve um atrativo especial do dia, ou um sabor do mês. Podem ser feridas e úlceras aleatórias, na língua ou na boca. Por que não um toque de neuropatia periférica envolvendo pés dormentes e frios? A existência diária se torna uma coisa de bebê, medida não nas colheres de café do Prufrock de T.S. Elliot, mas em pequenas doses de alimento, acompanhadas de barulhos encorajadores dos espectadores ou de discussões solenes e em tom maternal com estranhos sobre as operações do sistema digestivo. Nos dias menos bons, me sinto como aquele leitão de perna de pau da família sadicamente sentimental, que só consegue comê-lo um pedaço de cada vez. Com a diferença de que o câncer não é tão... atencioso.
O mais desalentador e alarmante, até agora, foi o momento em que minha voz de repente se transformou num agudo guincho infantil (ou talvez suíno). Ela, então, começou a variar bastante, de um sussurro rouco e rascante até um balido frágil e melancólico. Em certos momentos ameaçava, e agora ameaça todos os dias, desaparecer completamente. Eu tinha acabado de voltar de duas palestras na Califórnia, onde, com a ajuda de morfina e adrenalina, ainda conseguira “projetar” com sucesso minhas falas, até que fiz uma tentativa de chamar um táxi na frente de casa – e nada aconteceu. Fiquei de pé, paralisado, como um gato bobo que, de repente, perdeu seu miado. Eu costumava ser capaz de deter um táxi nova-iorquino a trinta passos de distância. Conseguia também, sem microfone, alcançar a última fila e a galeria de uma lotada sala de conferências. Pode não ser algo de que se vangloriar, mas as pessoas me diziam que, mesmo na sala ao lado, com o rádio ou o televisor ligados, elas sempre conseguiam identificar meu tom e saber que eu estava “no ar”.
O mais desalentador e alarmante, até agora, foi o momento em que minha voz de repente se transformou num agudo guincho infantil (ou talvez suíno). Ela, então, começou a variar bastante, de um sussurro rouco e rascante até um balido frágil e melancólico. Em certos momentos ameaçava, e agora ameaça todos os dias, desaparecer completamente. Eu tinha acabado de voltar de duas palestras na Califórnia, onde, com a ajuda de morfina e adrenalina, ainda conseguira “projetar” com sucesso minhas falas, até que fiz uma tentativa de chamar um táxi na frente de casa – e nada aconteceu. Fiquei de pé, paralisado, como um gato bobo que, de repente, perdeu seu miado. Eu costumava ser capaz de deter um táxi nova-iorquino a trinta passos de distância. Conseguia também, sem microfone, alcançar a última fila e a galeria de uma lotada sala de conferências. Pode não ser algo de que se vangloriar, mas as pessoas me diziam que, mesmo na sala ao lado, com o rádio ou o televisor ligados, elas sempre conseguiam identificar meu tom e saber que eu estava “no ar”.
Como a própria saúde, tal perda não pode ser imaginada até que acontece. Assim como todo mundo, brinquei de versões do jogo juvenil “o que você preferiria?”, no qual normalmente se debatia se o mais opressivo seria a cegueira ou a surdez. Não me lembro de ter especulado muito sobre de repente ficar mudo. A privação da capacidade de falar é mais como um ataque de impotência, ou a amputação de parte da personalidade. Em grande medida, em público e em particular, eu “era” minha voz. Todos os rituais e a etiqueta da conversa – desde pigarrear nos preparativos para contar uma piada longa e exigente até (nos dias de juven-tude) tentar tornar minhas propostas mais persuasivas, enquanto eu estrategicamente baixava o tom em uma oitava de constrangimento – eram inatos e essenciais para mim. Nunca fui capaz de cantar, mas podia recitar poesia e citar prosa, e algumas vezes era até mesmo convidado a fazê-lo. Timing é tudo na fala: há o momento preciso para arrematar uma história, para enfatizar um verso, para produzir riso ou para ridicularizar um oponente. Eu vivia para momentos assim. Agora, quando quero entrar numa conversa, tenho de chamar a atenção de outra forma, e suportar o fato terrível de que as pessoas então me escutarão “com compaixão”. Pelo menos, elas não precisam emprestar sua atenção por muito tempo: não consigo mantê-la e, de qualquer forma, não aguentaria fazê lo.
Quando você fica doente, as pessoas lhe dão CDs. Pela minha experiência, com frequência são de Leonard Cohen. Recentemente aprendi uma canção, intitulada “If it be your will”. É um pouquinho piegas, mas belamente interpretada. Começa assim: “If it be your will/that I speak no more/and my voice be still/as it was before...” (Se for seu desejo/que eu não fale mais/e minha voz ainda seja/como foi antes...). Acho melhor não ouvir isso tarde da noite. Leonard Cohen é inimaginável sem, e indissociável de, sua voz. (Duvido que quisesse, ou suportasse, ouvir essa canção com qualquer outro intérprete.) Digo a mim mesmo que, de certa forma, conseguiria me arrastar, me comunicando apenas por escrito. Mas só por causa de minha idade. Caso tivesse sido privado de minha voz antes, duvido que teria conseguido progredir no papel. Tenho uma enorme dívida para com Simon Hoggart, do Guardian, que, há trinta e cinco anos, me advertiu que um artigo meu era bem concebido mas tedioso – e me aconselhou rispidamente a escrever “mais do modo como você fala”. Na época, fiquei quase sem palavras com a acusação de ser tedioso. Jamais agradeci adequadamente.
Mais tarde, ao dar minhas aulas de redação, começava dizendo que qualquer um capaz de falar também pode escrever. Depois de animar a turma com essa escada fácil, então a substituía por uma enorme cobra odiosa: “Quantas pessoas nesta turma vocês diriam que sabem falar? Quero dizer, falar de verdade?”. Tinha um efeito deprimente. Eu dizia a eles para ler seus textos em voz alta, preferencialmente para um amigo de confiança. As regras são quase as mesmas: fuja das frases feitas (como da peste, costumava dizer William Safire) e das repetições. Não diga que “quando garoto, sua avó costumava ler para você”, a não ser que, naquele estágio da vida, ela realmente tivesse sido um garoto, circunstância que, de qualquer forma, provavelmente exigiria de você uma introdução melhor. Se algo merece ser escutado, muito provavelmente merece ser lido. Então, descubra sua própria voz.
O cumprimento mais prazeroso que um leitor pode me fazer é dizer que sente que me dirijo a ele. Pense em seus autores preferidos e veja se essa não é uma das coisas que o cativam, sem que você tenha percebido. Uma boa conversa é o único equivalente humano: é quando você percebe que observações decentes são feitas e compreendidas, que há ironia envolvida, e elaboração, que um comentário tedioso ou óbvio seria quase fisicamente doloroso. Foi como a filosofia evoluiu nos simpósios, antes de ser escrita. A poesia começou com a voz como único instrumento de execução, e o ouvido, de registro. Não conheço nenhum escritor realmente bom que fosse surdo. Henry James e Joseph Conrad ditaram seus romances tardios, e Saul Bellow ditou muito de Humboldt’s Gift. Sem nossa correspondente compreensão do idioleto – a marca no modo como alguém fala e, portanto, escreve –, seríamos privados de um mundo de simpatia humana e de seus prazeres em tom menor de imitação e paródias.
De modo mais solene: “Tudo o que tenho é uma voz”, escreveu W.H. Auden em “September 1, 1939”, sua tentativa agoniada de compreender o – e se opor ao – triunfo do mal radical. “Quem pode alcançar o surdo?”, perguntou ele, desesperadamente. “Quem pode falar pelo mudo?” Mais ou menos na mesma época, a judia alemã Nelly Sachs, futura ganhadora do Nobel, descobriu que o surgimento de Hitler a deixara literalmente sem fala: roubara dela sua voz pela total negação de todos os valores. Nosso próprio idioma cotidiano preserva a ideia, embora amenizada: quando uma figura pública morre, os obituários com frequência dizem que ela foi “uma voz” para os não ouvidos.
Da garganta humana também podem emergir terríveis venenos: pranto, monotonia, queixumes, gritos, incitação (“o lixo militante mais vazio”, como Auden definiu no mesmo poema) e mesmo risinhos abafados. É a chance de erguer pequenas vozes serenas contra essa torrente de falatório e ruído, as vozes de perspicácia e contenção. Todas as melhores lembranças de sabedoria e amizade, da Apologia de Sócrates, por Platão, ao Life of Johnson, de James Boswell, vibram com os momentos não ditos, não programados, de interrelação, razão e especulação. É em embates como esse, competindo e se comparando a outros, que se pode esperar descobrir o fugidio e mágico mot juste, a palavra certa. Para mim, lembrar amizade é lembrar conversas que parecia um pecado interromper, aquelas que transformavam o sacrifício do dia seguinte em algo banal. Foi o modo pelo qual Calímaco escolheu lembrar seu amado Heráclito: “Eles me contaram, Heráclito; eles me contaram que você estava morto. Eles me levaram notícias amargas de ouvir, e lágrimas amargas a derramar. Chorei quando lembrei com que frequência você e eu havíamos cansado o sol conversando”. Ele sustenta a imortalidade do amigo na doçura de seus tons: “Ainda estão tuas vozes agradáveis, teus rouxinóis despertos; pois a Morte leva tudo, mas elas, não pode levar.” Talvez meio exaltado demais no verso final...
Na literatura médica, a corda vocal é uma mera “prega”, um pedaço de cartilagem que se esforça para se esticar e tocar sua gêmea, criando efeitos sonoros. Mas sinto que tem de haver uma relação profunda com a palavra “corda”: a vibração ressoante que pode despertar lembranças, produzir música, evocar amor, gerar lágrimas, conduzir multidões à piedade e turbas à paixão. Podemos não ser, como costumávamos nos vangloriar, os únicos animais capazes de falar. Mas somos os únicos que podem usar a comunicação verbal por prazer e diversão, combinando isso com razão e humor para produzir sínteses mais elevadas. Perder essa habilidade é ser privado de uma gama de capacidades: certamente é morrer mais que um pouco.
Meu maior consolo neste ano vivendo moribundo tem sido a presença de amigos. Já não consigo comer ou beber por prazer, então, quando eles se oferecem para vir, é só pela abençoada oportunidade de conversar. Alguns desses camaradas podem facilmente encher um auditório de pagantes ávidos para ouvi-los. São falantes com quem é um privilégio simplesmente estar. Agora eu, pelo menos, posso escutar de graça. Eles podem vir e me ver? Sim, mas só eles falam, eu escuto. Então, agora, todo dia vou para uma sala de espera e vejo as notícias terríveis sobre o Japão na TV a cabo (frequentemente em closed caption, apenas para me torturar), e espero impaciente que uma grande dose de prótons seja disparada para dentro do meu corpo a dois terços da velocidade da luz. O que espero? Se não uma cura, uma remissão. E o que quero de volta? Na mais bela composição de duas das palavras mais simples do idioma, freedom of speech*.
* Liberdade de expressão (literalmente, liberdade de fala)
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