sábado, 9 de agosto de 2014

Vargas Llosa / Entre os escombros

Entre os escombros
Fernando Vicente

MARIO VARGAS LLOSA

Entre os escombros

Os radicais do Hamas saem fortalecidos após os ataques de Israel graças ao rancor, ao ódio e à sede de vingança que a população de Gaza sentirá depois dessa onda de morte e destruição



9 AGO 2014 - 17:00 COT

Escrevo este artigo no segundo dia do cessar-fogo em Gaza. Os tanques israelenses se retiraram da Faixa, pararam os bombardeios e o lançamento de foguetes, e as duas partes negociam no Cairo uma extensão da trégua e um acordo de longo prazo que assegure a paz entre os adversários. A primeira parte é possível, sem dúvida, sobretudo agora que Benjamin Netanyahu declarou estar satisfeito – “missão cumprida”, foi o que disse – com os resultados do mês de guerra contra os moradores de Gaza, mas o segundo – uma paz definitiva entre Israel e Palestina – é, por enquanto, pura quimera.
O balanço desta guerra de quatro semanas é (até agora) o seguinte: 1.867 palestinos mortos (entre eles 427 crianças) e 9.563 feridos, meio milhão de desabrigados e cerca de 5.000 casas destruídas. Israel perdeu 64 militares e 3 civis, e os terroristas do Hamas lançaram sobre seu território 3.356 foguetes, dos quais 578 foram interceptados pelo sistema de defesa e os outros causaram apenas danos materiais.
Ninguém pode negar a Israel o direito de defesa contra uma organização terrorista que ameaça sua existência, mas também cabe a pergunta se uma carnificina semelhante contra uma população civil, a destruição de escolas, hospitais, mesquitas, locais onde a ONU acolhia refugiados, é tolerável dentro de limites civilizados. Semelhantes matança e destruição indiscriminada, além do mais, se abatem contra a população de um retângulo de 360 quilômetros quadrados ao qual Israel, desde que impôs em 2006 um bloqueio por mar, ar e terra, já submete a uma lenta asfixia, impedindo importar e exportar, pescar, receber ajuda e, resumindo, privando a região a cada dia das mais elementares condições de sobrevivência. Não falo de ouvir falar; estive duas vezes em Gaza e vi com meus próprios olhos o amontoamento, a miséria indescritível e o desespero com que se vive dentro dessa ratoeira.




O conflito pode ser estendido a todo o Oriente Médio e provocar um cataclismo

A razão de ser oficial da invasão de Gaza era proteger a sociedade israelense destruindo o Hamas. Isso foi conseguido com a eliminação dos 32 túneis que o Tsahal capturou e destruiu? Netanyahu diz que sim, mas ele sabe muito bem que está mentindo e que, ao contrário, em vez de afastar definitivamente a sociedade civil de Gaza da organização terrorista, esta guerra vai devolver o apoio da população que o Hamas estava perdendo a passos largos por seu fracasso no governo da Faixa e por seu fanatismo demencial, o que o levou a se unir à Al Fatah, seu inimigo mortal, aceitando não ter nenhum representante nos Governos da Palestina e de Gaza, inclusive admitindo o princípio de reconhecimento de Israel, que tinha sido exigido por Mahmoud Abbas, o presidente da Autoridade Nacional Palestina. Por desgraça, o moribundo Hamas sai revigorado desta tragédia, com o rancor, o ódio e a sede de vingança que a dizimada população de Gaza sentirá depois desta chuva de morte e destruição que padeceu durante estas últimas quatro semanas. O espetáculo das crianças arrebentadas e as mães enlouquecidas de dor escavando as ruínas, assim como o das escolas e clínicas em pedaços – “Um ultraje moral e um ato criminoso”, segundo o secretário-geral da ONU, Ban Ki-Moon – não vai reduzir, e sim multiplicar, o número de fanáticos que querem fazer Israel desaparecer.
O mais terrível desta guerra é que não resolve, pelo contrário, agrava o conflito palestino-israelense e é apenas mais uma sequência em uma corrente interminável de atos terroristas e enfrentamentos armados que, em curto ou longo prazo, podem se espalhar por todo o Oriente Médio e provocar um verdadeiro cataclismo.
O governo israelense, desde os tempos de Ariel Sharon, está convencido de que não há negociação possível com os palestinos e que, portanto, a única paz possível de alcançar é a imposta por Israel através da força. Por isso, embora faça declarações rituais a favor do princípio dos dois Estados, Netanyahu sabotou sistematicamente todas as tentativas de negociação, como ocorreu com as conversas que o presidente Obama e o secretário de Estado John Kerry se empenharam em promover, assim que este assumiu seu cargo, em abril do ano passado. E por isso apoia, às vezes com sigilo, e às vezes abertamente, a multiplicação dos assentamentos ilegais que transformaram a Cisjordânia, o território que o Estado palestino teoricamente ocuparia, em um queijo gruyère.
Esta política tem, lamentavelmente, um apoio muito grande entre o eleitorado israelense, no qual aquele setor moderado, pragmático e profundamente democrático (o do Peace Now, ou Paz Agora) que defendia a resolução pacífica do conflito mediante negociações autênticas foi se encolhendo até se tornar uma minoria quase sem influência nas políticas do Estado. É verdade que ali existe, ainda, tentando fazer com que suas vozes sejam ouvidas, pessoas como David Grossman, Amos Oz, A. B. Yehoshua, Gideon Levy, Etgar Keret e muitos outros, salvando a honra de Israel, assumindo suas posições e protestando, mas a verdade é que são cada vez menos e que cada vez têm menos eco em uma opinião pública que foi se tornando mais extremista e autoritária. (Sabemos que em seu próprio Governo Netanyahu têm ministros como Avigdor Lieberman, que o consideram moderado e ameaçam retirar o apoio de seus partidos se ele não castigar com mais dureza o inimigo.) Cegados pela indiscutível superioridade militar de Israel sobre todos seus vizinhos, em especial a Palestina, chegaram a acreditar que selvagerias como a de Gaza garantem a segurança de Israel.




Os bombardeios contra a população civil de Gaza tiveram no mundo inteiro um efeito terrível

A verdade é exatamente a oposta. Embora ganhe todas as guerras, Israel é cada vez mais fraco, porque perdeu toda aquela credencial de país heroico e democrático, que converteu os desertos em pomares e foi capaz de assimilar em um sistema livre e multicultural pessoas vindas de todas as regiões, línguas e costumes, assumindo cada vez mais a imagem de um Estado dominador e prepotente, colonialista, insensível às exortações e chamados das organizações internacionais, confiando somente no apoio automático dos Estados Unidos e em sua própria potência militar. A sociedade israelense não pode imaginar, em seu ensimesmamento político, o terrível efeito que tiveram no mundo inteiro as imagens dos bombardeios contra a população civil de Gaza, das crianças despedaçadas e a das cidades transformadas em escombros e como tudo isso vai convertendo-o de país-vítima em país-carrasco.
A solução do conflito Israel-Palestina não virá de ações militares, mas de uma negociação política. Foi o que disse, com argumentos muito lúcidos, Shlomo Ben Ami, que foi ministro de Relações Exteriores de Israel precisamente quando as negociações com a Palestina – em Washington e Taba, nos anos 2000 e 2001 – estiveram a ponto de dar resultados. (O que impediu foi a insensata negativa de Arafat de aceitar as grandes concessões que Israel tinha feito.) Em seu artigo A Armadilha de Gaza (EL PAÍS BRASIL, 29 de julho de 2014), ele afirma que “a continuidade do conflito palestino debilita as bases morais de Israel e sua posição internacional” e que “o desafio para Israel é vincular sua tática militar e sua diplomacia a uma meta política claramente definida”.
Espero que vozes sensatas e lúcidas como as de Shlomo Ben Ami terminem sendo escutadas em Israel. E espero que a comunidade internacional atue com mais energia no futuro para impedir atrocidades como a que acaba de sofrer Gaza. Para o Ocidente, o que ocorreu com o Holocausto judeu no século XX foi uma mancha de horror e de vergonha. Que não seja assim, no século XXI, com a agonia do povo palestino.

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