sábado, 31 de março de 2018

Daniela Vega, a atriz transexual que fez história no Oscar


Vega, durante a cerimônia 

Daniela Vega, a atriz transexual que fez história no Oscar

Atriz de ‘Uma Mulher Fantástica’, ganhador de melhor filme estrangeiro, tem uma biografia sofrida


U.O.K
Chile 6 MAR 2018 - 12:51 COT

A chilena Daniela Vega se tornou neste domingo a primeira atriz transexual a participar da apresentação da cerimônia do Oscar. A protagonista de Uma Mulher Fantástica, ganhador do Oscar de melhor filme em língua não inglesa, apresentou o cantor Sufjan Stevens, que interpretaria Mistery of Love, parte da trilha de Me Chame Por Seu Nome. “Quero convidar vocês a abrirem seus corações e seus sentimentos e sentirem a realidade. Vocês conseguem?” disse ela, emocionada.
Muito antes da noite deste domingo, e inclusive muito antes de subir a um palco, Vega, de 28 anos, chegou ao fundo do poço. Aos 14, sua vida se dividiu em um antes e um depois. Deixou seu corpo de homem e fez a transição para o de mulher. Mas, ao assumir sua figura feminina, Vega não via a luz nem sabia que caminho seguir – se seria cantora ou atriz –, e tampouco tinha a possibilidade de entrar para o mundo artístico.
“Da dor se aprende e se cresce”, contava ela em fevereiro ao EL PAÍS, em Madri, horas antes da vitória do filme na categoria de melhor filme ibero-americano do prêmio Goya. “Os transexuais são seres marginais. Sofre-se muito na transição. E essa dor nos torna fortes, duros, e inclusive nos leva a ter mau caráter”, afirmava, enquanto Juan de Dios Larraín, produtor do filme junto com seu irmão, o cineasta Pablo Larraín, se aproximava para lhe oferecer uma cervejinha. Daniela rompeu esquemas para assumir sua transexualidade com o apoio da família. “Eu tenho muita esperança nas futuras gerações no Chile, atualmente há muita abertura”, enfatizava a atriz.
Antes de encarnar Marina, uma transexual que perde inesperadamente o seu namorado, a atriz trabalhava como cabeleireira em um salão de beleza. Foi um golpe de sorte, o destino, ou o acaso, que levou a diretor até ela, quando ele começava a estudar as personagens de Uma Mulher Fantástica e sondava o universo transexual de Santiago. Em princípio, ela prestaria uma consultoria à produção, mas acabou sendo a estrela de um filme exaltado pela forma como retrata a dor, a perda e o medo do desconhecido.
As artes no moralista Chile
A atriz tinha apenas um ano quando o ditador Augusto Pinochet deixou o poder no Chile, em 1990. A sociedade vivia com medo. Ainda estava fresca a lembrança dos campos de torturas, da trágica morte do cantor Víctor Jara, dos militares com metralhadoras nas ruas, dos guanacos (caminhões que lançavam água suja nos manifestantes nas ruas).
Os transexuais somos seres marginais. Sofre-se muito na transição. E essa dor nos torna fortes
Os gays e os transexuais eram parte do underground, vidas conhecidas apenas através dos livros de Pedro Lemebel, um autor que retratou magistralmente seres marginais, como ele mesmo. O Chile era uma sociedade bicéfala. Duas caras que se manifestavam ao mesmo tempo. Uma, a que rompia regras, com a antipoesia do recém-falecido Nicanor Parra e a transgressão de Alejandro Jodorowsky; a outra, marcada pelo conservadorismo, o respeito e o medo da lei, da autoridade, do estabelecido.

Quando o filme estreou no Chile, há um ano, foi recebido com muito entusiasmo. Daniela peregrinou pelos principais canais de TV, olhava fixamente para a câmera e se soltava: “Goste de você, ame-se, respeite-se da maneira mais digna. Todos os nossos corpos transitam; eu transicionei pelo gênero, outros fazem isso envelhecendo”. A atriz, que começou sua caminhada artística como cantora lírica, foi a primeira transexual a aparecer nas capas das revistas no Chile, tornando-se um marco cultural.
Nicolas Saavedra e Daniela Vega sobem ao palco
Nicolas Saavedra e Daniela Vega sobem ao palco  ©GTRESONLINE
Vega está escrevendo um livro para a editora Planeta e prepara, além disso, duas personagens, uma para o cinema e outra para o teatro em Santiago, de onde não tem a intenção de se mudar.
Em Hollywood há um grupo de cinéfilos a quem cativou. Algo que nem o diretor do filme, Sebastián Lelio, nem os produtores anteviram.“Houve uma espécie de espiral virtuosa na apreciação do filme, nos temas que aborda, no momento histórico, cultural, social que estamos passando. Abriu-se uma caixa da Pandora no feminino, com uma explosão de temas trans. Tudo isso ocorreu enquanto escrevíamos o filme. E,enquanto o realizávamos, o mundo deu um guinada de 180 graus, com o Brexit e Trump”, argumentava o cineasta em Madri.
A boa relação entre o diretor e a artista é patente. Eles trocam olhares cúmplices. Lelio enxerga Daniela como uma personagem de outra época. “É como uma estrela moderna, e ao mesmo tempo uma diva dos anos quarenta. Acompanhei com muita admiração como ela tem carregado toda essa responsabilidade, e tem feito isso com muita graça”, diz.
Qual foi a chave do seu sucesso? “A poesia foi minha porta de entrada neste mundo”, afirma o cineasta. “Para todo adolescente chileno, é como dar o primeiro beijo, ir para a cama pela primeira vez; escrever poesia é parte do ritual de ser chileno”, ressaltou Lelio, que estreou na lírica lendo Vicente Huidobro. O verso é o embrião do seu cinema, e com esse estímulo ele gesta os seus filmes.

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