Os contadores de Zacapa
Narrar contos e acontecimentos é o antecedente remoto da literatura, da história, das religiões e talvez, indiretamente, a locomotiva do progresso
Mario Vargas Llosa
2 jun 2018
Se você for à Guatemala, depois de visitar as lápides e pirâmides maias e essa joia colonial que é Antigua, peço-lhe que vá ao leste do país e faça uma parada na cidade de Zacapa. Esta é uma região menos turística que outras, mas, raspando um pouco, também está cheia de surpresas e maravilhas. Para comprovar isso, dirija-se sem vacilar à rua Terceira, no bairro de Las Flores, onde, no número 1.794, encontrará uma antiga casa que ostenta este singular título em sua fachada: “Associação Zacapaneca de Contadores de Contos e Histórias”.
A senhora Vilma Elizabeth Sánchez, que preside a instituição, lhe explicará que esta já tem trinta e três anos de fundação e que sua razão de ser é perpetuar a “oralidade” do vale médio do rio Motagua, um território que, além de ser candente e famoso por seu rum, é o mais fértil do país e talvez de toda a América Central na antiquíssima e civilizada arte de inventar e contar histórias. “Oralidade” quer dizer pré-literatura, aquela que existia apenas graças à voz humana, antes que aparecesse a escrita. E esta mesma senhora, de cabelos brancos e maneiras elegantes, ou um dos sócios, por exemplo o jovem poeta e contador de histórias Jorge Pinto, lhe revelará que o povo de Zacapa, depois do trabalho, quando cai a tarde e o calor diminui, costuma colocar suas cadeiras e cadeiras de balanço nas altas calçadas da rua e, enquanto tomam a fresca reparadora e vão vendo as estrelas aparecerem no céu, mencionam histórias que engalanam as lembranças ou as substituem por fantasias tenebrosas ou amáveis, de amores ou aventuras, realistas ou fantásticas, uma tradição que aqui continua sempre sã e robusta, enquanto vai desaparecendo pouco a pouco no resto do mundo. Zacapa é uma dessas ilhotas que ainda mantêm vivo aquele velhíssimo costume de criar histórias com a imaginação e a palavra, e contá-las para vivê-las e fazer vivê-las quem as escuta. Comove-me muito a ideia de toda uma cidade que espera o anoitecer fantasiando uma vida paralela à real, mais intensa, variada e atrevida que a meramente vivida, uma vida que nos desagrava do que falta à verdadeira para nos fazer felizes.
A “oralidade” contribuiu para impulsionar a civilização das cavernas à viagem às estrelas
Esta é a mais antiga das tradições da humanidade, uma atividade praticada por todas as culturas do planeta sem uma só exceção, a mais exclusivamente humana que existe, e que eu tive a sorte de ver operando em lugares e povoados tão afastados entre si como os sertões do interior da Bahia, onde os contadores de histórias perambulam de feira em feira e se fazem acompanhar com violas e violões, na cidade de Peshawar no Paquistão (onde, na rua chamada Contadores de Contos, por alguns poucos centavos aedos frequentemente cegos recitam histórias aos visitantes – só que em língua pashtun), ou entre as aldeias machiguengas dispersas pela Amazônia peruana. Impressionou-me descobrir que esse costume que surgiu nos primórdios da história humana ainda vive e se mexe nesta cidade do oriente guatemalteco, onde as igrejas católicas e os templos evangélicos disputam as ruas e as praças, e um esbelto coreto do século XIX (onde ainda deve haver retrete com banda de música aos domingos, frequentadas por casais de namorados) domina sua praça central.
Contar histórias é o antecedente remoto da literatura, da história, das religiões e talvez, indiretamente, a locomotiva do progresso. A “oralidade” contribuiu de maneira decisiva para impulsionar a civilização da épocas das cavernas, do canibalismo e das pinturas rupestres até a viagem dos homens às estrelas. Os contos, as histórias inventadas, davam mais vida aos nossos ancestrais, tiravam homens e mulheres das prisões asfixiantes que eram suas vidas e os faziam viajar pelo espaço e pelo tempo e viver as vidas que não tinham nem nunca teriam em sua miúda e sucinta realidade. Sairmos de nós mesmos, sermos outros, outras, graças à fantasia, nos entretém e enriquece. Mas, além disso, nos ensina como é pequeno o mundo real comparado com os mundos que somos capazes de fantasiar, e deste modo nos incita a agir para que nossos sonhos se tornem realidades. O progresso nasceu assim, da insatisfação e do mal-estar com o mundo real que inspirava nos humanos a mesma ficção que os fazia desfrutar.
Graças à magia das histórias, a vida tem sido menos incompreensível, dura e rotineira
As histórias que inventamos constituem a vida secreta de todas as sociedades, aquela dimensão da existência que, embora nunca tenha tido chance de se realizar, foi de alguma forma vivida pelos seres humanos, na incerta realidade dos desejos, fantasias, pesadelos e invenções, de toda essa projeção da vida que não tivemos e por isso devemos inventá-la. Ela existiu sempre na memória das gentes, mas só a escrita a fixou e lhe deu permanência, muitos séculos depois de que nascesse, ao redor das fogueiras, quando nossos antepassados, aqueles bípedes ainda mais animais que humanos, contavam-se histórias à noite para esquecer o medo do trovão, as aparições, as feras e os milhares de perigos que os espreitavam em qualquer parte.
A Associação de Zacapa tem 28 membros pagantes, porque é mantida por seus sócios, não pelo Estado nem pelo Governo, que jamais puseram dinheiro nesta instituição, nem ela pediu: é a sociedade civil que a criou e a mantém. Ocupa uma ampla e bonita casa com teto de telhas e um pequeno jardim onde cresce uma mangueira muito alta. À sua sombra são realizados recitais e sessões onde os contadores profissionais ou espontâneos fazem as delícias de um público no qual se misturam crianças e velhos e todas as classes sociais. A associação dispõe de uma biblioteca e uma sala de leitura, grava as improvisações, publica antologias, e de tempos em tempos dedica uma apresentação exclusivamente às crianças, para ganhar sua afeição e despertar nelas vocações de contadores de contos. Do mesmo modo, leva narradores orais aos colégios, aos sindicatos, às prisões.
Também mantém vínculos com outras organizações do mesmo tipo, na Guatemala e no exterior, e às vezes recebe contadores de outras línguas e geografias. E também envia seus melhores narradores para participarem de feiras e espetáculos dedicados à “oralidade” em outros países. Em uma das paredes vejo, por exemplo, cartazes de uma expedição que “os contadores de Zacapa” fizeram aos Estados Unidos, onde atuaram em Chicago e Miami. Voluntários limpam o local, preparam as apresentações e as divulgam.
Zacapa já é conhecida no mundo pelo rum que produz, uma dessas bebidas ardentes das quais não me atreveria a falar, porque nunca as provei. Mas deveria ser também por seus contadores de histórias e por manter viva aquela herança que chega até nós desde remotíssimas épocas pré-históricas, e graças à qual a vida tem sido menos incompreensível, dura e rotineira, tanto que nos vimos obrigados, para não nos extinguirmos de tristeza, a nos inventar essa magia, inventar e contar, a fim de tornar a vida mais digna e suportável. Sem ela nunca teriam nascido os livros de Cervantes nem os dramas de Shakespeare, e talvez jamais teríamos renunciado ao garrote, nem a beber o sangue dos inimigos.
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