"Tolstói é o maior prosador russo". O autor do elogio é Vladimir Nabokov (1899-1977), outro grande prosador russo. Nabokov lecionou literatura russa em universidades americanas, onde apresentava a obra de Liev Nikoláievich Tolstói, o conde místico da vila de Iásnaia Poliana. Nabokov, um nobre que fugira dos revolucionários bolcheviques, encontrou a imagem da pátria perdida nos escritos do conde. Tolstói convida o leitor a passear por salões aristocráticos e a contemplar a natureza ao lado dos camponeses russos, os mujiques. Nesse passeio conduzido com mão de mestre, o convidado nem percebe em qual momento começou a pensar em temas como a vastidão e a fragilidade da vida. Agora, as páginas desse mundo estão abertas ao leitor brasileiro. O lançamento Contos completos (Cosac Naify, 2080 páginas, R$ 139) reúne, em três volumes, a produção do autor desde a década de 1850 ao início do século XX.
A linguagem exuberante e as detalhadas descrições de Tolstói davam a Nabokov um prazer que ele não encontrava na obra de outro escritor russo, hoje muito popular: Fiódor Dostoiévski (1821-1881). Nabokov comparou os recursos estéticos de Dostoiévski a “porretadas”, enquanto os de Tolstói eram como “o toque suave dos dedos de um artista”. Tolstói e Dostoiévski nunca se encontraram. O conde fazia coro com os críticos que consideravam Dostoiévski um autor de romances mal-acabados e dono de um estilo rude.
Nas obras de Tolstói, em romances como Anna Kariênina e Guerra e paz, destacam-se personalidades monumentais, vigorosas, que afrontam o destino. Nas de Dostoiévski, como Crime e castigo e Os irmãos Karamázov, desfilam prostitutas, místicos e assassinos atormentados pela culpa. O próprio autor teve problemas com o jogo e a bebida. Na juventude, envolveu-se com socialistas e passou anos na cadeia. O século XX o redimiu. Foi apontado como o profeta que alertara sobre os riscos da influência das filosofias materialistas na alma russa. “Ele previu as tragédias do século XX, como o surgimento do terrorismo, tema de Os demônios”, diz Elena Vássina, professora do Departamento de Letras Orientais da Universidade de São Paulo. Dostoiévski, diferente de Tolstói, escrevia contra o relógio, pois precisava do dinheiro dos editores para saldar dívidas. Pouco descrevia personagens e paisagens. Nabokov explicava aos alunos que os personagens de Dostoiévski, ao longo do livro, não se desenvolvem. “Nós os recebemos completos no começo da história”, disse Nabokov. Tolstói, um conde com tempo nas mãos, desenvolve os personagens ao longo de muitas páginas. Ele aprimorou a técnica que os críticos formalistas russos chamaram de “estranhamento”: fazer o leitor se sentir como se contemplasse algo pela primeira vez.
Nas histórias curtas, as oposições entre os dois gigantes continuam. Dostoiévski usava os personagens de suas narrativas menores para apresentar temas que seriam mais bem desenvolvidos em seus romances. Tolstói usava contos e romances com fins diferentes. “O conto foi o instrumento que Tolstói sempre teve à mão para questionar e fazer experimentos estéticos”, afirma Rubens Figueiredo, o tradutor.
O conto remetia às antigas narrativas orais dos camponeses, que viviam segundo os valores que Tolstói admirava. Ao transformá-los em personagens de seus contos, questionava a suposta superioridade dos padrões sociais que a Rússia importava da Europa. “Há três oposições que aparecem em toda a obra de Tolstói: servidão e liberdade, guerra e paz, natureza e civilização”, afirma Sonia Branco, professora de literatura russa da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Ele mergulha na alma do homem do campo para mergulhar na alma humana”. Dostoiévski também mergulhava, mas por meio dos conflitos do homem urbano, às voltas com as ideias debatidas na Rússia da época.
Sorte nossa poder visitar esses recônditos da alma humana por dois caminhos tão diferentes e tão ricos. Tolstói concluiu, afinal, que esses mergulhos o isolavam da humanidade. “Nosso ofício é horrível. Escrever corrompe a alma”, afirmou. Já idoso, decidiu afastar-se da literatura. Sorte nossa que, volta e meia, ele caía em tentação, imergia na solidão criativa e escrevia obras-primas.
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