México utilizou armas químicas
contra Emiliano Zapata
Estudo revela a guerra de extermínio que o Governo mexicano, apoiado pelos EUA, disparou há um século contra o revolucionário, com armas químicas, deportações e tortura em larga escala
JAN MARTÍNEZ AHRENS
Cidade do México 23 DEZ 2016 - 18:04 COT
Reza a lenda que Emiliano Zapata não morreu. É isso que a história demonstra todo dia. Quase 100 anos depois de seu assassinato, a figura do revolucionário, general comandante do Exército Libertador do Sul, continua a incendiar a imaginação dos mexicanos. Proletário, rebelde e muitas vezes visionário, Zapata (1879-1919) encarna como ninguém os ideais de uma época conturbada. Seus anos de luta e de glória são os de um país em guerra consigo mesmo. Uma época cruel, sobre a qual o México erigiu sua estrutura atual e da qual nem mesmo Zapata conseguiu escapar. Longe da visão adoçada deixada pela iconografia oficial, uma minuciosa pesquisa do historiador Francisco Pineda mostra como Zapata, um mito ainda quando vivo, foi perseguido ferozmente pelo regime de Venustiano Carranza (1859- 1920). Evidencia também como, para derrotá-lo, o Governo constitucionalista não hesitou em lançar uma guerra de extermínio. Armas químicas, torturas indiscriminadas e até a escravização de prisioneiros foram empregadas para dobrar um homem que nunca se pôs de joelhos.
“A Revolução Mexicana foi paradoxal e complexa. E há uma tentativa de certos setores de recuperar a obra de Carranza e tornar a Constituição, que completa 100 anos em 5 de fevereiro, símbolo de continuidade e estabilidade, o que não é verdade: o México é uma nação em permanente conflito, traumática e fascinante. Essa é a lição de Zapata”, explica o professor Carlos Marichal, pesquisador do Colégio do México.
A guerra de extermínio, sobre a qual poucas informações eram conhecidas, ilustra um dos momentos mais obscuros da Revolução Mexicana. Em 26 de setembro de 1915, já derrotado o general Victoriano Huerta, mas com o país em chamas, Carranza ordenou a um de seus homens de confiança, o general Pablo González, esmagar a Revolução do Sul, o movimento camponês de libertação liderado por Zapata.
Antes agricultor e cavalariço militar, o revolucionário tinha entrado na arena da história depois de liderar protestos agrários em Morelos e de se unir em 1910 ao levante de Francisco I. Madero, que começou a Revolução. Mas, lograda a vitória e tendo sido exilado o ditador Porfírio Díaz, Zapata traçou seu próprio rumo e se recusou a desmobilizar sua tropa. Para ele, a guerra tinha outro objetivo. Conseguir a coletivização das grandes fazendas e libertar milhares de camponeses de séculos de opressão latifundiária. E não só isso.
Com uma visão muito mais avançada que Pancho Villa e outros senhores da guerra, o sulista defendeu o direito de greve, o reconhecimento dos povos indígenas e a emancipação da mulher. Mas sua força não tinha raízes somente num programa político capaz de mandar pelos ares as convenções burguesas. Aquele camponês transformado em revolucionário tinha de um lado um exército disposto a morrer sob suas ordens e de outro milhares de agricultores aos quais tinha devolvido o pão e o orgulho. Não demorou muito para que fosse visto como o grande inimigo a ser batido pelo poder carrancista. A ofensiva foi implacável. “Para isso o Governo contou com a ajuda dos Estados Unidos. Carranza, em dezembro de 1914, dispunha de apenas 1.700 fuzis; em menos de um ano Washington lhe forneceu mais de 53.000”, destaca Pineda.
Com esse apoio Carranza e seu general puseram mãos à obra, e já em fevereiro de 1916 começaram a fabricar, com equipamento importado dos Estados Unidos, as granadas para o gás asfixiante com o qual queriam aniquilar os zapatistas. “É possível que tenham usado fosgênio, um veneno incolor e com cheiro de milho verde, cujos sintomas não são imediatos”, explica Pineda. Junto com o arsenal químico, os carrancistas esboçaram um plano de guerra seguindo os passos das sangrentas campanhas cubanas do general espanhol Valeriano Weyler. E ainda protegeram o Distrito Federal com uma linha de trincheiras de mais de 100 quilômetros e coletaram dados de inteligência, mediante o uso generalizado da tortura, para saber milimetricamente a localização e os movimentos do inimigo.
Em 12 de março de 1916 teve início a invasão. A máquina do terror foi liberada. Povoados foram incendiados, e as plantações, destruídas. Centenas de camponeses foram executados sumariamente, e milhares foram concentrados e deportados. “O objetivo era obrigar que os zapatistas cuidassem mais de sobreviver que de combater. Isso facilitava as ações de extermínio”, diz Pineda.
O primeiro golpe teve êxito. A estratégia de terra arrasada fez os zapatistas recuarem e devastou a população civil. Imensas colunas de mulheres, crianças e idosos percorriam os descampados em busca de comida. Quando não morriam de fome, eram mortos a balas. O terror os perseguia.
O alto comando carrancista afiou a foice. Ordenou deportações em massa para Yucatán e escravizou povoados inteiros em campos de trabalho. Quem tentava fugir era executado sem demora. O mesmo era feito com quem chegasse a menos de 60 metros de uma ferrovia ou andasse sem salvo-conduto por caminhos e trilhas ou simplesmente fosse suspeito de servir ao zapatismo. Não havia perdão para o inimigo.
Depois do recuo inicial, os zapatistas conseguiram reagrupar forças e desencadearam em julho sua contraofensiva. O espírito de uma revolução e o gênio militar de Zapata lhes abriram caminho. Os rebeldes se multiplicaram diante de tropas perplexas e excessivamente confiantes. O movimento se deu em todas as frentes. Caíram Tepoztlán e Santa Catarina. O general Pablo González respondeu endurecendo a repressão. O castigo sobre a população civil disparou. As garantias constitucionais foram suspensas em todo o território revolucionário. Morelos, Puebla, Guerrero, o Estado do México, Tlaxcala e parte de Hidalgo sentiram o jugo de Carranza. Mas nada disso bastou.
No início de 1917, Zapata conseguira expulsar de seu território o invasor. Começou então um período curto e intenso da insurreição zapatista. Em março, o líder proclamou “o governo do povo pelo povo”. Raivosamente antioligárquico, reabriu escolas, deu luz a novas formas de administração e reorganizou o Exército Libertador do Sul. Embora limitado aos confins meridionais, seu ideário era pura nitroglicerina: “Quando o camponês puder gritar ‘sou um homem livre, não tenho senhores, não dependo de mais do que meu trabalho’, então diremos os revolucionários que nossa missão foi concluída, então se poderá afirmar que todos os mexicanos têm pátria”, deixou escrito.
Como tantas coisas naqueles dias, sua declaração foi um marco e uma miragem. Os carrancistas, decididos a esmagar a revolta camponesa, logo voltaram à carga. No final de 1918 lançaram a segunda invasão. E dessa vez miraram em Zapata.
O coronel carrancista Jesús Guajardo foi enviado para matá-lo. Primeiro fez saber aos zapatistas que estava disposto a desertar e depois, como prova de confiança antes de se encontrar com o líder revolucionário, fuzilou 50 soldados federais.
Ambos combinaram de se reunir em 10 de abril de 1919 na Fazenda Chinameca, em Morelos. Quando Zapata cruzou a entrada, a traição se abateu sobre ele. Embora tenha conseguido sacar seu revólver, não pôde apertar o gatilho. Sete balas acabaram antes com ele. Seu cadáver foi levado no mesmo dia para o general Pablo González e exibido em público. O traidor Guajardo foi promovido. Com o tempo caiu no esquecimento. Zapata, enterrado e pranteado como poucos no México, continua vivo desde então.
TUDO SOBRE O REVOLUCIONÁRIO
A figura de Emiliano Zapata nunca descansa. Carismático e revolucionário, sua imagem faz parte da iconografia do México. E também do debate. Antecessor das insurreições que ao longo do século 20 sacudiram o país, Zapata é objeto de atenção por parte dos historiadores. Seu estudo tem a participação decidida do Colégio do México (Colmex), uma das instituições universitárias de elite da América Latina. Em novembro, o Colmex organizou uma exposição sobre Zapata e intensas jornadas de revisão, nas quais se tratou desde a validade de seu legado até a pouco conhecida ofensiva carrancista. Esse esforço se uniu à criação de um site interativo, chamado Rostos do Zapatismo, no qual se pode ter acesso direto ao seu arquivo digitalizado e aos registros sonoros de testemunhas da revolução.
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