A escritora e 'taróloga' Jessa Crispin em Barcelona. JUAN BARBOSA |
Quando Yeats, Philip K. Dick e Borges usaram o tarô para escrever seus livros
A literatura está cheia de autores que em algum momento tomaram uma decisão sobre sua obra em função do que lhes disseram as cartas
Laura Fernández
Barcelona, 20 ab 2019
Philip K. Dick escreveu O homem do castelo alto, sua ucronia sobre uma versão nazista dos Estados Unidos, jogando moedas na mesa. Na época, andava entusiasmado com o I-Ching, jogo divinatório chinês baseado na sorte. O que o desesperado escritor em busca de respostas para sua necessária e constante tomada de decisões — na época Dick ainda escrevia mais de um romance, às vezes três ou quatro, por ano — fazia era lançar moedas ao ar e verificar depois se tinham saído duas ou três caras (o que equivalia a um sim para o que tivesse em mente) ou duas ou três coroas (o que equivalia a um não). Sabe-se que estava obcecado pelo assunto porque até os personagens do romance — todos eles — não fazem outra coisa além de consultar suas moedas antes de tomar qualquer decisão. E o escritor que o representa como recurso narrativo também.
O último livro de Sheila Heti, o fascinante ensaio-crônica Maternidade (Companhia das Letras), começa com uma conversa da própria autora com suas três moedas. Ela lhe faz perguntas, as moedas respondem: “Este livro é uma boa ideia?”/”Sim”/“Estou com dor de cabeça. Estou muito cansada. Deveria ter dormido a siesta. Mas se tivesse deitado estaria de pior humor, não é?”/”Não”.
“Com o I-Ching você só dialoga, com o tarô, além disso, consegue encontrar um relato em meio a toda a confusão”, diz Jessa Crispin (Lincoln, Kansas, 1978), escritora, viajante e taróloga, diante das cartas sobre a mesa de seu baralho pessoal, especialmente desenhadas para acabar um dia nas mãos de Trent Reznor (Nine Inch Nails). “Aconteceu no meu caso e continua acontecendo. Não é só que oferecem o como, o quê, o quando e o onde, no caso de você ir buscar orientação artística, mas ajudam a dar sentido ao caos. Quando comecei a usá-las, de fato, me contaram uma história nova sobre minha vida”, diz.
Uma obscura Mary Poppins
Para Leonora Carrington, pintora surrealista, as cartas agiam como espelhos. Mostravam algo que você não tinha sido capaz de ver. Sylvia Plath as usou para compor pelo menos os três primeiros poemas de Ariel, estabelecendo por meio deles o que os iniciados chamam de jogada inacabada, e William Butler Yeats usou várias vezes o imaginário do tarô em sua obra — deem uma olhada em Blood and the moon —, porque sempre foi atraído pelo lado oculto: foi inclusive membro de uma ordem secreta. Pamela Lynson Travers expõe em seu livro Mary Poppins, infinitamente mais obscuro que a versão cinematográfica, boa parte de sua paixão pelo inexplicável. O tarô para Travers, porém, nunca foi algo criativo: consultava tarólogas toda vez que tinha que tomar uma decisão importante — adotou seu filho porque assim lhe disseram as cartas. Para não falar de Shirley Jackson e Jorge Luis Borges. A lista de escritores —e não só escritores, Brian Eno desenhou seu próprio baralho — que flertaram com o tarô é infinita. Por quê?
“Talvez seja a necessidade de narrativa, ou que todos estão abertos ao intuitivo”, responde Crispin. Pois diante da tomada de qualquer decisão, pode-se dizer que o artista utiliza a sorte não só para ganhar confiança ou segurança —“é como se dissesse: Estou fazendo o que é certo”, declara a escritora — mas também para encontrar um sentido. “A ideia não é usar as cartas para predizer o futuro, mas para deslocar a atenção de certa parte de nossa vida para tentar compreender o que acontece conosco e por quê”, explica. Vejamos um exemplo: a própria Crispin
Ela está prestes a publicar um ensaio, El tarot creativo (Alpha Decay), transformado em espetáculo em La Casa Encendida, que aborda o assunto e que é ao mesmo tempo uma confissão de até que ponto sua vida está sujeita, diariamente, ao que dizem as cartas. Crispin é impulsiva. Há alguns meses conheceu um cara em Chicago. Ia só passar dois dias na cidade e não queria sair com ninguém, mas as cartas disseram que saísse. Duas semanas depois, tinham se casado. Mostra a mão, aponta o anel. E tudo porque toda vez que saía com ele a carta que o baralho lhe mostrava era O Louco. E isso queria dizer que podia perder a cabeça, que tudo daria certo se perdesse a cabeça. Então perdeu.
Crispin, autora do também brilhante Why I am not a feminist (sem tradução para o português), começou a brincar com o tarô ainda adolescente, mas só depois de completar 28 anos é que começou a dominá-lo. Foi quando o transformou em algo como seu melhor amigo, alguém com quem dialoga — ela pergunta, as cartas, como as moedas, respondem, e não com um sim ou com um não mas com uma imagem que em cada caso pode significar algo diferente— e cujo diálogo lhe dá sentido ao que acontece e ao que faz.
“Todo dia tiro uma carta que explica em parte o que vai me acontecer”, diz. Mas não condiciona o fato de saber que pode ser um fiasco — vamos imaginar que a carta seja O Diabo — a que acabe sendo? “Sim, claro, mas acredito que é isso mesmo”. O Carro, por exemplo, diz, é a carta mais “cabal” de todas. “Se um dia sai O carro, quer dizer que vou estar focada”. Você sempre leva em consideração? Ri. “Não é fácil”, diz. Digamos que leva em consideração quando o que dizem se encaixa em seu próprio relato em andamento. “O importante é sempre seguir seu instinto”, conclui, não sem antes recordar que continua não sendo a única escritora hoje em dia que se orienta pelo tarô, pois “quase todos os meus clientes são artistas”.
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