Ilustração de Triunfo Arciniegas, |
Primeiras lembranças
Minha irmã jura que esta história nunca aconteceu. No entanto, eu me lembro dela perfeitamente...
LUIZ RUFFATO
5 AGO 2014 - 12:49 COT
Talvez uma de minhas primeiras lembranças seja uma imagem... Morria de inveja de seu Sebastião Lopes, concorrente do meu pai, também Sebastião, também pipoqueiro. Seu Sebastião Lopes tinha um carrinho de aço escovado estacionado bem na esquina da Praça Rui Barbosa, na calçada do Cine-Teatro Edgard, enquanto meu pai amargava sol e chuva com seu carrinho verde-musgo, na Praça Santa Rita... Quando terminava a missa na igreja de Santa Rita, os jovens saíam correndo para o footing na Praça Rui Barbosa, que possuía cinema e bares... E ficávamos às moscas... Eu não me aventurava para aqueles lados por despeito (afinal, lá era o território do nosso inimigo), mas igualmente por receio... Temia gostar daquele movimento todo, as pessoas girando em torno do coreto em sentidos opostos, moços numa direção, moças noutra, os casais de mãos dadas... E, em especial, inquietava-me o cinema com seus cartazes chamativos...
Aproximei-me então aos poucos. Em frente ao prédio do Cine-Teatro Edgard postavam-se vários rapazes, com pilhas de revistas, as mais diversas, para trocar ou vender. Como quem não nada quer, comecei a frequentar o lugar: caminhava lento namorando as capas com fingido interesse, mas depois corroía-me o remorso e saía correndo, o coração opresso, medo que meu pai me pegasse traindo-o... Com o passar do tempo, tomei coragem e passei a gastar alguns trocados comprando exemplares usados de Combate (uma revista que, creio, tinha como tema a Guerra da Coréia), Tex, Fantasma, etc... Mas o que eu queria mesmo era olhar os cartazes dos filmes em exibição...
Certa manhã, minhas pernas carregaram-me até à banca do seu Caruso, incumbido de adquirir o Jornal do Brasil para um vizinho letrado nosso. Avizinhei-me desatento das portas pantográficas do cinema e me deparei assustado com um enorme cartaz que anunciava para breve “A noite dos generais”, sobre a Segunda Guerra Mundial. Zonzo, tomei uma resolução: nada nem ninguém me impediria de assistir aquele filme. Economizei as moedas que ganhava para fazer mandados no centro da cidade até que, na mágica noite de uma quarta-feira, o ar inundado pelo cheiro de pipoca que emanava do carrinho do seu Sebastião Lopes, me enchi de coragem e esgueirei-me para dentro da escuridão misteriosa. À minha frente, enormes cenas de outros tempos mexiam-se barulhentas – afogava-me em um mundo diverso do meu, tão acanhado e sem perspectivas. A partir desse dia, traí meu pai quase todas as semanas.
*****
Mas, não, talvez minha primeira lembrança remonte aos meus três, quatro anos. Muito pobres, morávamos no Beco do Zé Lincoln, um cortiço encravado num bairro de classe média de Cataguases. Lá conviviam operários e operárias, costureiras, vagabundos e prostitutas. Na medida do possível, meus pais tentavam nos proteger das mazelas do século, embora não conseguissem nos poupar das enchentes regulares do Rio Pomba, que todo ano invadia as casas, às vezes nelas instalando-se por noites e dias.
Certa feita, minha mãe incumbiu minha irmã, Lúcia, de visitar a madrinha, que morava no Ibrahim, um bairro bastante distante, quase zona rural na época. Para que não fosse sozinha, ela pouco mais velha que eu, enfeitaram-me com roupa de domingo, e a mão da minha irmã, firme, arrastou-me, carinhosa. Aguardamos pacientes o cata-níquel, e, quando ele parou no ponto, embarcamos. Lúcia, muito segura de si, pagou as passagens... de ida e de volta...
Almoçamos na casa da madrinha e consumimos as horas à fresca sombra das mangueiras, em meio a um profundo silêncio, entrecortado vez em vez pelos latidos dos cachorros, pela algazarra das crianças ou pelo ronco longínquo do motor de um carro. Afinal, resolvemos ir embora. Quando o ônibus encostou na guarita, que marcava o ponto inicial da linha, Lúcia, conduzindo-me, entrou e tentou passar pela catraca. O trocador disse que ela tinha que pagar a passagem, mas ela, indignada, respondeu que já tinha feito isso. Para quem, ele perguntou. Então, minha irmã percebeu que era outro o rosto à sua frente... Desconsolada, desceu, puxando-me... Não possuíamos mais nenhum centavo... Fizemos todo o caminho de volta a pé, cheios de temores, pois escurecia, ela engolindo o orgulho, salivando raiva...
Minha irmã jura que esta história nunca aconteceu.
No entanto, eu me lembro dela perfeitamente...
EL PAÍS
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