‘O abraço da serpente’,
um marco para o cinema
da Colômbia
Especialistas explicam por que o filme virou um sucesso dentro e fora do seu país de origem
ANA MARCOS
Bogotá 18 FEV 2016 - 09:27 COT
O abraço da serpente foi filmado em preto e branco numa cenário multicolorido, a Amazônia colombiana. O longa é protagonizado por dois indígenas que se comunicam em sua língua nativa. Seu diretor, Ciro Guerra, com menos de 40 anos, havia realizado apenas três filmes até agora, todos eles na categoria dos independentes. O realizador levou cinco anos para conseguir estrear este trabalho, que foi apenas o sétimo filme colombiano mais visto de 2015 dentro do país, com 119.462 espectadores – uma cifra modesta em comparação aos mais de dois milhões do documentário Colombia Magia Salvaje e dos 1,12 milhão da comédia Uno al año no hace daño, segundo dados da Cine Colombia, principal empresa local de distribuição e exibição.
Mas o filme começou a se impor em maio de 2015, quando foi aplaudido durante dez minutos após sua exibição no festival de Cannes, de onde voltou com o prêmio da Quinzena dos Realizadores. A partir daí, o mundo começou a conhecer O abraço da serpente, que desde então veio acumulando reconhecimentos – culminando, na quinta-feira, com a indicação ao Oscar de melhor filme em língua não inglesa.
Para entender como um longa independente conseguiu escrever uma nova página na história do cinema colombiano, o EL PAÍS ouviu colegas de Guerra, pessoas que trabalharam com ele e outras que simplesmente desfrutaram dos seus filmes.
Amazonas, o outro protagonista. “Não é só um bom filme, mas também uma filmagem talentosa de um lugar que há muito tempo não aparecia nas telas”, diz o produtor e diretor de cinema Franco Lolli. Mauricio Reina, crítico de cinema do jornal EL TIEMPO, concorda: “Submerge o espectador em um estado hipnótico que o leva às entranhas de um pedaço quase desconhecido (ou ao menos ignorado por muitos) de nossa natureza, nossa cultura e nosso país.” Para Jorge Forero, produtor e diretor que trabalhou com Ciro Guerra, essa região colombiana se transforma no lugar perfeito para narrar “o encontro de duas culturas, a confrontação entre duas maneiras de olhar o mundo num momento em que o planeta está no limite de sua capacidade para resolver os problemas”.
David Melo, ex-diretor de Cinematografia do Ministério da Cultura, encontra no filme uma maneira diferente de narrar o passado da Colômbia. “Conecta brilhantemente diferentes momentos de nossa história para refletir sobre os efeitos da colonização e as possibilidades ainda não aproveitadas de diálogo intercultural, em especial as vistas a partir deste país marcado historicamente por fortes expressões de conflito político e social.” Para o cineasta, Guerra foi capaz de realizar “uma exigente produção em zonas de baixo nível de desenvolvimento, com a recriação do Amazonas de um século atrás no trabalho com protagonistas de grupos originários que usam suas próprias línguas.”
Uma história épica com personagens heroicos: “Acima de tudo, é um bom filme: bem filmado, bem narrado e, surpreendentemente, com boas atuações, pois não é fácil encontrar dois indígenas que atuem com naturalidade diante das câmeras, como fazem Nilbio Torres e Antonio Bolívar”, afirma Reina. O filme contempla, segundo Forero, “elementos clássicos de uma narrativa de heróis, de grandes aventuras que a transformam em épica ainda que se trate cinema independente e, sobretudo, que ajudam o público a se conectar com o que é contado”. O escritor Ricardo Silva recorda que O abraço da serpente dá prosseguimento a uma tradição que começa em La vorágine e que foi enriquecida pelos relatos dos grandes viajantes. El río, de Wade Davis, um livro monumental, é sentido em cada um dos enquadramentos.”
O empenho do diretor: Guerra levou cinco anos para estrear seu terceiro filme. Manteve-se empenhado, e neste caminho de obstinação foi acompanhado por Cristina Gallego, da produtora Ciudad Lunar, e uma potente campanha de promoção do grupo Caracol. “O sucesso também se deve a um autor muito sério e admirável, como inegavelmente é Guerra, assim como a políticas públicas que estimularam a criação no cinema colombiano e à capacidade dos espectadores de se deixar levar pela travessia do diretor, enquanto reconhecem sua coragem para ir até o fundo de suas tramas, de suas explorações”, afirma Silva. “Fazer cinema na Colômbia é como fazer os Jogos Olímpicos de inverno em Barrancabermeja [cidade do norte da Colômbia, onde faz muito calor], pela perseverança, obstinação, talento e um pouco de sorte, fatores que foram determinantes”, diz Javier Mejía, diretor e roteirista.
A nova indústria do cinema na Colômbia. A mudança na legislação no início do século promoveu um incentivo ao setor, fator que alguns especialistas mencionam para entender o fenômeno de O Abraço da Serpente. “Começamos a perceber a formação de uma indústria muito, mas muito pequena, de cinema colombiano e a profissionalização do sindicato”, afirma Mejía. “Os recentes sucessos de filmes colombianos não se deram por geração espontânea: há sem dúvida um trabalho de muita gente que por anos batalhou para que isto acontecesse.”
A façanha da bilheteria. “O filme possui também o mérito de ter sido um sucesso inesperado de bilheteria na Colômbia (para os padrões de um filme como esse), inclusive antes de que fossem conhecidas suas possibilidades no Oscar”, afirma Reina. “É uma façanha completa para esta época”, diz Forero, fazendo referência aos 120.000 espectadores que desde maio de 2015 compareceram às salas. “Isso representa uma valiosa descoberta para o futuro do cinema colombiano. Há casamentos difíceis que podem funcionar, como o da produção independente com valores artísticos e a bilheteria”, completa o crítico de cinema.
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