sábado, 27 de junho de 2020

Woody Allen / “A ideia de que abusei da minha filha de 7 anos era tão absurda que nunca falei sobre isso”

Woody Allen publica por sorpresa sus polémicas memorias
Woody Allen

Woody Allen: “A ideia de que abusei da minha filha de 7 anos era tão absurda que nunca falei sobre isso”

Cineasta, que publica suas memórias ‘A propósito de nada’, defende nesta entrevista ao EL PAÍS sua inocência nas acusações de abuso sexual a sua filha Dylan

Alex Vicente
Parisk, 18 de juhnio de 2020


Em um dos primeiros encontros de Woody Allen e Mia Farrow, ele a convidou para se despedir do corpo de Thelonious Monk em uma funerária da Terceira Avenida de Manhattan. “Ela se comportou de maneira cortês, mas consternada, e talvez nesse momento devesse ter se dado conta de que estava iniciando uma relação com o sonhador errado”, relata no começo de A Propósito de Nada. Assim começam memórias pensadas para revisar, através de inúmeras histórias e contos, sua longa trajetória como comediante e cineasta, ainda que sua motivação real possa ser defender-se, de uma vez por todas, das acusações de abuso sexual a sua filha Dylan, que ocupam um lugar central em seu relato porque também o conquistaram, contra sua vontade, em sua própria vida.

Woody Allen, em uma entrevista coletiva em Nova York no final de 2017.
Woody Allen, em uma entrevista coletiva em Nova York no final de 2017



Após anos de silêncio, Allen passa ao ataque. Acusa Farrow de agredir fisicamente sua esposa, Soon-Yi, e de chamá-la de “retardada”, de dormir nua com seu filho Satchel (hoje Ronan) até ele completar 11 anos e obrigá-lo a alongar cirurgicamente suas pernas para poder “fazer carreira na política”, além de fazer lavagem cerebral em seus filhos fazendo-os crer que era pouco menos do que um “Moloch vestido de calças de veludo Ralph Lauren”. O diretor, que fará 85 anos em dezembro, resume a manobra com uma frase que Farrow teria pronunciado em um distante 1992: “Você tirou minha filha, agora vou tirar a sua”. É o penúltimo episódio de um caso em que abundam os ângulos cegos e as dúvidas razoáveis, assinado por um cineasta que, de um tempo para cá, vê como algumas portas se fecham (ainda que não esteja de modo nenhum censurado, como ele mesmo insiste em esclarecer). “Eu sabia que a verdade estava do meu lado, mas agora percebo que isso não era garantia de nada”, lamenta Allen, que respondeu a essa entrevista na terça-feira de sua casa em Nova York.

Pergunta. Por que escolheu um título como A Propósito de Nada? Para o senhor, sua vida equivale a nada?

Resposta. Ninguém precisa ler meu livro. Relatar minha história não é relevante e importante. Talvez possa ser de interesse para algumas pessoas, talvez não...





P. Alguma importância deve ter, se decidiu publicá-lo.

R. Não, não tem. A verdade é que me pediram que escrevesse a história de minha vida desde o começo de minha carreira. De repente, me vi em casa sem nada para fazer, à espera de começar a trabalhar em meu próximo projeto, então decidi escrevê-lo. Espero que as pessoas o achem informativo e interessante, que se divirtam lendo-o.

P. Nem todo o livro é divertido. Na verdade, é difícil de ler…

R. Diz isso por que achou difícil de entendê-lo?

P. Não, digo porque relata coisas incômodas.

R. A vida humana tem dimensões diversas e, é claro, nem tudo o que me acontece é divertido. Em qualquer vida humana há uma parte trágica e eu não sou nenhuma exceção.

P. Há nesse livro algo que, durante anos, evitou: erguer a voz e se defender. Por que agora?

R. Primeiramente, quero esclarecer que não tenho a sensação de ter-me defendido. Não precisava de nenhuma defesa. Escrevi a história com objetividade. Usei citações de outras pessoas: os investigadores, os médicos, os juízes, as testemunhas. Nunca incluí a mim mesmo. Ao sentir que não precisava de uma defesa, quis escrever a história objetivamente e deixar que o leitor chegasse a suas próprias conclusões. Não queria entrar no “ele disse, ela disse”. Essa não é minha versão, e sim a versão do investigador, do psiquiatra e da empregada. Espero que não tenha ocupado todo esse espaço, mas para contar minha história por completo também deveria incluir essa parte.









P. Durante anos, o senhor se calou. Não acha que seu silêncio fez aumentar as dúvidas sobre sua versão?

R. Sim, pode ser que você tenha razão, mas não me importou. Quando se é inocente, essas coisas não te importam. Não quis perder tempo pensando nisso. Não senti que devia uma explicação a ninguém. A investigação concluiu que eu não havia feito nada, de modo que me centrei em meu trabalho e em minha família. Pensei que era uma perda de tempo dar entrevistas na televisão e escrever artigos. Mas, para responder a sua pergunta: sim, talvez meu silêncio tenha feito com que as pessoas duvidassem, que pensassem: “Por que está tão calado?”.

P. De ser um ídolo, o senhor diz que se transformou em “um pária”, como se define no livro, após a irrupção do MeToo e a nova acusação de Dylan.

R. Sim, mas para mim não foi difícil. Quando tudo isso aconteceu, simplesmente continuei trabalhando. Estava em todos os jornais, mas os outros se interessavam por isso mais do que eu mesmo. Era absurdo que alguém acreditasse que eu teria feito algo assim a minha filha de 7 anos, que poderia ter abusado dela de qualquer forma. A ideia era tão absurda que nunca falei sobre isso. Trabalhei e continuei trabalhando, e nunca me importou. Era só coisa dos tabloides, que no fundo vivem disso...





Woody Allen e Soon-Yi na estreia de 'Café Society' em julho de 2016.Woody Allen e Soon-Yi na estreia de 'Café Society' em julho de 2016.Foto de JAMIE MCCARTHY 
P. Não acha que vai muito mais além? A Amazon suspendeu seu acordo de produção e distribuição, o grupo Hachette se negou a publicar seu livro, as universidades deixam de estudar seus filmes e muitos atores já não querem trabalhar com o senhor.

R. Teoricamente você tem toda razão, porque tudo isso é verdade. Mas, na prática, não teve nenhum efeito. A editora recusou o livro, mas 15 minutos depois tinha outra que estava disposta a publicá-lo. A Amazon me deu às costas, mas pude rodar outro filme pouco depois. Tudo isso não me impediu de continuar trabalhando e que as pessoas continuassem vendo meus filmes. É verdade que alguns atores me disseram que não queriam trabalhar comigo em Rifkin’s Festival, o filme que rodei em San Sebastián [estreará no segundo semestre]. Mas não aconteceu nada: simplesmente encontrei outros. Se ninguém quiser trabalhar comigo e ninguém quiser ver meus filmes, talvez me afetasse. Mas não foi isso que aconteceu...




P. Nos últimos anos, algumas de suas declarações foram interpretadas como provocações. Por exemplo, quando em 2018 disse que o MeToo deveria adotá-lo como um símbolo. Lamenta ter feito isso?

R. Não, claro que não. Encarno tudo o que o MeToo quer conseguir. Empreguei centenas de mulheres na frente e por trás das câmeras [106 atrizes em papéis protagonistas e 230 como responsáveis por departamentos técnicos, como está no livro]. Sempre paguei exatamente a mesma coisa a homens e mulheres. Em mais de 50 anos, nem uma só atriz e membro de uma das minhas equipes disseram uma só palavra negativa sobre mim. Não recebi uma só acusação de discriminação e de assédio de qualquer tipo. Se todos os homens tivessem se comportado como eu, o movimento já teria atingido seus objetivos...

P. Em seu livro o senhor se manifesta contra a “Polícia do Apropriado” e até insinua que vivemos um novo macartismo. É comparável?

R. Não, a era McCarthy foi muito pior. Existia à época uma lista negra formal, as pessoas eram impedidas de trabalhar para qualquer estúdio e rede de tevê. Alguns eram presos, apesar de não terem feito nada que não estivesse contemplado por seus direitos constitucionais, e outros se suicidavam pulando do telhado. Agora não temos nada parecido. Há pessoas que se aborrecem nas redes sociais, mas não é a mesma coisa do que a era McCarthy, quando existiu algo perigosamente parecido a uma polícia de Estado...

P. “Tudo o que posso fazer é esperar que as pessoas voltem a ser razoáveis”, o senhor declarou dias atrás ao The Guardian. Isso é possível?

R. Nunca farão isso. É como aqueles mitos terríveis sobre os judeus, aquelas ideias delirantes que permaneceram durante centenas de anos na consciência coletiva. Não quero comparar, porque aquilo foi horrendo e mortífero, mas uma vez que mancham seu nome, uma vez que alguém te acusa de algo repetidamente, não importa mais se você é inocente ou culpado. A mancha fica. Mas, como dizia antes, tudo isso não me importa. Quando eu morrer, não poderei me preocupar por essas coisas. Se alguém quer pensar que sou a pior pessoa na face da terra, será irrelevante, porque já terei sido desterrado da existência. O que os outros pensam não tem muita importância. Mas, para responder a sua pergunta, não acho que as pessoas voltarão ao seu juízo sobre esse caso.




P. Em seu livro o senhor diz que não dormiu uma só noite sem Soon-Yi nos últimos 25 anos. Viveu uma relação de comunhão total, enquanto todas as anteriores foram muito distantes. Como explica isso?

R. Não há outra explicação além da sorte. Sempre saí com mulheres de idades parecidas à minha, atrizes e outras pessoas dessa profissão, quase sempre de Nova York. Se anos atrás me dissessem que me casaria com uma mulher muito mais jovem, nascida na Coreia e sem nenhuma relação com o show business, teria me parecido absurdo. E, entretanto, aconteceu. A química é correta, a coisa funciona por mais ilógico que pareça o motivo... Somos felizes juntos e temos uma boa vida. Não é como se nunca brigássemos, mas é um casamento fundado em um amor real.

P. “Precisei pagar um preço muito alto por amá-la”, escreve, apesar de tudo, no livro.

R. Sim, mas valeu a pena. As pessoas me diziam como eu podia estar com alguém muito mais jovem... Era a filha de Mia e depois acabei sendo falsamente acusado. Isso me trouxe uma imagem ruim, mas isso não significa nada para mim. Tenho uma relação maravilhosa com Soon-Yi e não a trocaria por nada.

EL PAÍS

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