Guia rápido pra se fugir do carnaval
Eberth Vêncio
08/02/2013 ÀS 11:54 AM
Note que o trânsito na cidade já melhorou sobremaneira. O povo arrumou as malas, pegou a estrada, vai cair na folia. Prepare-se para desaproveitar o carnaval sem sentir culpa: sacie-se com as migalhas; anote no verso da duplicata bancária que vence em março o que não fazer (e desfazer) no feriadão que se avizinha.
Ponha tento: admire o corpo da vizinha. Deixe o carro na garagem. Ande de ônibus e pague os pecados. Experimente ler uns versos enquanto chacoalha. Se sentir enjoos, vomite a coalhada matinal com rimas ricas sobre os romances comerciais de conteúdo pobre. Visite um sebo, adote um livro. Visite um asilo, leia um velho nas entrelinhas. Aprenda com os mais novos o que não se deve fazer jamais.
Plante uma muda de árvore na rua da sua casa. Case, mude de endereço ou compre uma bicicleta. Não dispense a feia Anacleta: em feriados prolongados fica difícil arrumar um par.
O por do sol entre as torres da cidade é ímpar: aproveite sem moderação mas, cuidado com as balas perdidas e com o excesso de monóxido de carbono na atmosfera. Nota do editor: há tanto cianeto nas ruas quanto nas boates em chamas. Vá ao cinema, beije de língua. Permita que as decepções amorosas morram à míngua.
Lustre a mobília. Limpe as coronárias. Cuide do seu coração. Evite frituras. Derreta as gorduras. Coma quem você quiser. Se você não gosta nem de homem, nem de mulher, não há mais por que chicotear o próprio lombo. Arquive os seus recalques em local apropriado: no limbo de todo esquecimento.
Lembre-se que, em condições normais de alienação e loucura, o carnaval dura só quatro dias (a minha chatice, no entanto, dura um pouco mais do que isso) e, em breve, os foliões estarão de volta à rotina, buzinando os seus carros, escarrando intolerância em via pública, lamentando o dinheiro curto, rolando dívidas, sofrendo como porcos nas filas do SUS, reclamando do governo, contribuindo para o caos urbano, aumentando o passivo de Deus com seus incessantes pedidos. Faça como o Pai: não lhes dê ouvidos. Assuma a cidade e curta momentos incríveis de solidão a dois.
Vá pentear macaco. Plantar bananeira. Ver se eu tô na esquina. Tomar banho na soda. Matar cachorro a grito. Vá se lascar. Lamber sabão. Catar coquinhos. Secar gelo. Chover no molhado. Enfim, no anti-carnaval deste ano, faça qualquer coisa, exceto aquilo que você não gosta, como dançar frevo, rebolar o poposão até o chão, cheirar lança-perfume, urinar uns nos outros pelas ruas de Olinda, vomitar atrás de um trio elétrico, tomar pílulas-do-dia-seguinte antes do desjejum.
Se, com tamanha pasmaceira na cidade, pintar uma melancolia e você sentir vontade de entrar numa igreja, não há mal nenhum (a porta estará sempre aberta aos cães, sejam eles bípedes ou quadrúpedes). Massageie os bíceps, o ego. Arranque um prego da cruz. Enlouqueça. Todos têm os seus momentos de fraqueza. Portanto, malhe a musculatura, mas deixe Judas em paz. Peque, peque só um pouquinho, nada que faça o consumo de carne de porco cair ainda mais durante a quaresma. Ajoelha e não reza (nada tema: tudo o que estiver na alçada dos arcanjos será resolvido na Semana Santa).
Se encontrar alguma das criaturas a seguir durante este feriado, aproveite e faça caridade: compre o CD de uma nova dupla sertaneja; doe a Sua Santidade dez sacos de cimento para as obras de ampliação da igreja; mande uma cartinha elogiando as propagandas da Revista Veja; resista à tentação de pagar um cafezinho ao guarda de trânsito que o flagrou no bafômetro por conta daquela caneca de cerveja.
Colabore com a prefeitura local no combate à dengue, afinal, os mosquitos continuam se reproduzindo à despeito dos pontos facultativos do Governo. Aproveite a calmaria do anti-carnaval, imite um aedes, chupe um pescoço. Mas, cuidado: gaste os seus gametas com moderação. Use a camisinha, o quadril e o bom senso. O coração não. O coração só atrapalha.
Entre num cortejo, siga um féretro qualquer e confira onde é que vai dar. Participe do funeral de um estranho e preste bastante atenção no semblante dos vivos e do morto. Já que está num cemitério mesmo, enterre o rancor, telefona pro seu pai, faça as pazes com o velho. Confira a lista de medicamentos da sua mãe (faça um check-list das doenças por ordem alfabética, assim fica muito mais fácil). Difícil mesmo é enterrar gente no Natal: esta, sim, uma data inconveniente e das mais tristes.
Compre alpiste pro seu passarinho, abra a gaiola e deixe bem claro àquela ave que será a última vez que lhe oferece comida. Retribua o amor de um cão. Se tiver tempo, abane o rabo pros seus filhos, afinal, a babá viajou com o namorado pra Salvador e só voltará (Deus é Pai!) na quarta-feira de cinzas. Bem vindo ao caos doméstico.
Pare de fumar. Pare de beber. Pare de se drogar. Pare de ler tantos best-sellers ruins. Pare de tomar a pílula, senão ela não deixa o nosso filho nascer. Pare de desmerecer a obra do Odair José. Pare de dizer que o Padre Zezinho desafina pracaralho. Não diga um palavrão dentro de um templo religioso. Não declame a tábua dos Dez Mandamentos para a corja de um covil. Pare de valorizar tantos os meus trocadilhos enquanto escrevo. Pare de acreditar em tudo que eu digo.
Se tiver coragem, coloque um peercing no umbigo. Se tiver peito, coloque outro no mamilo. Agora, se pra você a dor for apenas um detalhe, grampeie o próprio clitóris com uma argola. Tatue o Submarino Amarelo no dorso do pênis. Vá jogar tênis com um joãozinho-sem-braço. Vem cá e me dá um abraço: estou me sentindo tão soul.
Ouça um disco de blues, tome meia garrafa de vodca (eu bem que avisei pra você parar de beber, de fumar, de rezar, de trepar, de ler tantos tons de cinza, etc etc...), mas não se abra com alguém: toda a verdade poderá ser usada contra você no futuro. Não se preocupe com o amanhã: nada vai dar certo mesmo.
Não se declare indignado (você é o tal louco bradando no deserto). Não se sinta diminuído porque o país praticamente parou durante a folia, a inflação devora-nos pelos calcanhares, o PIB do vovô já não sobe mais, e muitos compatriotas continuam chapando o melão neste carnaval. Não se sinta o bicho da goiaba. O manifesto dos excluídos e o guia anti-carnaval estão aí inteiros a seu dispor.
Mas, atenção, faça tudo sozinho. Nem pense em montar o seu próprio bloco, um clube, um blog, uma liga, um sindicato, uma banda, uma quadrilha organizada, uma academia de imortais, uma seita psicodélica, uma ONG, um grupo de estudo, um partido político, uma confraria de antissociais, um clube da luta, um grupo terrorista ortodoxo. Faça qualquer coisa que tiver vontade, mesmo que, no calor da folia, alguém o acuse de estranho, antissocial, triste, chato, neurastênico, mal humorado, lazarento, problemático, sorumbático, lunático, apocalíptico, bipolar, má companhia, enfim, só por não gostar do carnaval. É para pessoas como você que este texto foi escrito.
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